Os desafios da educação financeira — O Brasil

Parte 1— Pensando o presente no Brasil

Bruno Oliveira
Educação, Finanças & Tecnologia
13 min readFeb 4, 2020

--

Já houve um tempo que havia menos investidores na bolsa de valores do que presidiários, hoje o contexto é outro e o mercado brasileiro já tem quase 1,5 milhões de investidores pessoas físicas no mercado de capitais. O boom de investidores gerou uma certa euforia e trouxe várias pessoas para um mundo totalmente novo, o que gera diversas dúvidas na cabeça de quem está dentro ou de quem tem interesse em entrar (tal como de quem está marginalizado nesse processo e entender os porquês desse distanciamento).

Nesse cenário cresce a demanda por Educação Financeira na sociedade e no mercado, e novos esforços e iniciativas passam a surgir para endereçar os novos desafios e problemas que surgem nesse movimento. O objetivo deste artigo, então, é tentar entender melhor este cenário — e pelo tamanho do conteúdo, estamos dividindo em duas partes: esta primeira parte falando um pouco mais sobre como o Brasil se encontra em relação a Educação Financeira e qual a perspectiva para o futuro (isto é o início de uma pesquisa sobre como melhorar a educação financeira brasileira com tecnologia).

Obs: Lembrando que Educação Financeiro (EF)é o processo de transmissão de conhecimentos financeiros, e o Letramento Financeiro é o principal resultado da EF, e indica o grau de instrução financeira de cada indivíduo. As demais publicações desta série de publicações estão a seguir:

Breve panorama do atual nível de letramento financeiro dos brasileiros

O desempenho brasileiro em Letramento Financeiro, no último exame do PISA [INEP, 2017], foi o pior dentre 15 países que realizaram a prova.

Países em azul não fazem parte da OCDE

O letramento financeiro é o grau de domínio das competências financeiras, isto é, segundo a OCDE, o conhecimento e o entendimento de conceitos de finanças e riscos e a capacidade, motivação e segurança para aplicar esse conhecimento para tomar decisões em diferentes contextos financeiros, para melhorar a qualidade de vida dos indivíduos e da sociedade e para permitir a participação na vida econômica.

Os países do mundo inteiro, cada vez mais, passaram a perceber a necessidade e importância da educação financeira para alavancar a economia mundial, e após reivindicação dos líderes dos países do G-20, em 2013, a OCDE criou um Quadro de Competências Essenciais. A [OCDE/INFE, 2015] define quatro competências financeiras principais: (A) dinheiro e transações; (B) planejamento e gerenciamento de finanças; (C) risco e recompensa; e (D) cenário financeiro. Para cada uma delas, a OCDE também define algumas categorias transversais, comum a todas as competências: (1) conhecimento, entendimento e consciência financeira; (2) confiança, motivação e atitude; e (3) comportamentos e habilidades.

Os tópicos de conhecimentos exigidos pelo PISA [OCDE/INFE, 2015], em cada uma das competências, são:

  • Dinheiro e Transações: Moeda, Receita, Pagamentos & Compras, Preços, Contratos & Registros Financeiros e Moeda Estrangeira;
  • Planejamento e Gerenciamento de Finanças: Orçamento, Gestão de Receitas & Despesas, Poupar, Planejamento a longo prazo e Crédito;
  • Risco e Recompensa: Variação de Valor, Identificar Riscos, Seguros & Redes de Segurança Financeira e Balancear Risco & Recompensa;
  • Cenário Financeiro: Proteção ao Consumidor & Regulação, Educação, Informação & Conselhos financeiros, Direitos & Responsabilidades, Provedores de Serviços Financeiros, Golpes & Fraudes, Gastos Públicos & Taxas e Influências Externas.

Boa parte dos estudantes brasileiros (53,3%) foram avaliados como sendo abaixo da faixa 2 (mínimo adequado definido pela OCDE), isto é, eles não seriam capazes de fazer, por exemplo (i) aplicar o conhecimento de produtos, termos e conceitos de finanças comumente usados; (ii) tomar decisões (financeiras)em contextos que são relevantes para eles; (iii) reconhecer o valor de uma simples despesa; (iv) interpretar características proeminentes de documentos financeiros do cotidiano; e (v) aplicar operações básicas, incluindo divisão, para responder a questões financeiras [Iede, 2018]. Segundo o [INEP, 2017], os estudantes socioeconomicamente favorecidos (aqueles entre os 25% de nível socioeconômico mais alto) obtém 78 pontos a mais em Letramento Financeiro do que estudantes socioeconomicamente desfavorecidos, equivalente a mais de um nível de proficiência (faixa 2 ou 3) — bem próximo da média da OCDE.

1. Conhecimento, entendimento e consciência financeira

Em avaliação do próprio PISA, no Brasil a Educação Financeira ocorre mais frequentemente fora (52,3%) do que dentro (36,4%) da escola. O mais interessante é que os alunos que tiveram melhor desempenho (CF 3, 4 ou 5) foram os que menos relataram a realização de aulas ou cursos sobre educação financeira.

Abrangência da Educação Financeira no país [Iede, 2018]

Se comparado a outros países, a participação de alunos em aulas/cursos de Educação Financeira está dentro da média da OCDE. Este conjunto de fatores, nos leva a dois tipos de hipóteses: (i) primeiro, que as aulas/cursos em si (ao menos do jeito que são ministrados hoje) não são tão significativos, quanto outras experiências dos alunos; os melhores alunos em letramento financeiro, provavelmente, foram o que estão em contextos sociais e econômicos (e até familiares) mais propícios — e até por isso não precisam de formação adicional sobre o assunto; e (ii) os alunos com piores resultados são os que registram maior presença em atividades de educação financeira porque são os que mais precisam, eles estão em contextos tão desiguais em relação aos demais que precisam de muito mais instruções e mesmo assim não conseguem atingir o mesmo patamar de conhecimento. As duas hipóteses levam a mesma conclusão: a desigualdade econômica e social no Brasil é a grande barreira para a Educação Financeira do país.

Educação Financeira comparada com outros países [Iede, 2018]

Desde a aplicação do PISA, a situação brasileira não evoluiu muito. Em levantamento do instituto Ilumeo, cada vez menos as pessoas declaram nunca terem recebido qualquer tipo de orientações ou dicas sobre finanças pessoais (63% em 2015, 41% em 2018) — e quando a orientação ocorre, na maior parte das vezes é por meios informais como youtube, redes sociais e TV.

[ILUMEO, 2018]

Quando questionados sobre alguns conhecimentos básicos de finanças do seu dia-a-dia, a maior parte das pessoas possui grande dificuldade em entender o funcionamento dos juros, incluindo os juros do cartão de crédito (59% dizem não saber quanto estão pagando de juros no cartão).

[ILUMEO, 2018]

Outra grande dificuldade dos brasileiros é entender o que (e quanto) são os rendimentos de seus investimentos. A rentabilidade dos produtos não é amplamente conhecida dos investidores. Apesar da poupança ser um dos principais investimentos dos brasileiros, a grande maioria não sabe quanto esse investimento rende anualmente. E mais uma vez, dentre as pessoas que sabem qual é o rendimento, estão os mais velhos da elite financeira e intelectual (a desigualdade mostra seus efeitos novamente).

[Anbima, 2018]
[B3, 2019]

Em pesquisa realizada pela [B3, 2019], apenas um terço dos investidores acreditam que tem informações suficientes (disponíveis, claras e entendíveis) para poder realizar investimento na bolsa de valores. Na mesma proporção estão as pessoas que confiam na relação que eles tem com as instituições financeiras que eles utilizam. Ou seja, para dois terço do mercado, existe aí um grande ruído de comunicação — nem as informações e nem o relacionamento atual são suficientes para as necessidades dos investidores. Os investidores gostariam de ter informações didáticas, simples e fáceis sobre como e onde investir. A percepção é a de que o “financês” não transmite transparência, o que gera insegurança para iniciar ou mudar de investimento

[B3, 2019]

Para além da desigualdade, há também um grande gap de falta de informações e conhecimentos por parte dos investidores (especialmente em relação aos custos — ex: juros, e benefícios — ex: rendimento, do dinheiro) e existe uma deficiência dos principais players do mercado em prover essa informação e manter uma relação de confiança com estes investidores. Nesse cenário, pensar em como vai ocorrer a curva de aprendizado do investidor é fundamental. A curva de aprendizado é o caminho capaz de fazer investidores menos experientes passar a aderirem a cada vez mais produtos — e não se limitar apenas a poupança.

[B3, 2019]

2. Confiança, motivação e atitude

Quando falamos de letramento, apenas saber não é suficiente, é preciso também aplicar o conhecimento. Segundo levantamento da [Anbima, 2018], existe uma discrepância entre o conhecimento dos entrevistados nos produtos e o quanto eles realmente investem e fazem uso dos ativos.

[Anbima, 2018]
[ILUMEO, 2018]

Uma das questões é o baixo interesse e conhecimento da população na maioria dos ativos de investimentos — o primeiro passo seria então fomentar a cultura de investimentos no Brasil. Segundo levantamento da Anbima, o dinheiro ainda é visto como um tabu nas relações pessoais e, quando mencionado, geralmente é com viés negativo. Mas só gerar conhecimento não é suficiente, pois mesmo os tipos de investimentos que as pessoas já possuem certo conhecimento (como Poupança e Previdência) não são amplamente utilizados — falta ainda melhorar a apresentação dos benefícios de cada um dos ativos, quebrar o estigma de que poupar é um grande sacrifício.

Hoje a comunicação e divulgação de produtos financeiros é diferente dos demais produtos. Se compararmos, por exemplo, com a venda de carros, as propagandas sempre carregam frases otimistas ex: “Você conhece. Você confia”. Já os produtos financeiros, por uma questão do risco inerente, vem com frases mais negativas como “retorno passado não garante retorno futuro” e “esse produto não é coberto pelo FGC”.

[B3, 2019]

No cenário brasileiro começaram a surgir novos players no mercado financeiro, as chamadas fintechs — escrevi um outro texto analisando e comparando os modelos de negócios dessas empresas, que apresentam novas alternativas e métodos de apresentação de serviços financeiros que colaboram para a inclusão financeira. Entretanto, de acordo com a pesquisa, ainda é algo distante para boa parte dos brasileiros (ainda que algumas dessas empresas já sejam bem conhecidas — ex: Nubank e PagSeguro). As novidades do mercado financeiro ainda são algo distante da maior parte da população brasileira.

[ILUMEO, 2018]

Existe uma certa comodidade e conveniência do brasileiro em continuar sua relação com o dinheiro através das grandes instituições financeiros, principalmente através dos grandes bancos — e as opções mais tradicionais (como a poupança). Em levantamento da [B3, 2019], o pouco conhecimento dos investidores sobre outros produtos estava relacionado a fatores como sensação de segurança nas corretoras de valores e outras empresas financeiras, e a confiança que elas possuem nas instituições bancárias.

[Anbima, 2018]
[Anbima, 2018]
[Anbima, 2018]

Entre quem já investe, a principal motivação é a segurança (a imagem do porquinho) — pois acreditam que estão colocando o dinheiro em um lugar seguro. O interessante é que as pessoal preferem a opção em que não perder dinheiro já é melhor do que a possibilidade de ganhar/render qualquer valor.

E se o passado inflacionário e pouco fértil financeiro contribui para um perfil conservador de investimento dos brasileiros, o futuro não é muito promissor. Quando falamos de aposentadoria e previdência, a maioria dos brasileiros se mostram altamente interessados com o assunto — ao mesmo tempo que também reconhecem que não estão preparados para isso. Inclusive, quase a metade do país, espera que o governo garanta as condições para sua aposentadoria.

[Anbima, 2018]

A maior parte das pessoas que não estão bem preparadas para a aposentadoria estão as de menor poder aquisitivo, concentrado-se na classe C. As pessoas possuem dificuldade de pensar suas finanças em uma linha do tempo e conseguir projetá-las para o futuro. Não há ações pró-ativas no presente que sejam capazes de antecipar os problemas financeiros do futuro.

[Anbima, 2018]

3. Comportamentos e Habilidades Financeiras

De acordo com pesquisa da [Iede, 2017], para o professor-pesquisador do programa de pós-graduação em Educação Matemática da Universidade Federal de Juiz de Fora, Amarildo Melquiades da Silva, como o Brasil ainda não tem educação financeira como competência obrigatória nas escolas, os estudantes acabam tendo como principal referência as próprias famílias. “Basicamente, temos duas situações. Há ambientes em que as famílias têm uma certa estrutura, em que os filhos participam das discussões de orçamento. Essas crianças crescem com outra visão do uso do dinheiro. Temos também ambientes nos quais os pais compram tudo a prestação. Temos a suspeita forte de que crianças que crescem nessas casas, mesmo que tenham dinheiro quando crescerem, tenderão a pagar em prestações. Isso é ruim porque, às vezes, o que se paga em juros é suficiente para pagar à vista. Em uma pesquisa qualitativa constatamos que crianças de 12, 13 anos já falavam em comprar a prazo”, diz.

[Iede, 2018]

A principal consequência do mau hábito do uso do dinheiro é o acúmulo de dívidas. Mais da metade dos brasileiros já teve e/ou tem algum tipo de dívida e a grande maioria deles não sabem a quantidade de juros que está pagando nestas dívidas.

[ILUMEO, 2018]

Em compensação, as pesquisas veem retratando uma melhora na relação dos brasileiros com o controle dos seus gastos, ainda que timidamente — metade dos brasileiros dizem que anotam ao menos as principais compras que realizam. Boa parte também acredita que possui gastos supérfluos que poderiam ser cortados do orçamento.

[ILUMEO, 2018]
[ILUMEO, 2018]

O ato de poupar dinheiro ainda é uma grande dificuldade dos brasileiros, principalmente aos mais desfavorecidos (em especial para as as mulheres, com baixa escolaridade e de classe C) — todo o orçamento é gasto com as contas do mês.

[Anbima, 2018]

Em compensação a parcela que possui o hábito de poupar dinheiro está no outro espectro social e econômico — e costumam reservar uma parte de seu dinheiro (ainda que pequena) para aplicar em investimentos.

[Anbima, 2018]

A pesquisa abaixo é da [ANBIMA; DATAFOLHA, 2018]. O que os resultados mostram é que o relacionamento com o dinheiro é um reflexo da visão de mundo das pessoas, da forma como elas encaram a vida, a família, seus relacionamentos pessoais. O dado importante é como o perfil dos brasileiros vem mudando de uma geração para a outra. O pessoal mais velho é visto como Construtor (mais conservador, realista, construir as coisas aos poucos), enquanto as novas gerações são vistas cada vez mais como Planejadores (mais focados no crescimento, em metas, atentos a oportunidades).

A análise das entrevistas revela que os investidores têm medo de colocar o dinheiro em produtos pouco (ou nada) conhecidos. Há uma barreira a ser superada pelos investidores brasileiros: a de experimentar o novo. Para isso, precisam ter ciência de que os riscos de experimentar produtos menos conhecidos não é tão grande quanto parece.

[B3, 2019]

Boa parte das pessoas demonstram cada vez mais interesse em aprender mais sobre o mercado financeiro. Em levantamento [Ilumeo, 2018], as pessoas parecem querer entender cada vez mais sobre economia, e esse interesse vem evoluindo desde 2014.

[ILUMEO, 2018]

A compreensão sobre juros ainda se mostra um desafio, embora a tendência por maior conscientização também exista nesse quesito. Mesmo que grande parte não tenha recebido orientações sobre finanças pessoais, há uma busca autônoma por informações. Sobre opções de investimento, elas continuam conservadoras, ainda que o cenário econômico seja visto com otimismo. Em geral, a pesquisa evidencia uma perspectiva positiva em relação à educação financeira dos brasileiros, um panorama que poderá ser comprovado nos levantamentos dos próximos anos.

Observações:

Em complemento a ideia de desigualdade no mercado de capitais, no levantamento da [B3, 2019] é possível ver o quanto o mercado é desigual, não só na questão social e econômica, mas também na questão de faixa etária, gênero e residência.

[B3, 2019]
[B3, 2019]

REFERÊNCIAS

ANBIMA. Raio-X do Investidor Brasileiro. 2018. Disponível em https://www.anbima.com.br/data/files/AE/31/E6/CB/52A356107653125678A80AC2/Relatorio-Raio-X-Investidor-PT.pdf, acessado em 01/02/2020.

ANBIMA; DATAFOLHA. A relação do brasileiro com o dinheiro. 2018. Disponível em https://www.anbima.com.br/pt_br/especial/relacao-do-brasileiro-com-o-dinheiro.htm, acessado em 01/02/2020.

B3. Ecossistema do investidor brasileiro. 2019. Disponível em http://www.b3.com.br/pt_br/noticias/relacionamento.htm, acessado em 01/02/2020.

IEDE. O que os dados do Pisa mostram sobre Educação Financeira no Brasil? 2018. Disponível em http://www.portaliede.com.br/wp-content/uploads/2018/09/Estudo_Iede_-Compet%C3%AAncia_Financeira-1.pdf, acessado em 01/02/2020.

ILUMEO. Hábitos Financeiros dos Brasileiros. 2018. Disponível em http://midia.repositorioonline.com.br/midia/p1ci84kemh1vdvcn7192t117a1pf5b.pdf, acessado em 01/02/2020.

INEP. Informe de Resultados do PISA 2015. 2017. Disponível em http://download.inep.gov.br/acoes_internacionais/pisa/resultados/2015/pisa_letramento_financeiro_brasil.pdf, acessado em 01/02/2020.

OCDE/INFE. Core Competencies Framework on Financial Literacy for Youth. 2015. Disponível em https://www.oecd.org/daf/fin/financial-education/Core-Competencies-Framework-Youth.pdf, acessado em 01/02/2020.

--

--

Bruno Oliveira
Educação, Finanças & Tecnologia

Auditor, escritor, leitor e flanador. Mestrando em TI, tropecei na bolsa de valores. Acredito nas estrelas, não nos astros. Resenho pessoas e o tempo presente.