6 livros para entender o futebol holandês, segundo o Espreme a Laranja

O jornalista Felipe dos Santos publica, a convite do Futebol Café, as melhores leituras para compreender a essência do ‘voetbal’

Bruno Rodrigues
Futebol Café
10 min readMay 8, 2019

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Futebol, Cruyff e a Laranja (Crédito: Futebol Café)

Em 2017, quando o Futebol Café ainda engatinhava como blog, fui ao Museu do Futebol, no Pacaembu, conhecer a biblioteca do Centro de Referência do Futebol Brasileiro. Lá, bati um papo muito interessante com o Ademir Takara, bibliotecário do museu, sobre alguns dos principais livros do acervo.

Quando me mostrou o livro “De goddelijke kanarie” (“O canário divino”), um relato em holandês sobre o futebol brasileiro, Takara mencionou o responsável por levar aquele título à biblioteca do Pacaembu. Era Felipe Santos, que foi estagiário do Museu do Futebol, um apaixonado pelo futebol neerlandês e que havia adquirido o livro na Holanda. “Felipe é um desses caras geniais. E claro, ele é a única pessoa no mundo que eu conheço que vai ler este livro (risos). Ele está estudando holandês”, disse Takara.

Pois Felipe realmente estudou. Como ele mesmo diz, “fui lunático o suficiente para aprender o idioma”. Depois de alguns anos escrevendo sobre o voetbal para a Trivela, decidiu abrir o próprio blog de futebol holandês, o Espreme a Laranja, onde na função de faz-tudo ele analisa e reporta os principais assuntos futebolísticos do país. Um blogueiro total.

A convite do Futebol Café, Felipe dos Santos formulou uma lista de livros fundamentais para entender o futebol da Holanda e suas idiossincrasias. Metade das dicas, claro, compreendem essa força gravitacional holandesa chamada Johan Cruyff, além de obras sobre a seleção e a relação da forma de jogar dos laranjas com a sociedade neerlandesa.

E só por curiosidade: o livro favorito do Felipe não entrou na lista. Mas isso é assunto para outra hora.

Agarre sua caneca de café e tenha uma ótima leitura!

Brilliant Orange: the neurotic genius of Dutch football, de David Winner (2000)

Um dos livros mais elogiados sobre o jeito como o Brasil encara o futebol foi feito por um... inglês (claro, a referência é a Alex Bellos e ao seu "Futebol: o Brasil em campo"). A mesma coisa aconteceu com a Holanda. Até por ser escrito em inglês, "Brilliant Orange" ganhou muita popularidade pelo mundo. E seu autor, o jornalista inglês David Winner, efetivamente conseguiu mostrar muitas facetas do modo como os neerlandeses se relacionam com a modalidade.

Capa do livro “Brilliant Orange” (Crédito: Divulgação)

A partir de uma admiração profunda pelo país -ganha a partir de uma babá holandesa, que ajudou de modo amável em sua infância, conforme o autor informa no prefácio-, Winner parte para fazer relações entre o futebol e a sociedade naquela nação.

As atuações revolucionárias de Johan Cruyff em campo entre as décadas de 1960 e 1970, muito embora fosse conservador no trato pessoal, e a irreverência dos Provos, grupo de jovens responsável por vários protestos não-violentos (bem, quase...) em Amsterdã, nos anos 1960. A partir do inescapável fato de ser um país abaixo do nível do mar, a obsessão holandesa por aproveitar bem os espaços, presente na ideia do Futebol Total -e nas artes plásticas, na arquitetura etc. A irascibilidade de vários destaques no futebol do país, talvez decorrente do gosto holandês por contestações e debates.

Tudo isso está contido no livro de Winner, a partir de várias andanças e entrevistas pela Holanda -a entrevista com Johnny Rep, atacante da seleção da Copa de 1974, engraçadíssima, já vale o livro. A boa compreensão do "jeito holandês" de levar o futebol fica clara até em sacadas como a numeração caótica dos capítulos, evocando a mencionada "Laranja Mecânica" de 1974.

Lançado em 2000, pouco após a Eurocopa sediada pela Holanda com a vizinha Bélgica, e premiado como o "Livro Esportivo do Ano" pela casa de apostas William Hill no mesmo ano, é certo que "Brilliant Orange" já ficou defasado, 19 anos depois. Ainda assim, segue uma leitura imperdível. Quase item de primeira necessidade, seja você um simpatizante da seleção holandesa ou não.

"Cruijff, Hendrik Johannes, fenomeen", de Nico Scheepmaker (1972) — Última edição, atualizada, lançada em 2016

Obra recebeu atualizações ao longo da carreira de Cruyff (Crédito: Divulgação)

Há muitos livros sobre futebol à venda na Holanda. Sobre Johan Cruyff, o principal personagem esportivo que o país legou ao mundo, então, a variedade é ainda maior. Tem para todos os gostos: de livros com as frases clássicas do maior e melhor jogador de futebol neeerlandês de todos os tempos ("Toda desvantagem tem sua vantagem", "Antes de eu cometer um erro, eu não cometo um erro") até obras focadas em determinados recortes da carreira de Cruyff (por exemplo, a passagem dele pelo futebol dos Estados Unidos, no fim da década de 1970). Separando o joio do trigo, talvez "Cruijff, Hendrik Johannes, fenomeen" -em holandês, "Cruyff, Hendrik Johannes, fenômeno"- seja a mais completa de todas as biografias já produzidas sobre o craque falecido em 2016.

Até porque sua primeira edição saiu exatamente quando o fenômeno Cruyff estava em seu ápice: 1972, ano em que o Ajax foi bicampeão europeu, e ele, o destaque entre destaques, o símbolo absoluto do que o clube de Amsterdã fazia em campo -e do que a seleção faria na Copa de 1974.

Jornalista dedicado ao esporte e colunista destacado, considerado um profissional que sabia ser poético sem deixar a objetividade de lado, Nico Scheepmaker (1930-1990) seguiu Cruyff de perto, entrevistando-o ou não. Por isso, fez uma obra bastante alentada, abarcando praticamente todos os aspectos da trajetória do "Número 14", dentro e fora de campo. Obra tão alentada que continuou sendo atualizada, mesmo após a morte de Scheepmaker, por outros jornalistas. E que segue sendo a biografia mais respeitada sobre o maior símbolo do futebol holandês no mundo.

Das raras obras holandesas sobre futebol que realmente merecia uma tradução em outros idiomas.

Johan Cruyff: My Turn, de Johan Cruyff (2016)

Se tanta gente escrevia sobre Johan Cruyff, por quê não o próprio? Foi assim que, no meio desta década, ele decidiu dar a própria versão de sua história, tendo como ghostwriter um dos jornalistas com quem mais tinha proximidade: Jaap de Groot, editor-chefe do jornal "De Telegraaf", o maior do país. Embora não tenha grandes achados nem grandes revelações, "Mijn verhaal" (em holandês, "meu relato") vale por mostrar o ar honesto com que Cruyff via e revia sua trajetória e o próprio futebol. Tal honestidade já é escancarada na primeira frase do prefácio, feito pelo próprio Johan: "Eu sou alguém sem diploma. Tudo que aprendi na vida foi por meio da prática".

Autobiografia do maior jogador holandês da história (Crédito: Divulgação)

Entre descrições das passagens de sua carreira no futebol, como jogador e como técnico, e observações (Cruyff escalou seu time dos sonhos: Yashin; Carlos Alberto Torres, Beckenbauer, Guardiola e Krol; Di Stéfano, Maradona e Bobby Charlton; Garrincha, Pelé e Keizer), o livro de capa laranja foi uma digna autobiografia, cujos trabalhos foram encerrados pouco antes de um câncer no pulmão matar Cruyff, em março de 2016. Talvez por isso, a publicação ganhou várias edições Europa afora, com os dignos tributos de muitos influenciados por ele: na cerimônia de apresentação da edição inglesa ("Johan Cruyff: My Turn"), Guardiola estava lá.

De certa forma, todas as homenagens justificavam a última frase da autobiografia: "Eu nunca fui compreendido por todos. Fosse como jogador, como técnico e depois dessas duas experiências. Mas tudo bem, Rembrandt e Van Gogh também não foram compreendidos. É o que se aprende: você vai ser importunado até que se consagre como um gênio". Tão petulante quanto autoconfiante: tipicamente Cruyff.

"Het Nederlands elftal: de historie van Oranje 1905-1989", de Matty Verkamman e Johan Derksen (1989)

O lado "almanaque informativo" também está bem presente nas publicações holandesas sobre futebol. Começa com anuários -por exemplo, Ajax e Twente são clubes que produzem os seus próprios, vendendo-os em suas lojas oficiais- e vai até livros mastodônticos, que saem geralmente em efemérides marcantes (para celebrar seu centenário, em 2013, o PSV teve o lançamento de um "livro de mesa", com todas as partidas e fotos de todos os jogadores que vestiram a camisa do time de Eindhoven). E é possível dizer: um grande marco nessa seara de livros estatísticos de futebol na Holanda foi lançado em 1989.

Almanaque com a história da seleção holandesa (Crédito: Divulgação)

A tradução do título "Het Nederlands elftal: de historie van Oranje 1905-1989" é dispensável: já se imagina que o assunto é a história da seleção holandesa, entre 1905, ano do primeiro jogo, e 1989, ano do centenário da federação holandesa.

A "Voetbal International", principal revista de futebol da Holanda, circulando desde 1965 semanalmente, bancou o projeto do livro. E o trabalho foi feito pelo maior especialista em seleção holandesa que se possa imaginar: o jornalista Matty Verkamman, verdadeiro arquivo vivo de tudo que se possa relacionar com a Laranja.

Entre textos especiais (Rinus Michels e Thijs Libregts -este, o técnico da Holanda em 1989) e um prefácio de Cruyff, cada jogo disputado pela seleção dos Países Baixos tinha sua ficha técnica e uma foto posada da equipe neerlandesa para o jogo em questão. A publicação pode não ter sido um sucesso de vendas, mas marcou época para os seguidores holandeses de futebol.

E dali Verkamman partiu para outros projetos ambiciosos sobre a seleção da Holanda, culminando em "Oranje toen en nu" ("A laranja de ontem e de hoje"): uma série impressionante e ambiciosa de 15 livros, iniciada em 2000 e publicada por sua própria editora, ampliando a abordagem na publicação de 1989. Cada jogo tinha texto, fotos, ficha técnica, reação da imprensa para cada partida, fotos e mais fotos. A série foi interrompida em 2016, pelas baixas vendas. Uma pena: é daqueles projetos que deveriam ser obrigatórios em cada país tradicional no futebol.

"Futebol Total", de Johan Cruyff (1974)

Livro foi publicado no Brasil pela editora Nova Fronteira (Crédito: Divulgação)

É o senso comum: a seleção da Holanda só ficou conhecida mundialmente após a Copa do Mundo de 1974, com a campanha impressionante para um país que até então era do terceiro escalão (se muito) do futebol mundial. Muitos torcedores, de muitos países, foram cativados por aqueles jogadores de camisas laranjas. Um deles, o Brasil.

Exatamente por isso "Futebol Total", publicado logo após a Copa, nunca reeditado mas disponível com facilidade nos "sebos de internet", é tão importante: versão em português de "Mundial '74", livro lançado originalmente em espanhol, a publicação da editora Nova Fronteira trazia as impressões de quem mais mesmerizara o planeta dentro de campo. Claro, Johan Cruyff.

Após o prefácio à edição brasileira -de Armando Nogueira, testemunha ocular das atuações holandesas na Alemanha- vinha o texto com depoimentos de Cruyff. Que, como na autobiografia supracitada, já transbordava sinceridade. Por exemplo, no começo, quando Cruyff dizia ter dificuldades em escrever qualquer coisa, preferindo falar. Ou no meio, quando dizia que aquela seleção holandesa se formou com boas doses de coincidência, sem nada planejado antes da Copa. Ou no fim, quando já antecipava: 1974 havia sido sua primeira e sua última participação numa Copa do Mundo, como de fato foi.

"Futebol Total" foi o primeiro e o último livro editado em português com algo a apresentar sobre o futebol holandês.

"Kieft", de Michel van Egmond (2014)

Biografias têm sido um veio de ouro para popularizar a leitura sobre futebol na Holanda. Sejam luxuosas (como a biografia de Dennis Bergkamp, escrita pelo mencionado David Winner, também publicada na Inglaterra) ou mais comuns (como a biografia de René van der Gijp, ex-jogador e hoje popular comentarista em mesas redondas do país), elas atraem a atenção de quem quer saber mais sobre experiências dentro de campo.

A partir disso, poucos relatos foram tão honestos quanto "Kieft", que ganhou o prêmio de "Livro do Ano" para a "União de Divulgação para o Livro na Holanda", em 2014. Em mais uma publicação insuflada pelo apoio editorial da revista "Voetbal International", o jornalista Michel van Egmond ouviu a história notável de Wim Kieft.

Wim Kieft foi atacante entre as décadas de 70 e 90 (Crédito: Divulgação)

Dentro de campo, Kieft não foi um craque como os contemporâneos Gullit e Van Basten, mas teve algum brilho: foi Chuteira de Ouro da Europa na temporada 1981/82, jogou por Ajax e PSV, esteve no futebol italiano (Pisa e Torino), atuou pela seleção da Holanda em uma Copa do Mundo (1990) e duas Eurocopas (1988 e 1992). Tão logo encerrou a carreira, em 1994, Kieft virou comentarista de televisão. O que não se sabia é que, ao parar de jogar, também passara a ter problemas com uso abusivo de cocaína e álcool. Tais vícios só foram contidos com uma internação e acompanhamento.

E Kieft expôs tudo isso, a carreira dentro de campo e os dramas após o fim dela, em seu depoimento a Van Egmond, resultando num best-seller holandês em 2014. Elogiado por ter superado tais problemas, Kieft seguiu sendo comentarista, agora na mesa redonda "Veronica Inside", da emissora televisiva Veronica. E "Kieft" teve uma sequência para abarcar a recuperação: "Kieft: de terugkeer" ("Kieft: a volta"), lançado no ano passado.

Assim como se viu no Brasil, com Casagrande, Kieft mostrou na Holanda como o futebol e os dramas que o pós-carreira podem causar a um ex-jogador sempre chamam a atenção do público.

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