Não ligo para futebol

De autor para autor, Leandro Marçal escreve sobre o livro do argentino Hernán Casciari, recentemente lançado no Brasil

Bruno Rodrigues
Futebol Café
5 min readSep 3, 2020

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A capa de “Não ligo para futebol”, do escritor argentino Hernán Casciari (Crédito: Futebol Café)

Por Leandro Marçal

É fácil reconhecer um associado do clube dos fanáticos por futebol. Basta que um desavisado exclame o título do livro de Hernán Casciari, publicado no Brasil pela Revista Corner, para ver sobrancelhas levantadas, olhos arregalados e cotovelos cutucando braços ao lado. Um ar de espanto toma conta do ambiente. Como assim, não liga para futebol?

Será elitismo pseudointelectual? Ou falta experimentá-lo de verdade para descobrir como é bom gritar gol, como quem aprende tardiamente a apreciar cerveja e pão de alho?

Sem encontrar respostas, um associado do clube dos fanáticos se espanta logo de cara com o nome da coletânea de textos, escrito em verde e preto na capa meio bege, meio branca. Mas é um título enganoso. Nas deliciosas 22 histórias da publicação, o passeio pelo misto de contos e crônicas conduz sua entidade, o leitor, às primeiras lembranças de Casciari aprendendo a torcer pelo Racing com o pai, Roberto.

Com fina ironia e bom humor, essa viagem literária passa pela torcida solitária numa Barcelona fria e distante, antes de pousar de vez na Argentina quando o autor, após um infarto, ouve gritos de gol numa cama de hospital.

Possivelmente, o desavisado do primeiro parágrafo levaria a sério o título do livro e ainda apontaria o dedo contra o autor, acusando-o de pensamentos retrógrados em alguns momentos, como quando Chichita, mãe de Casciari, se interessa menos por futebol do que pelos homens da família, como fariam as mulheres argentinas em geral. Um associado do clube dos fanáticos por futebol rebateria: o escritor expõe a humanidade existente no esporte mais popular do mundo, tão imperfeito como as pessoas, tão passional, errático e injusto como a vida.

Eu pediria a palavra, levantando a mão. Não dá para justificar a naturalização de comportamentos como os do pai do autor, indignado com o filho e um amigo assistindo a um filme sobre arte. Aquilo, pensava o pai, era coisa de mulher, e seu filho tinha que acompanhar o jogo do time de coração. Porque isso sim era coisa de homem. E só de homem.

O próprio Hernán Casciari, hoje, admite vergonha pela postura adotada em alguns textos antigos, com machismos e homofobias camuflados em roupas, pensava ele, bem-humoradas, além de tiradas ironizando comportamentos progressistas que não usa mais. No livro, porém, ainda não havia esse arrependimento.

Muita gente há de se identificar quando o autor deixa claro que seu interesse por futebol foi mera desculpa para se aproximar do pai, no único momento em que algum diálogo entre os dois era possível.

“Eu não ligo para o jogo; eu me importo em estar perto da poltrona dele”, afirma pouco antes de lembrar que o futebol nunca é um monólogo. É difícil não se emocionar com a saudade das ligações do velho Roberto nos últimos minutos de um jogo qualquer. O tributo ao pai falecido é um dos pontos altos do livro.

Se você é dos mais fanáticos, daqueles que lembram datas históricas, é bom saber que ninguém descreveu melhor que Casciari os 10,6 segundos de Maradona driblando até a rainha da Inglaterra na semifinal da Copa de 1986.

Na semana anterior àquela partida, o mundo perdia Jorge Luis Borges, um dos maiores escritores (ou o maior?) da literatura argentina. A referência clara ao conto “O Alephtorna o texto — meio conto, meio crônica — ainda maior, com Diego enxergando cada dia do seu futuro, do futuro dos zagueiros e dos companheiros de seleção, depois de um dos gols mais incríveis que o mundo já viu.

Ainda falando em Copas do Mundo, é baseado nelas que Casciari esboça uma nova teoria sobre os horóscopos. É de fato mais coerente definir os signos de acordo com as Copas do que usando inofensivos Peixes, Touro, Câncer e outros desenhos coloridos do zodíaco.

Eu mesmo fiz as contas e percebi que fui concebido em meio à raiva brasileira contra o time de Lazaroni, eliminado no Delle Alpi. Por isso, meu signo é Itália-90. Deixei de lado o Peixes com ascendente em qualquer coisa. Pode não fazer muito sentido, mas é para isso que servem os signos.

E só poderia vir de um escritor argentino a analogia “Messi é um cachorro”. Porque é a pura verdade: o jogador de futebol mais comentado dessas semanas, e desses meses, e desse século, pensa só na bola, e só na bola, como Totín, o cachorro da infância de Casciari, só pensava em brincar com uma esponja, e só com a esponja.

O mundo seria melhor se agíssemos como Messi e Totín, atrás de bolas e esponjas, e menos como os burocratas, pensando em regras, números e planilhas de Excel.

“Não ligo para futebol” não é só sobre futebol. É sobre a relação de cada um de nós com essa criação tão humana, com deuses tão próprios e regras nem tão claras assim. Porque só os associados do clube dos fanáticos por futebol sabem que a bola correndo para lá e para cá fala mais sobre pertencimento e transcendência do que sobre ganhar e perder.

Como associado ingrato, que também já fingiu não ligar tanto para futebol, indico a leitura também aos incrédulos, que levam a sério a frase escrita em verde e preto na capa meio bege, meio branca. O futebol pode ser amargo como uma boa cerveja ou ter sabor de espera, como um pão de alho. As 175 páginas de “Não ligo para futebol” deixam claro: os associados do clube de fanáticos por futebol de todo o mundo têm muita história para compartilhar.

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