“O grande feito da geringonça foi a reposição dos direitos e salários”

José Antonio Lima
Geringonça Pt-Br
Published in
5 min readMay 25, 2018

Para a jornalista Sónia Sapage, a coalizão de esquerda que governa Portugal tem o que celebrar, mas sua manutenção é ainda muito incerta

Protesto da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses em janeiro de 2015, contra o governo de Passos Coelho (Divulgação / CGTP)

Editora de política do jornal Público, um dos mais importantes de Portugal, Sónia Sapage acompanhou de perto a formação, em 2015, da “geringonça”, o governo das esquerdas portuguesas, e a atuação dos partidos que integram o acordo. Em sua avaliação, a principal conquista do executivo liderado por António Costa, do Partido Socialista (PS), foi reverter as medidas de austeridade impostas por seu antecessor, Pedro Passos Coelho, do Partido Social Democrata, e ainda assim manter a economia nacional em boas condições.

Em entrevista exclusiva ao Geringonça Pt-Br, ajornalista lembra, no entanto, que a manutenção da aliança entre os partidos formadores da “geringonça” pode ser complicada a partir das eleições de 2019, nas quais o PS deve se fortalecer e, eventualmente, até conquistar uma maioria que permita governar sem o apoio do Partido Comunista Português, do Bloco de Esquerda e do Partido Ecologista Os Verdes. “Com um PS mais robustecido, tanto o PCP como o PEV como o BE sabem que já não terão tanta força para influenciar as decisões do governo”, diz.

A “geringonça” é um acordo inédito entre partidos da esquerda portuguesa, envolvendo inclusive PS e PCP, que costumavam ter relações ruins. O que possibilitou a formação dessa aliança?

Os acordos são, de fato, inéditos. É como se se tivesse passado uma esponja na rivalidade histórica entre os socialistas e comunistas, que vinha dos tempos do 25 de Abril e do papel que cada um desempenhou na Revolução dos Cravos e depois dela. Foram possíveis em 2015 porque havia um objetivo comum aos quatro partidos, PS, PCP, PEV e BE: expulsar a direita do poder.

O governo de Pedro Passos Coelho e de Paulo Portas representou um período de grande contenção e austeridade no país (por força das imposições da troika) e fazê-lo cair transformou-se numa espécie de cola para unir a geringonça. A reposição de rendimentos e direitos perdidos nos anos anteriores foi o desígnio comum à esquerda. Mas apesar de inéditos, estes acordos nem sempre são fáceis.

Contra os prognósticos mais pessimistas, a “geringonça” não apenas sobreviveu como tem feito um governo elogiado. Quais são os principais feitos da geringonça até aqui?

O grande feito da “geringonça”, da qual a esquerda nunca farta de se gabar, foi justamente a reposição de direitos e rendimentos. Esse processo implicou que fossem revertidas algumas medidas tomadas pelo anterior governo, umas mais importantes que outras. Por exemplo, foram repostos os quatro feriados retirados em 2012, os pensionistas tiveram pequenos aumentos graduais, o horário de trabalho na Função Pública regressou às 35 horas semanais, o salário mínimo foi aumentado, a sobretaxa do IRS (imposto sobre pessoas singulares) foi eliminada por etapas, alguns cortes nos apoios sociais foram revogados.

Com alguma sorte, a economia reagiu bem a essas mudanças e o desemprego começou a descer, o déficit de 2017 ficou em 0,9% (se excluirmos a recapitalização da CGD, que é um banco público), o país saiu do Procedimento de Déficit Excessivo que poderia acarretar sanções europeias e a economia cresceu 2,7% no último ano, o que não acontecia desde 2000.

Sapage: as diferenças começaram a aparecer na “geringonça” (Reprodução/Twitter)

E quais são os principais problemas desse governo?

Atualmente, o principal problema que o governo tem pela frente tem a ver com o Orçamento do Estado para 2019, que será o último da “geringonça”. A esquerda quer aumentar os funcionários públicos e o governo ainda não foi claro em relação ao que fará. A oposição pede maior investimento em serviços públicos (sobretudo na Saúde) que ainda sofrem com a austeridade, mas o ministro não tem dinheiro suficiente.

As regras do descongelamento das carreiras de professores, por exemplo, são um problema sem fim à vista. E a estratégia das cativações (gastos do Estado que ficam dependentes do aval do ministro das Finanças) divide profundamente os parceiros de geringonça.

As diferenças entre os quatro partidos, que ao início foram esbatidas em benefício do bem maior que era retirar a direita do poder, começam a aparecer. Uma delas tem a ver com a legislação laboral. A esquerda gostaria de avançar para uma reforma desta lei, mas o executivo de António Costa não mostra interesse nisso. O PCP acusa-o até de, nesse campo, estar cada vez mais próximo do CDS e do PSD. Recentemente, o PS uniu-se a estes dois partidos, na Assembleia da República, para derrubar o horário de trabalho semanal de 35 horas também na iniciativa privada.

Alguns comentaristas e até políticos afirmam que a repetição de uma aliança como a atual seria improvável ou até impossível. Qual é a sua avaliação sobre isso?

Não é por acaso que todos dizem que é improvável. É porque já não há um inimigo comum a combater. A direita já não governa, nem está a crescer perigosamente, nas sondagens. Pelo contrário, o PS já esteve várias vezes à beira da maioria absoluta.

Apesar disso, o primeiro-ministro sempre diz que mesmo que venha a ter maioria absoluta vai convidar a esquerda a fazer acordos. Mas a verdade é que com um PS mais robustecido, tanto o PCP como o PEV como o BE sabem que já não terão tanta força para influenciar as decisões do governo.

O PS lidera as pesquisas de intenção de voto. Qual é a estratégia do PSD e do CDS-PP para contrapor o PS e a geringonça?

Pergunta difícil. A estratégia do PSD parece ser recentrar-se: recuperar o seu lugar ao centro no espectro político português, aproveitando que o PS está mais virado para a esquerda. Mas estará mesmo? Os socialistas têm visões distintas sobre onde o partido se deve posicionar, se mais ao centro-direita ou mais à esquerda.

De qualquer modo, o líder do PSD, Rui Rio, tentou aproximar-se do PS para lhe roubar eleitorado. Uma das estratégias já implementadas passou pela assinatura de dois acordos com o governo, em matéria de descentralização de competências para as autarquias locais e de fundos europeus.

A oposição que Rui Rio tenta fazer é mais responsável e tem mais em conta os interesses do país do que do partido, segundo o próprio. Do lado do CDS a estratégia seguida é a de ganhar visibilidade pública, apresentar propostas legislativas, estar sempre em cima do acontecimento, crescer à custa do PSD e criticar o PSD pelos acordos que tem feito com o governo, assumindo-se como o único partido verdadeiramente alternativo ao PS.

O governo de Portugal conseguiu equilibrar o orçamento e, ao mesmo tempo, rechaçar a política de austeridade. A geringonça poderia servir de modelo para outros países europeus? E para o Brasil?

Houve países que já estiveram em Portugal a estudar a “geringonça” na tentativa de a importarem, como aconteceu no início de 2017, com membros do Partido Trabalhista holandês. Mas não conseguiram. Na Europa, os governos de esquerda não estão nos seus melhores dias — o caso português é uma exceção. E também não estou certa de que esta seja a solução para todos os males do mundo. Depende sempre, e muito, dos intervenientes.

--

--

José Antonio Lima
Geringonça Pt-Br

Jornalista e professor. Doutorando em Relações Internacionais (USP). Oriente Médio, jornalismo e política.