“Política se faz com diferentes e dessa máxima às vezes a esquerda se esquece”

Irene Rezende
Geringonça Pt-Br
Published in
4 min readMay 21, 2018

Até agora, a “geringonça” tem resultados positivos, diz Francisco Carlos Palomanes Martinho, professor da Universidade de São Paulo

António Costa (PS), Jerónimo de Sousa (PCP) e Catarina Martins (BE): diálogo

A Geringonça Portuguesa, apelido da união das esquerdas que governam Portugal desde 2015, é uma experiência transformadora e que, passados mais de dois anos de seu início, é até agora um sucesso, apesar da desconfiança com que foi encarada ao se formar.

O diagnóstico é de Francisco Carlos Palomanes Martinho, professor livre-docente do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP). Português de nascimento, Martinho avalia que o acordo travado entre os principais partidos de esquerda de Portugal pode servir como modelo para outros países, inclusive o Brasil, ainda que a distância e o pouco conhecimento do brasileiro sobre a política portuguesa possam atrapalhar.

Leia a íntegra da entrevista:

Do ponto de vista histórico, a Geringonça é inovadora por representar uma inédita união das esquerdas em Portugal. Como o senhor avalia esse fenômeno?

A Geringonça de fato é uma novidade e pode inspirar experiências similares em outros países. Trata-se de um governo do Partido Socialista (PS) com sustentação parlamentar do Partido Comunista Português (PCP) e do Bloco de Esquerda (BE). Esse ineditismo causou algum ceticismo em parte dos observadores políticos e a esperança de queda do governo, que é comum em regimes parlamentaristas, entre os partidos à direita do espectro político, o Partido Social Democrata (PSD) e o Partido Popular (PP). No entanto, passados dois anos, verifica-se um governo com estabilidade política e bons índices de aprovação. Acho que é um acontecimento muito interessante, pois demonstra a capacidade de diálogo entre campos políticos que nem sempre estiveram juntos, pelo contrário.

Como a mídia portuguesa recebeu a Geringonça e como ela é tratada atualmente?

A mídia portuguesa tem um comportamento mais democrático e plural que a mídia brasileira. Quando da eleição do novo governo houve espaço para críticos e apoiadores. Tem sido assim até o momento e a probabilidade é continuar desse modo. Há sempre espaço para o contraditório.

Qual é o papel particular do primeiro-ministro Antonio Costa na Geringonça? Até que ponto a experiência dele como presidente da Câmara de Lisboa influenciou a articulação?

É fundamental. Trata-se de um primeiro ministro “em grande”, como se diz em Portugal. Negociador, afeito ao diálogo, António Costa soube agregar os setores mais progressistas do PS. E sim, o fato de ter sido um presidente da Câmara de Lisboa com bastante êxito favoreceu sua autoridade para negociar. Mas é bom lembrar que Costa sempre teve esse perfil.

Foi assim, por exemplo, no governo António Guterres (atual secretário geral da ONU) quando ocupou os cargos de Secretário de Estado de Assuntos Parlamentares e depois ministro da Justiça. E também no governo José Sócrates, quando foi ministro da Administração Interna. Enfim, tinha já um currículo que lhe dava estatura política para uma negociação que parecia mais difícil do que na verdade afinal foi.

Passados mais de dois anos da experiência, como você analisa o desempenho da Geringonça até aqui?

O desempenho é, no fundamental, muito bom. É bom lembrar que o país cresceu e cumpriu todas as metas da União Europeia aumentando os gastos públicos. Ou seja, agindo na contramão da cartilha liberal.

Como o senhor avalia a perspectiva de a Geringonça continuar funcionando em um eventual novo governo?

Essa é uma pergunta mais difícil. Como cidadão eu torço para que a Geringonça vire com governo de coalizão à esquerda, com participação ativa do PCP e do BE em cargos de gestão. Mas dependerá do maior ou menor crescimento desses dois partidos. Caso tenham votações pequenas será difícil.

De que forma o passado autoritário português influencia a política atual? O senhor acha que esse passado será sempre determinante na vida política?

O passado, como é evidente, sempre deve ser considerado. Mas no caso português o legado autoritário é menor do que muitos imaginavam. Lembro-me de um artigo do Eduardo Lourenço chamado A Nau de Ícaro, se perguntando sobre o que seria de Portugal pós-colonização, como se adaptaria às novas circunstâncias. Adaptou-se rápido e muito bem.

A integração à Europa ajuda na superação desse passado. Os índices sociais e econômicos são inequívocos nesse sentido. E não há uma rejeição formal de feição popular à Europa. Outro aspecto importante é que não há, entre os partidos com representação parlamentar na Assembleia da República, nenhum que se reivindique continuador do salazarismo. Isso é bom.

O que a esquerda brasileira tem a aprender com a experiência portuguesa?

Nesse caso sou mais cético. Apesar da proximidade cultural, creio que a distância geográfica e o pouco conhecimento do brasileiro médio em relação a Portugal não ajudam. Ainda assim, se é para ter esperança então evidentemente ela está no exemplo do diálogo. Política se faz com diferentes e dessa máxima às vezes a esquerda se esquece.

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