O Regime Diferenciado de Contratações e os laboratórios de inovação

Desbravando terreno para um caminho promissor, mas pouco (ou nada) utilizado, para acelerar a inovação em governo.

Leonardo Santanna
Inovação em governo e no controle
9 min readOct 6, 2020

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As contratações de governo são um caminho para o atendimento de necessidades públicas. A Administração, no entanto, não tem como e nem pode fazer tudo. Muito do que tem liberdade para fazer poderia ser feito de forma mais eficiente com o apoio do setor privado, da Academia ou terceiro setor.

Para isso, regimes de parcerias e contratações públicas inovadores deveriam ser utilizados com mais frequência. No entanto, sabemos que não é essa a realidade brasileira. A impressão é de que compras públicas são sinônimos de procedimentos engessados e sem parâmetros de controle bem definidos.

Mas há boas notícias. Experiências em contratações inovadoras vem se mostrando promissoras ao redor do mundo. E o Laboratório de Inovação do Ministério Público do Rio de Janeiro (Inova_MPRJ) vem as acompanhando de perto, estudando e desenvolvendo protótipos de contratações experimentais — sempre com a ideia de que cabe às Instituições de Controle liderar pelo exemplo, destravando o chamado “apagão de caneta”.

Para compartilhar nossos achados, inauguramos uma série de posts que abordarão reflexões e práticas inovadoras em contratações públicas. Neste primeiro post, exploramos o potencial do Regime Diferenciado de Contratações para fortalecer a agenda de inovação no país.

Uma alternativa necessária

Ano de 2007. O Brasil é escolhido para sediar a Copa do Mundo de 2014. Dois anos depois, o país anuncia que hospedará outros dois eventos de proporções mundiais: os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016.

Um extenso cronograma de obras de grande magnitude é estabelecido entre a União, estados e municípios, incluindo a construção de estádios desportivos e reformas de aeroportos. Com a data dos eventos se aproximando, surge o debate sobre a necessidade de um regime de contratações públicas alternativo. Um que fosse mais moderno do que a Lei n. 8.666/1993, e acima de tudo, mais veloz.

Com essa finalidade, o Executivo editou a Medida Provisória (MP) n. 527 em março de 2011. Posteriormente convertida na Lei n. 12.462/2011, a MP instituiu um regime de contratações exclusivamente voltado às obras destinadas à Copa e às Olímpiadas: o Regime Diferenciado de Contratações — RDC.

Inspirado na legislação estadunidense e europeia e na Lei do Pregão, o RDC nasce com a missão de aprimorar e simplificar mecanismos de contratação previstos na Lei n. 8.666 e criar outros, abrindo espaço para aquisições públicas mais ágeis — sem deixar de lado a segurança jurídica, a isonomia e a competividade.

Com o RDC, passa a ser possível, por exemplo:

  • estabelecer prazos mais curtos para a publicação de editais de licitação, em comparação com os previstos na Lei n. 8.666;
  • unificar a fase recursal nas licitações, em contraposição às diversas hipóteses e momentos de impugnação previstos pela Lei n. 8.666;
  • inverter as fases de julgamento e habilitação — contrastando com a Lei n. 8.666, que condiciona o julgamento das propostas à prévia habilitação;

Como nem tudo são flores, o regime trouxe consigo questões criticáveis do ponto de vista da transparência e controle. A possibilidade de impor sigilo à estimativa orçamentária de licitações e o mau uso das contratações integradas são alguns exemplos.

Indo (muito) além de acelerar obras

O RDC é conhecido quase exclusivamente por “acelerar” as obras da Copa ou das Olímpiadas. Mas não se restringiu a isso. As diversas vantagens do regime provocaram discussões legislativas que resultaram na extensão de sua vigência e aplicabilidade a temas considerados essenciais em importantes agendas públicas.

O novo regime se transformou no ponto de partida para o intuito de reformar o paradigma de contratações até então existente, exercendo uma espécie de força gravitacional sobre esses temas essenciais. Em 2012, foi a vez da saúde pública. Obras e serviços de engenharia no âmbito do SUS se tornaram passíveis de contratação pelo RDC (art. 1º, inciso V da Lei n. 12.462/2011).

Em 2015, mais três temas fundamentais passaram a poder ser contratados por meio do regime: ações no âmbito da segurança pública, obras relativas aos sistemas prisional e socioeducativo e de infraestrutura e mobilidade urbana (incisos VI e VII).

Não foi por acaso que o RDC ganhou destaque com a chegada da pandemia do coronavírus. Por meio da Medida Provisória 961, o Governo ampliou a aplicabilidade do regime a contratações de quaisquer obras ou serviços, enquanto perdurar o estado de calamidade provocado pela COVID-19.

A hora e a vez da inovação

Em 2016, outro tema essencial entrou no rol do RDC: a inovação (inciso X). A inclusão fez parte de uma das diversas alterações promovidas pelo Novo Marco Legal da Inovação, norma que aperfeiçoou o desenho institucional do país em relação ao tema.

De acordo com o novo inciso, ações em órgãos e entidades dedicados à ciência, à tecnologia e à inovação passariam a ser contratadas exclusivamente por meio do regime. A alteração, contudo, apenas materializou uma finalidade que o RDC já possuía desde sua criação — a de estimular a inovação.

Por um lado, nada mais intuitivo que instituir um regime de contração mais ágil e moderno para ações públicas inovadoras. Por outro, tratou-se do reconhecimento pelo legislador de que a promoção de inovação pelo governo é decorrência do dever constitucional de eficiência, e, por isso, obrigação do Estado.

Não poderia ser diferente. Quase todas as criações importantes para a vida pública são originadas por ações inovadoras. Desde vacinas a métodos de ensino ou modelos de desenvolvimento sustentável. E o Estado tem o dever de fomentá-las sempre que possível. (Não apenas quando grande eventos ou pandemias exigem, às pressas, a cura de doenças ou novas formas de contratação).

Laboratórios e RDC: uma combinação promissora

Reunião com convidados para discutir iniciativas de contratação inovadora no Brasil.
Reunião com convidados para discutir iniciativas de contratação inovadora no Brasil.

Reconhecida a importância da inovação como política pública essencial, entraram em cena nos últimos anos os laboratórios de inovação em órgãos de governo e controle. Voltados a prospectar tendências e promover a experimentação controlada de ações inovadoras no setor público, os laboratórios têm o potencial de estimular novas formas de contratação.

No Inova_MPRJ, tivemos a primeira oportunidade para colocar essa visão em prática com o desenho da contratação destinada ao gerenciamento do Impacta, programa de inovação aberta desenvolvido pelo Laboratório para o MPRJ. O objetivo era que a contratação do parceiro que gerenciará o programa fosse inovadora em si mesma e mais veloz que as tradicionais.

Por isso, criamos e defendemos uma tese audaciosa: a de que o RDC era cabível para a contratação. Tudo com base no citado art. 1º, inciso X da lei que instituiu o regime, dispondo que o RDC é cabível para contratar ações em órgãos e entidades dedicados à ciência, à tecnologia e à inovação.

Ao final, prevaleceu a tese do Laboratório. Mas, como toda tese audaciosa, o processo rendeu bons debates internos (confira o termo de referência da contratação do Impacta, o parecer da Assessoria Jurídica e a resposta do Inova_MPRJ). Sobretudo, aproveitamos a oportunidade para refletir sobre a própria natureza dos laboratórios de inovação em governo e sua posição estratégica para estimular ações inovadoras no setor público.

Boas perguntas

O Laboratório de Inovação do MPRJ é um órgão e, como todo órgão, não é dotado de personalidade jurídica — por isso, não pode contratar por si só. Mesmo para serviços destinados a viabilizar as ações do Laboratório, o contratante é a entidade à qual ele é vinculado. E o MP, como órgão integrante da estrutura da entidade Estado do Rio de Janeiro, não é, ele todo, dedicado à inovação.

Assim, surge a dúvida: poderia uma entidade cuja missão exclusiva não é ciência, tecnologia e inovação utilizar o RDC para contratar “ações de” um de seus órgãos (o Laboratório) — este sim, criado e dedicado à inovação?

Caso afirmativa, a resposta conduziria a outras perguntas. Bastaria que todo e qualquer ente da Administração Pública criasse um órgão dedicado à ciência, tecnologia e inovação para, assim, utilizar o RDC em contratos relacionados às suas ações? Nesse e em outros casos, qualquer ação conduzida pelo laboratório poderia dar ensejo a uma contratação pelo RDC? Em qualquer das hipóteses, não se estaria criando um risco de fraudes?

Lado sombrio

Para responder certas perguntas, nada melhor do que imaginar o pior cenário possível caso as respostas sejam afirmativas. Uma espécie de Lado Sombrio.

Por um momento, imagine que uma prefeitura qualquer crie um órgão destinado à inovação. E que todas as contratações da prefeitura comecem a passar por ele. Diz o gestor que é para que sejam contratações “mais eficientes” do que quando realizadas por outros regimes ou outros órgãos da administração — tudo com fundamento no mesmo inciso X citado acima.

Seria realmente o pior cenário. Claramente se trataria de desvio de finalidade. Mas esse cenário pode ser evitado, e evitá-lo passa por algo fundamental e intrínseco à própria agenda de inovação no Brasil: a construção do conteúdo mínimo do que de fato seja uma ação de inovação e um órgão dedicado à inovação.

Quanto aos órgãos dedicados à inovação, o primeiro componente desse conteúdo é a criação do órgão mediante ato formal, com a descrição de como sua missão, objetivos e atividades são vinculados à inovação. Outra prática fundamental é criação e documentação de um método de trabalho que permita, de fato, a construção de soluções inovadoras.

Em relação às atividades desses órgãos, todas devem ser precedidas de plano de trabalho detalhado. E deve ser regra que esse plano de trabalho esteja online, visível e auditável (vale conferir o post abaixo) por qualquer interessado — da sociedade civil aos órgãos de controle.

Para as contratações via RDC, é necessário que o órgão demonstre, ainda, que se trata de ação vinculada às suas finalidades (entre as descritas no ato que o criou). Além disso, para ser de fato uma ação inovadora, precisa ter o potencial de resultar em produtos, serviços ou processos inovadores — em linha com o que diz a Lei da Inovação.

No caso do Inova_MPRJ, sendo o Impacta um conjunto de ações inovadoras (a inovação aberta é isso, por excelência!) realizado por órgão cuja resolução de criação estabelece como dedicado à inovação, não havia dúvidas. Mais do que possível, era recomendável a adoção do RDC.

Até onde um órgão pode ir?

Ainda assim, persistiria outra pergunta, sobre se órgãos poderiam contratar. Para ela, vale uma simples regra de interpretação: não há palavras inúteis na lei. O inciso X menciona ações em “órgãos”, ao lado da menção a “entidades”. Sabendo que órgãos não possuem personalidade jurídica, o que fez o legislador foi privilegiar o conteúdo em vez da forma.

O emprego da expressão “órgão” pelo dispositivo não se deve ao acaso, e nem objetiva alterar a teoria do direito administrativo. Incluído na Lei do RDC pelo Novo Marco Legal da Inovação, o inciso X materializa os princípios que informaram a edição do Novo Marco. Dentre eles a descentralização e desconcentração das atividades de ciência, tecnologia e inovação em cada esfera de governo, o incentivo à constituição de ambientes favoráveis à inovação e a utilização do poder de compra do Estado para fomento à inovação.

Sendo inovadora a ação do órgão dedicado à inovação, a entidade que o abriga pode fazer uso de sua capacidade contratual com o RDC — como já faz para qualquer serviço ou produto destinado a instrumentalizar a atuação de seu laboratório (órgão).

Por fim, abre-se caminho para outra reflexão. Quais seriam os riscos de uma interpretação extensiva da norma do art. 1º, inciso X? A Lei do RDC prevê procedimento de seleção tão ou mais isonômico e competitivo que a Lei n. 8.666 — não se trata de hipótese de dispensa ou inexigibilidade de licitação, vale ressaltar.

Um exemplo é a contratação do próprio Impacta: aberta a interessados de todo o Brasil, criando maior competitividade entre participantes do que o regime da Lei n. 8.666. A adoção do RDC permitirá que a licitação ocorra em ambiente digital, facilitando a participação de interessados de todo o país — enquanto a Lei n. 8.666 exigiria procedimento presencial (em meio à uma pandemia).

O RDC é uma ferramenta para a inovação, um estímulo para que entidades tenham agendas e órgãos destinados à verdadeira inovação em governo. E, tratando-se de um estímulo contratual, nada melhor do que órgãos de controle para dar o exemplo. Esse é um bom caminho para superar o apagão de caneta e promover a segurança jurídica necessária para destravar essa agenda.

A inovação pede passagem — também em contratações.

E você, vê outra aplicação interessante do RDC para a agenda de inovação no setor público? Conhece algum outro caso de sua utilização por Laboratórios de Inovação? Já pensou em sua aplicação para Contratos de Impacto Social?

Exploraremos essas e outras questões nos outros posts desta série, em breve. Até lá, compartilhe conosco a sua visão sobre contratações públicas inovadoras. Queremos te ouvir. Encaminhe um e-mail para inova@mprj.mp.br.

Com: Bernardo Chrispim Baron, Beatriz Ferreira, Breno Gouvea, Daniel Lima Ribeiro, Gabriel Delman, Júlia Rosa, Letícia Albrecht, Manuella Caputo, Marcelo Coutinho e Matheus Donato.

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