Crimes imaginários: deslealdade (Parte 6)

Míriam Medeiros Strack
Published in
4 min readFeb 27, 2019

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(Este é a sexta parte de uma série de textos sobre crimes imaginários. Se você não leu os textos anteriores, leia aqui: parte 1, parte 2 e parte 3, parte 4 e parte 5).

Conforme crescemos e vamos nos tornando adultos, a separação dos pais é iminente, tanto a separação física quando a separação de ideias e ideais. Semana passada falei sobre o crime imaginário de abandono, que é quando nos separamos fisicamente da família. O texto de hoje fala sobre o crime imaginário de deslealdade, que é quando há separação entre as ideias da família e as nossas.

Quando ousamos pensar diferente dos nosso pais, podemos sentir que estamos sendo desleais a eles. Assim, o quinto crime imaginário é a deslealdade. Esse crime, junto com o abandono, faz parte da culpa da separação.

“Culpa de separação… é a crença infantil, inferida através da experiência, de que, se a criança se torna mais independente, estará magoando os pais” (1).

A coisa mais comum e esperada que existe é que nós nos tornemos independente dos nossos pais, seja financeiramente, seja emocionalmente. Porém, os pais esperam que os filhos reproduzam os ensinamentos que lhes foram passados, sejam esses ensinamentos valores, preceitos religiosos, crenças, posicionamento político, filosófico, etc. Eles também tem certas expectativas em relação aos filhos, em relação aos seus comportamentos e escolhas.

Sendo assim, quando os filhos violam de alguma forma essas expectativas e desejos dos pais, podem se sentir culpados por deslealdade. Caso o filho decida adotar outra religião, outro posicionamento político, casar com alguém de raça ou classe diferente, escolher uma profissão que não foi a sonhada pela família, escolher não dar continuidade à empresa dos pais, etc, pode sentir que não está sendo leal aos pais, principalmente se esses demonstrarem algo que confirme isso.

Outra forma mais sutil de se sentir desleal é criticando os pais, principalmente se esses não aceitarem bem essas críticas. Conforme crescemos, percebemos que os pais não são aqueles heróis da infância e que eles também têm defeitos. Para muitos pais é difícil aceitar que seus filhos percebam esses seus defeitos, pois acham que os filhos devem sempre elogia-los, independente do que façam.

Além da crítica direta aos pais, muitos filhos podem se sentir desleais ao falar dos defeitos dos pais para outras pessoas de fora da família. É possível que para si eles aceitem os defeitos dos pais, mas não conseguem admiti-los para outros. É por isso que tantas pessoas tem receio de fazer terapia, pois terão que falar abertamente para uma terceira pessoa que seus pais podem ter cometido erros.

O fato de falar abertamente sobre os defeitos dos pais pode ser muito doloroso para algumas pessoas. Caso elas tenham idealizado uma imagem de pais perfeitos, desconstruir essa imagem pode causar uma sensação de traição muito grande.

As consequências pelo crime imaginário de deslealdade afetam principalmente o processo de criação de identidade. A pessoa pode vir a ter grandes dificuldades em criar suas próprias convicções e tomar suas próprias decisões. Como tem medo de ser desleal aos pais, pensa sempre em qual decisão os pais gostariam que tomasse e compara, inconscientemente, com aquela que gostaria de tomar por si próprio. Se forem conflitantes, a culpa pode não deixar que a pessoa tome a decisão que deseja. E caso ela consiga decidir por si, pode ser que adote comportamentos e pensamentos punitivos, para se expiar da culpa.

Esses pensamentos e comportamentos punitivos podem ser tristeza constante, não se permitir ter prazeres, pensamentos negativos em excesso e sem fundamento, auto sabotagem e, até mesmo, depressão ou ansiedade.

Essa dificuldade em tomar decisões também pode trazer as pessoas uma enorme falta de confiança em si mesmos, bem como uma baixa auto estima, que sabemos que podem desencadear outros problemas psicológicos.

Além disso, quando a culpa por deslealdade é grande demais, podemos adotar comportamentos e escolhas similares aos nossos pais para que continuemos a ser leais a eles, ao invés de suplantá-los. Por exemplo, uma pessoa que viu os pais em um relacionamento conjugal ruim pode atrair para si relacionamentos similares, para se manter leal à eles. Caso contrário, caso consiga um relacionamento melhor, além de se sentir desleal, pode sentir que está suplantando os pais.

Em breve falaremos sobre como os crimes imaginários se relacionam entre si. Por enquanto, na semana que vem, teremos o últimos dos crimes imaginários: a maldade básica.

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1 WEISS, Joseph apud LEWIS, Engel. Crimes imaginários. Por que nos punirmos e como interromper esse processo. São Paulo: Nobel, 1992. p. 75.

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Míriam Medeiros Strack
Introverso

Escritora, professora, bailarina, artista. Falo sobre consciência emocional, consciência corporal e autenticidade. Insta: @miriam.mest