Tá todo mundo mal?

Este texto foi escrito ao som das músicas desta playlist (fique à vontade para ouvir enquanto lê).

Se você está na universidade ou conhece quem esteja, certamente já ouviu alguém desesperado perguntando “atestado vale?”, “até quando pode trancar?”, “será que o professor vai aceitar fora do prazo?”, “qual limite de faltas?”, “se ficar mais de seis anos é jubilado?” ou já deu de cara com um post sobre “universitário só se fode”, “graduação da depressão” e memes sobre virar a noite, procrastinar, tomar remédios e ansiedade.

Procrastinação — Tales of Mere Existence de Levni Yilmaz

Pode parecer enrolação e irresponsabilidade juvenil, mas a coisa é séria e a discussão é urgente. Será que vivemos uma época em que todo mundo está mesmo mal?

Estudo (na universidade) desde 2009. E para me formar (nem sei se isso existe) devo ir no mínimo até 2019. Dez anos, três universidades diferentes, quatro cursos. É difícil explicar, porque é difícil entender o que acontece.

O que sei é que, no meio das minhas dificuldades, acompanhei uma transformação no ambiente universitário. Antes era das poucas que estava sempre atrás de um trancamento especial, cancelamento de disciplina, enviando e-mail para professores em busca de alternativa. Com exceção de um ou outro problema de algum aluno, tudo corria mais ou menos nos conformes.

Agora a cada vez que faço isso me contam os professores que sou a décima pessoa que os procura com o ‘mesmo problema’. Será mesmo que são os mesmos problemas? O que aconteceu para estar todo mundo enlouquecido, desesperado, desanimado, atrapalhado? Pra ninguém dar conta de entregar um trabalho no prazo? Frequentar as aulas? Ler os textos? Estudar? Participar?

Tudo causado pelo aumento dos casos de transtornos mentais, como depressão, síndrome do pânico, ansiedade… Resposta tentadora, não? Restaria entender o que levou a esse aumento. Mas será mesmo que é “só” isso?

Os sofrimentos são marca de época. Não se sofre hoje nem da mesma forma nem pelos mesmos motivos que os modernos ou os antigos. O modo de sofrer é uma coisa complicada: ao mesmo tempo que é o mais íntimo e individual que se tem, é uma expressão cultural, parte do contexto social.

Não pode ser que, de repente, do nada, todo mundo tenha tido um desajuste de serotonina, endorfina ou outras substâncias. Se a causa não é estritamente química, a solução não deve passar por aí também. Ou ao menos não só por aí. Gosto muito desse parágrafo de “Além da Depressão”, do psicanalista inglês Darian Leader:

A vida interior do sofredor não é examinada, priorizando-se as soluções medicamentosas. Seguir as instruções para tomar comprimidos passa a ser mais importante do que examinar as relações reais da pessoa com os comprimidos. Dessa forma, a depressão é concebida como um problema biológico, como uma infecção bacteriana que requer um remédio biológico específico. Os sofredores precisam retornar a seus estados produtivos e felizes. Em outras palavras, a exploração da interioridade humana está sendo substituída por uma ideia fixa de higiene mental. É preciso eliminar o problema, em vez de entendê-lo.

Cabe perguntar então: O que desse sofrimento é fruto do nosso tempo? Tempos de extrema exposição da intimidade, hiperconexão, demanda de performance constante, perda da interioridade que constituía o sujeito, o que leva a uma dependência narcísica do olhar do outro. Tempos em que nos administramos como empresas e tentamos estabelecer conexões a partir de referenciais identitários muito ligados à competitividade, com ideais (e vocabulário) publicitários de autenticidade e desempenho.

“Eu deveria estar: Fazendo meus deveres mais cedo! Abrindo minha mente! Saindo e socializando! Me conectando com as pessoas! Planejando minha carreira! Me preparando para o futuro! / Eu Estou: ….”

As coisas sempre mudaram. Agora mudam rápido demais. No tempo de uma única geração, caíram por terra valores, hábitos, instituições, regras que levaram várias para se firmar. E ficou todo mundo meio sem chão, sem teto, sem paredes.

E como embolam os fios das redes. Todo mundo se enrolando, sem dormir, sem saber mais quem se é, vivendo a angustiante contradição de uma revolta resignada, com dificuldade para estabelecer relações de intimidade, em lutas políticas de muita ação e frustração, na exigência de performar um personagem autêntico e interessante sob o risco da invisibilidade que hoje é quase o mesmo que a morte.

“Prazos” / “Bom dia”

Se já é difícil pra todo mundo, imagina pra quem está literalmente em fase de formação. Com todas as dificuldade$, dúvidas, cobranças, ansiedades e medos inerentes à universidade, somando-se agora nesta equação a instabilidade coletiva que vivemos.

Tirinha de Alex Norris

Reportagens como esta do Estadão repercutem aquilo que percebemos na prática, o aumento impressionante nos relatos dos estudantes sobre crises de ansiedade, pânico, depressão, surtos e as consequentes reprovações e solicitações de trancamento por motivos psicológicos. A matéria apresenta também alguns esforços individuais e coletivos para propor saídas.

Esta matéria no site da UFF discorre sobre a questão e apresenta algumas das propostas da universidade para lidar com as demandas relacionadas à saúde mental e qualidade de vida dos estudantes, como a Divisão de Atenção à Saúde do Estudante (Dase) e o Nossos Futuros Médicos. Esta outra apresenta o CSA — Centro de Suporte Acadêmico, criado neste ano com objetivo específico de apoiar estudantes em três aspectos fundamentais: qualidade de vida, saúde mental e gerenciamento acadêmico. Existe ainda o atendimento psicoterápico do Ambulatório Clínico do Serviço de Psicologia Aplicada Todos os contatos estão no final desta página.

Além desses caminhos, é imprescindível ter em mente que a vida de todos nós não está isenta do contexto político, econômico, cultural, social (que, como sabemos, não tem sido dos mais fáceis). Por mais complicado que seja, é através do esforço de entender e agir sobre essa complexidade, ainda que sem lógica direta, que temos mais chances de encontrar saídas, sem perder de vista a individualidade do sofrimento de cada um.

Para escrever esse texto, me lembrei das situações que vivi e há quanto tempo eu me esforço em estudar. Sei que as dificuldades que dizem respeito a minha vida particular também falam muito sobre os tempos que vivemos. Encontrar formas de agir que articulam a experiência individual e a experiência política coletiva é um ponto fundamental dessa conversa.

Montagem feita para disciplina “Memória, Autobiografia e Escrita Íntima na Rede” (Estudos de Mídia — 2015/2)

Se não acredito em tratar sofrimentos como “doenças”, não tenho dúvidas de que são sintomas, no sentido psicanalítico do termo, sinais de que algo não funciona mais e precisa mudar urgentemente! No ambiente que habitamos, cabe a professores (vale lembrar que também sofrendo no mesmo contexto) e alunos criarem juntos novos caminhos, novas formas de estudar, avaliar, produzir, pensar, ensinar e aprender.

Enquanto isso, sigo minha luta particular, na certeza que o próximo e-mail será mais um de dezenas que os professores vão receber com trabalhos mal-feitos e fora do prazo. 4h de segunda e ainda tem muito trabalho atrasado pra entregar.

Trecho de e-mail enviado para professor orientador de monitoria no 2º período na UFMG (2010) e para professora no 1º período na UFF (2014)
Trecho de e-mail enviado para professora na UFF (2017.2) e Atestados e declarações de psicólogos e psiquiatras apresentados
All around me are familiar faces / Worn out places / Worn out faces / Bright and early for the daily races / Going no where / Their tears are filling up their glasses / No expression / Hide my head I wanna drown my sorrow / No tomorrow / And I find it kind of funny / I find it kind of sad / The dreams in which I’m dying / Are the best I’ve ever had / I find it hard to tell you / I find it hard to take / When people run in circles / It’s a very, very / Mad world, mad world / Children waiting for the day, they feel good / Happy Birthday / Made to feel the way that every child should / Sit and listen / Went to school and I was very nervous / No one knew me, no one knew me / Hello teacher, tell me what’s my lesson / Look right through me/ I find it hard to tell you, I find it hard to take / When people run in circles it’s a very very / Mad world, mad world / Enlarge your world / Mad world

Se te interessa pensar sobre subjetividades e sofrimentos contemporâneos (porque somos como somos e sofremos como sofremos), vale conferir estas reflexões:

Apresentação da psicanalista Maria Rita Khel no Café Filosófico
Apresentação do psicanalista Christian Dunker no Café Filosófico
Entrevista de Darian Leader na TV Holandesa (áudio em inglês s/ legenda)
Palestra de Paula Sibilia no CCCB Espanha (áudio em espanhol s/legenda)

Narciso no espelho do século XXI: Diálogos entre a Psicanálise, as Ciências Sociais e a Comunicação (entrevistas com psicanalistas)

Dúvidas e questões sobre as informações, referências ou qualquer troca sobre o assunto, fique à vontade para me escrever: marianacamposcarvalho@gmail.com

Alguns trabalhos de colegas sobre sofrimentos atuais na universidade:

> Medicalização da Vida Universitária, por Priscila Maria Cost
> Quanto custa um diploma?, por Andressa Azevedo
> Prefiro terminar o semestre, por Carolina Régis
> Alta performance e frustração precoce: os impactos do imediatismo na vida universitária, por Diogo Barbosa
>Texto cruel demais para ser lido rapidamente: a universidade não é como num filme americano, por Luiza Melo

Ações e Departamentos da UFF que tem trabalhado a questão de saúde mental e qualidade de vida dos estudantes:

Divisão de Atenção à Saúde do Estudante (Dase) Rua Miguel de Frias, 09 Fundos — Icaraí — Niterói / (21) 2629–5320 / saudedoestudante@proaes.uff.br

Ambulatório Clínico do Serviço de Psicologia Aplicada Serviço de atendimento psicoterápico a pacientes no Ambulatório Clínico do SPA. O atendimento é realizado por estagiários do curso de Psicologia, com supervisão de professores da área. — Campus do Gragoatá — Rua Prof. Marcos Waldemar de Freitas Reis, s/n, Bloco N, 5º / (21) 2629-2951 / spa@vm.uff.br / http://spa.sites.uff.br/ambulatorio-clinico/

Nossos Futuros Médicos — criado pelo curso de Medicina da UFF em 2015, o programa oferece atendimento médico-psicológico com foco na saúde mental e no cuidado integral com o aluno. O projeto foi criado devido às demandas dos estudantes com transtornos que poderiam vir a impedi-los de continuar o curso. | Geal/Mequinho — UFF, Av. Jansen de Melo, 174, Centro, Niterói / (21) 36747437 / nossosfuturosmedicos@gmail.com

Centro de Suporte Acadêmico (CSA) — recém criado (atividades terão início em março 2018), com objetivo de dar apoio a alunos de graduação, considerando três aspectos fundamentais: qualidade de vida, saúde mental e gerenciamento acadêmico. | http://centrodesuporteacademico.sites.uff.br

Departamento de Psicologia de Campos Rua José do Patrocínio, 71 Centro — Campos dos Goytacazes — RJ / (22) 2722–0622 / pucg@vm.uff.br

Departamento de Psicologia de Volta Redonda Rua Desembargador Ellis Hermydio Figueira, 783 Aterrado — Volta Redonda — RJ / (24) 3076–8739 / uff.ichs.psicologia.91@gmail.com

Sensibiliza UFF *— vinculada à Coordenação de Apoio Social da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis — Proaes, tem como objetivo fomentar a implantação e consolidação de políticas inclusivas na UFF, por meio da eliminação de barreiras arquitetônicas, comunicacionais, metodológicas, instrumentais, programáticas e atitudinais enfrentadas pela comunidade. | Rua Visconde do Rio Branco, s/n, São Domingos / (21) 3674–7639 / 97603–2335 e 97565–7508 / sensibilizauff@gmail.com / https://sensibilizauff.wordpress.com / https://www.facebook.com/sensibilizauff/ /
* As ações são, em geral, relacionadas à acessibilidade e inclusão de deficientes físicos. No entanto, estão abertos ao diálogo para pensar juntos sobre caminhos em casos específicos de transtornos mentais.

“Bem, Audrey, para ser honesto, estou cansado e no limite.” (Twin Peaks)/ “Nunca há tempo suficiente para fazer todo o nada que se quer.” (Calvin e Haroldo).

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