Desconforto

Levo a vida como quem anda de Marea

Leonardo Ritta
Leonardo Ritta
4 min readMar 9, 2020

--

Dois dos assuntos sobre os quais eu já falei aqui são o motociclismo e a corrida. Gosto de compartilhar sobre isso porque nem todo mundo tem tempo ou interesse em se meter nesses assuntos e também porque é uma forma de tentar mostrar o que eu penso sobre isso e como me sinto em relação a esse tipo de hábito.

A verdade é que essas duas coisas têm algo em comum. Por mais que uma atividade seja determinada pelo uso de uma máquina e aparentemente demande zero esforço físico, enquanto a outra basicamente é o corpo trabalhando ininterruptamente, descobri por que ambas me fazem vibrar.

Eu gosto mesmo é de passar trabalho.

Sim! Perrengue mesmo. No fim das contas, viajar de moto é exaustivo e não preciso nem dizer que correr também cansa bastante. Mas se pensar em outras atividades que me satisfazem, consigo ver que uma boa parcela delas me demanda esforço físico e resistência psicológica: além das que já citei, acampar e cozinhar por longas horas à beira das brasas fazem parte de mim.

E o que isso significa?

De maneira alguma isso é um manifesto em favor de uma vida passando necessidade à toa. Temos milhares de confortos que tornam nossa vida mais fácil, e acredito que viver uma vida simples é diferente de autoflagelo.

Mas descobri que, em geral, gosto de estar perto dos elementos. Tive um exemplo claro disso na viagem que fiz ao Chile. Na volta, duro de frio subindo os Andes na baixa temperatura das 7h, parei na fronteira para fazer os trâmites. Reparei que, enquanto eu estava sentado na moto sem coragem de tirar o capacete e as luvas, o pessoal saía tranquilo das suas grandes camionetes, geralmente de chinelo e de bermuda. Eu tinha andado um par de centenas de quilômetros naquele frio desgraçado e rodaria ainda outro tanto. Eu estava adorando.

Eu estava tão feliz de, naquele momento, ser a paisagem ao invés de vê-la através do para-brisa. Mais do que isso: aquela experiência era muito real porque eu sentia absolutamente tudo que acontecia ao meu redor. Era uma experiência multissensorial. Os trechos na sombra me faziam agradecer pelos momentos de sol. Parece uma coisa tão simples, mas uma mera nesga de luz é capaz de nos deixar radiantes numa situação dessas. Repare que não era nenhuma situação de emergência, eu não estava perdido e estava tudo bem. Mesmo assim, longe de casa, longe de tudo, o desconforto era tamanho (tanto físico quanto psicológico) que eu passei a ficar feliz por coisas muito ínfimas.

A corrida, da mesma forma, me traz para perto do chão, do ar e de mim mesmo. Se corro de dia, sinto o sol. Se corro à noite, sinto a temperatura baixando. Se corro na chuva, sinto o corpo arrefecendo. No fim, sinto eu mesmo em situações distintas, entendo meu funcionamento e aprendo os limites que minha mente impõe ao meu corpo.

Então, basicamente, é gostar de sofrer?

Também não. O que entendi, depois de muito pensar sobre essa predileção aos elementos (em longas horas sobre a moto e em tantas outras correndo), é que eu aprendi, dessa forma, a lidar com o desconforto. E isso virou um aspecto frequente em qualquer face da minha vida. Ele vai continuar existindo, e melhor do que fingir que não existe é abraçá-lo e entendê-lo como parte do processo.

Em geral, começar é muito mais difícil do que continuar. Atravessar o continente de moto começa com uma partida meio desengonçada, de jaqueta no calor e mochila amarrada meio torta. A maratona começa com os primeiros passos ainda meio desencontrados e os músculos querendo ficar em paz.

O caminho até o Chile vai ser complicado. É longe, cansativo e tem chuva. Tem calor. Tem frio também. Tem tudo. O desconforto é constante. Mas saber lidar com ele dá forças pra arrancar a moto lá no km 0. A corrida vai ser extenuante, as pernas vão doer e eu vou considerar abandonar a cada três minutos. Mas aquele primeiro passo com certeza é pior do que os outros milhares que seguirão.

Mais do que isso, entender esse desconforto e saber que ele é passageiro torna os bons momentos ainda melhores. Se somos seres dialéticos, precisamos desse contraponto. Uma noite bem dormida numa cama limpa e quente é o maior luxo do planeta para quem passou dias ou semanas acampando e encurtando distância em cima da moto. Uma garrafa d’água gelada é uma refeição completa para quem correu 21km.

Andar (ou correr!) de mãos dadas com o desconforto é importante. Cria tutano, como se diz pra fora. Não precisamos ser brucutus que se privam de qualquer conforto para fingir rusticidade, mas precisamos entender que os desconfortos virão com uma frequência assustadora, e é melhor convidá-los pra uma cerveja do que fingir que não estão na nossa garupa.

--

--

Leonardo Ritta
Leonardo Ritta

Para escrever bem, é preciso ter a coragem de escrever mal.