Texto 02 — “Da Instrução Popular”

Trechos do artigo de Leon Tolstoi, escrito em 1862.

Marcelo Voos
MARÉ Ubatuba
7 min readDec 26, 2016

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[esta seleção de trechos faz parte do nosso Percurso em Educação]

A instrução popular foi sempre e em todo o lugar continua a ser para mim um fenômeno incompreensível. O povo quer instrução e cada indivíduo aspira inconscientemente à instrução. A classe de pessoas mais instruída — a sociedade, o governo — tenta transmitir os seus conhecimentos e instruir a classe menos instruída do povo.

Semelhante coincidência de necessidades deveria satisfazer tanto a classe instrutora como a classe instruenda. Mas dá-se o contrário. O povo resiste constantemente aos esforços que a sociedade ou o governo, como representantes da camada mais instruída, fazem para a sua instrução e, na maioria das vezes, não dão resultado.

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A Alemanha, criadora da escola, em quase 200 anos de luta, não conseguiu ainda submeter a resistência do povo à escola. Não obstante os Fredericos terem nomeado para professores distintos soldados inválidos, não obstante o rigor da lei que vigora há 200 anos, não obstante a preparação de professores do perfil mais moderno nos seminários, não obstante todo o sentido de respeito do alemão pela lei, a coação da escola continua hoje a oprimir com toda a força o povo; os governos alemães não se decidem a revogar a lei da obrigatoriedade da escola. A Alemanha só se pode orgulhar da instrução do povo expressa nas estatísticas. O povo, na sua maioria, só leva da escola o ódio a essa mesma escola.

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Até agora as crianças têm sido obrigadas quase à força a ir para a escola e os pais são obrigados, através da lei ou de sutilezas, a mandar as crianças para a escola; mas o próprio povo estuda em quase todo lugar e considera que aprender é um bem.

Que é isto? A necessidade de aprender vive em cada pessoa; o povo ama e procura aprender como ama e busca o ar para respirar. O governo e a sociedade querem muito instruir o povo e, não obstante toda a coerção, sutileza e tenacidade dos governos e das sociedades, o povo manifesta permanentemente o seu descontentamento face à instrução que lhe é proposta e apenas lentamente se rende à força.

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Todos, de Platão a Kant, desejam uma coisa: libertar a escola dos nós históricos que pendem sobre ela, querem adivinhar as necessidades do homem e, com base nestas necessidades, adivinhadas com maior ou menor exatidão, construir a sua nova escola.

Lutero obrigava a estudar as Sagradas Escrituras pelo original, e não pelos comentários dos santos padres. Bacon obrigava a estudar a natureza na própria natureza, e não pelos livros de Aristóteles. Rousseau quer estudar a vida na própria vida, como ele a compreende, e não nas experiências do passado.

Cada passo em frente da filosofia da pedagogia consiste em libertar a escola da ideia de ensinar às jovens gerações o que as gerações velhas consideravam ciência e em enveredar pela ideia de ensinar o que é necessário às gerações jovens. Esta ideia comum e ao mesmo tempo contraditória está patente em toda a história da pedagogia. É comum porque todos exigem mais liberdade para a escola, contraditória porque cada um prescreve as leis baseadas na sua teoria e, deste modo, limita a liberdade.

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A criança vê com toda a justiça na escola um estabelecimento onde lhe ensinam o que ninguém compreende, onde, na grande maioria dos casos, a obrigam a falar não no seu patois, Mundart natal, mas numa língua estranha, onde o professor, muito frequentemente, vê nos seus alunos inimigos inveterados que, por maldade sua e por maldade dos pais, não querem estudar o que ele próprio estudou e onde os alunos, pelo contrário, olham para o professor como para um inimigo que, apenas por maldade própria, os obriga a estudar coisas tão difíceis.

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Além dessa influência embrutecedora da escola, para a qual os alemães criaram um termo muito exato verdummen (embrutecer), que consiste na deformação prolongada das capacidades intelectuais, há outra influência, ainda mais perniciosa, que consiste em que a criança, durante as muitas horas de aulas diárias, embrutecida pela vida escolar, é afastada, durante o tempo mais rico do ponto de vista etário, das condições necessárias ao desenvolvimento, que lhe são concedidas pela própria natureza. Ouve-se e lê-se muitas vezes a opinião de que as condições em casa, a rudeza dos pais, os trabalhos agrícolas, os jogos na aldeia etc. são os principais obstáculos que dificultam a instrução escolar.

Certamente que tudo isso dificulta a instrução escolar que os pedagogos subentendem, mas já é tempo de nos convencermos de que estas condições são as bases principais de toda a instrução, de que não são inimigos e obstáculos da escola, mas os seus primeiros e principais impulsionadores. Jamais a criança aprenderia a diferença das linhas que constituem a diferença das letras, os números, a capacidade de exprimir as suas ideias sem essas condições domésticas. Por que motivo essa rude vida doméstica pôde ensinar à criança coisas tão difíceis e, de súbito, essa mesma vida doméstica não só se torna imprópria para ensinar à criança coisas tão simples como a leitura, a escrita etc., como também prejudicial para esse ensino?

A melhor prova é a comparação do filho de um camponês que nunca estudou com o filho de um nobre que estudou com preceptor desde os cinco anos. O primeiro é mais inteligente e tem mais conhecimentos. Mais ainda, o interesse em saber e as perguntas às quais a escola deve responder só são originadas por essas condições domésticas. Todo o ensino deve ser apenas uma resposta à pergunta colocada pela vida.

Mas a escola não só não coloca perguntas, como tampouco responde às pergunta que a vida coloca. Ela responde constantemente às mesmas perguntas, colocadas há alguns séculos atrás pela humanidade, e não pela idade infantil, quando elas ainda não interessam nada à criança.

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Por isso, as escolas instituídas a partir de cima e coercitivamente não são um pastor para o rebanho, mas um rebanho para o pastor. A escola não é instituída para que às crianças seja cômodo estudar, mas para que aos professores seja cômodo ensinar. Ao professor incomodam os ruídos, o movimento e a alegria das crianças, que são para elas uma condição indispensável de estudo; por isso, nas escolas construídas como cadeias, é proibido fazer perguntas, falar e mover-se. Em vez de se convencerem de que para agir sobre um objeto qualquer é preciso estudá-lo (na educação, este objeto é a criança livre), eles querem ensinar como sabem, como querem e, quando sucede um fracasso, pretendem mudar não o método de ensino, mas a própria natureza da criança. Deste conceito surgiram e surgem agora (Pestalozzi) sistemas com os quais se pode mecanizar a instrução — desejo eterno da pedagogia de organizar as coisas de tal forma que o método seja o mesmo, independente do professor e do aluno.

Basta olhar para uma criança em casa, na rua ou na escola e verão ou um ser feliz, cheio de curiosidade, com um sorriso nos olhos e nos lábios, que procura ensinamentos em tudo como uma alegria, que manifesta clara e frequentemente as suas ideias com a sua língua; ou verão um ser martirizado, angustiado, com uma expressão de cansaço, medo e tédio, que repete com os lábios palavras estranhas numa língua estranha, um ser cuja alma, tal como o caracol, se escondeu na sua casca. Basta olhar para estes dois estados de espírito para decidir qual dos dois é o mais útil para o desenvolvimento da criança.

O estranho estado psicológico a que chamo estado escolar da alma, que todos nós, infelizmente, conhecemos bem, consiste em que todas as capacidades superiores — imaginação, criatividade, compreensão — cedem o seu lugar a outras capacidades, semi-animais: a pronunciação de palavras independentemente da imaginação, a contagem de números seguida: 1, 2, 3, 4, 5, a compreensão das palavras sem admitir que a imaginação coloque nelas outras imagens; numa palavra, a faculdade de reprimir em si as capacidades supremas a fim de desenvolver apenas as que coincidem com o estado escolar: o medo, a tensão da memória e a atenção.

Todo aluno é um disparate na escola enquanto não entrar na roda do estado semi-animal. Logo que a criança chega a este estado, perde toda a independência, logo que se começam a manifestar diferentes sintomas da doença — hipocrisia, mentira, desespero etc., ela deixa de ser um disparate na escola, entra na roda e o professor começa a ficar contente com ela. Então aparecem também fenômenos que não são ocasionais, mas que se repetem constantemente, por exemplo: a criança mais tonta é considerada o melhor aluno e a mais inteligente passa a ser o pior aluno. Parece-me que este fato é bastante significativo para que se pense nele e se tente explicá-lo. Parece-me que este fato é uma prova evidente da falsidade das razões da escola coercitiva.

Mais ainda, além deste prejuízo, que consiste no afastamento das crianças da instrução inconsciente recebida em casa, no trabalho, na rua, estas escolas são prejudiciais fisicamente, ao corpo, indivisível da alma na primeira idade; este prejuízo é particularmente importante em relação à monotonia da educação escolar, mesmo se ela for boa.

(…)

Deixemos de olhar para a resistência do povo à nossa instrução como para um elemento inimigo da pedagogia, e, pelo contrário, vejamos nela uma expressão da vontade do povo, pela qual se deve dirigir a nossa atividade. Reconheçamos, finalmente, a lei da história da pedagogia e da história de toda a instrução que nos diz claramente que para o professor saber o que é bom ou mau, o aluno deve ter todo o poder de manifestar a sua insatisfação ou, pelo menos, de afastar-se da instrução que, segundo o seu instinto, não o satisfaz, que o critério da pedagogia é só um: a liberdade.

[Esta seleção de trechos faz parte do Percurso em Educação, do grupo MARÉ — Ubatuba.]

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