Texto 04 — “Escola e Democracia”

Trechos do livro de Demerval Saviani, de 1983.

Marcelo Voos
MARÉ Ubatuba
11 min readMar 5, 2017

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[esta seleção de trechos faz parte do nosso Percurso em Educação]

http://contee.org.br/contee/index.php/2015/03/tv-contee-traz-entrevista-exclusiva-com-dermeval-saviani-sobre-os-desafios-da-educacao-no-brasil/

A Pedagogia Tradicional

A constituição dos chamados “sistemas nacionais de ensino” data de inícios do século passado. Sua organização inspirou-se no princípio de que a educação é direito de todos e dever do Estado. O direito de todos à educação decorria do tipo de sociedade correspondente aos interesses da nova classe que se consolidara no poder: a burguesia.

Tratava-se, pois, de construir uma sociedade democrática, de consolidar a democracia burguesa. Para superar a situação de opressão, própria do “Antigo Regime”, e ascender a um tipo de sociedade fundada no contrato social celebrado “livremente” entre os indivíduos, era necessário vencer a barreira da ignorância. Só assim seria possível transformar os súditos em cidadãos, isto é, em indivíduos livres porque esclarecidos, ilustrados.

A escola é erigida, pois, no grande instrumento para converter os súditos em cidadãos.

Nesse quadro, a causa da marginalidade é identificada com a ignorância. É
marginalizado da nova sociedade quem não é esclarecido. A escola surge como um antídoto à ignorância, logo, um instrumento para equacionar o problema da marginalidade. Seu papel é difundir a instrução, transmitir os conhecimentos acumulados pela humanidade e sistematizados logicamente.

O mestre-escola será o artífice dessa grande obra. A escola se organiza, pois, como uma agência centrada no professor, o qual transmite, segundo uma gradação lógica, o acervo cultural aos alunos. A estes cabe assimilar os conhecimentos que lhes são transmitidos.

À teoria pedagógica acima indicada correspondia determinada maneira de organizar a escola. Como as iniciativas cabiam ao professor, o essencial era contar com um professor razoavelmente bem preparado. Assim, as escolas eram organizadas na forma de classes, cada uma contando com um professor que expunha as lições que os alunos seguiam atentamente e aplicava os exercícios que os alunos deveriam realizar disciplinadamente.

Ao entusiasmo dos primeiros tempos suscitado pelo tipo de escola acima descrito de forma simplificada, sucedeu progressivamente uma crescente decepção. A referida escola, além de não conseguir realizar seu desiderato de universalização (nem todos nela ingressavam e mesmo os que ingressavam nem sempre eram bem sucedidos) ainda teve de curvar-se ante o fato de que nem todos os bem sucedidos se ajustavam ao tipo de sociedade que se queria consolidar. Começaram, então, a se avolumar as críticas a essa teoria da educação e a essa escola que passa a ser chamada de escola tradicional.

A Pedagogia Nova

As críticas à pedagogia tradicional formuladas a partir do final do século passado foram, aos poucos, dando origem a uma outra teoria da educação. Esta teoria mantinha a crença no poder da escola e em sua função de equalização social.

Portanto, as esperanças de que se pudesse corrigir a distorção expressa no fenômeno da marginalidade, através da escola, ficaram de pé. Se a escola não vinha cumprindo essa função, tal fato se devia a que o tipo de escola implantado — a escola tradicional — se revelara inadequado. Toma corpo, então, um amplo movimento de reforma cuja expressão mais típica ficou conhecida sob o nome de “escolanovismo”.

Tal movimento tem como ponto de partida a escola tradicional já implantada segundo as diretrizes consubstanciadas na teoria da educação que ficou conhecida como pedagogia tradicional. A pedagogia nova começa, pois, por efetuar a crítica da pedagogia tradicional, esboçando uma nova maneira de interpretá-la e ensaiando implantá-la, primeiro através de experiências restritas; depois, advogando sua generalização no
âmbito dos sistemas escolares.

Segundo essa nova teoria, a marginalidade deixa de ser vista predominantemente sob o ângulo da ignorância, isto é, o não domínio de conhecimentos. O marginalizado já não é, propriamente, o ignorante, mas o rejeitado. Alguém está integrado não quando é ilustrado, mas quando se sente aceito pelo grupo e, através dele, pela sociedade em seu conjunto.

É interessante notar que alguns dos principais representantes da
pedagogia nova se converteram a pedagogia a partir da preocupação com os
“anormais”’ (ver, por exemplo, Decroly e Montessori). A partir das experiências levadas a efeito com crianças “anormais” é que se pretendeu generalizar procedimentos pedagógicos para o conjunto do sistema escolar.

Nota-se, então, uma espécie de bio-psicologização da sociedade, da educação, e da escola. Ao conceito de “anormalidade biológica” construído a partir da constatação de deficiências neuro-fisio-lógicas se acrescenta o conceito de “anormalidade psíquica” detectada através dos testes de inteligência, de personalidade etc., que começam a se multiplicar.

Forja-se, então, uma pedagogia que advoga um tratamento diferencial a partir da “descoberta” das diferenças individuais.

Eis a “grande descoberta”: os homens são essencialmente diferentes; não se repetem; cada indivíduo é único. Portanto, a marginalidade não pode ser explicada pelas diferenças entre os homens, quaisquer que elas sejam: não apenas diferenças de cor, de raça, de credo ou de classe, o que já era defendido pela pedagogia tradicional; mas também diferenças no domínio do conhecimento, na participação do saber, no desempenho cognitivo.

Marginalizados são os “anormais”, isto é, os desajustados e desadaptados de todos os matizes. Mas a “anormalidade” não é algo, em si, negativo;
ela é, simplesmente, uma diferença. Portanto, podemos concluir, ainda que isto soe paradoxal, que a anormalidade é um fenômeno, normal. (…)

A Pedagogia Tecnicista

Ao findar a primeira metade do século atual, o escolanovismo apresentava sinais visíveis de exaustão. As esperanças depositadas na reforma da escola resultaram frustradas. Um sentimento de desilusão começava a se alastrar nos meios educacionais.

A pedagogia nova, ao mesmo tempo que se tornava dominante enquanto concepção teórica a tal ponto que se tornou senso comum o entendimento segundo o qual a pedagogia nova é portadora de todas as virtudes e de nenhum vício, ao passo que a pedagogia tradicional é portadora de todos os vícios e de nenhuma virtude, na prática se revelou ineficaz em face da questão da marginalidade.

Assim, de um lado surgiam tentativas de desenvolver uma espécie de “Escola Nova Popular”, cujos exemplos mais significativos são as pedagogias de Freinet e de Paulo Freire; de outro lado, radicalizava-se a preocupação com os métodos pedagógicos presentes no escolanovismo que acaba por desembocar na eficiência instrumental.

Articula-se aqui uma nova teoria educacional: a pedagogia tecnicista.

A partir do pressuposto da neutralidade científica e inspirada nos princípios de racionalidade, eficiência e produtividade, essa pedagogia advoga a reordenação do processo educativo de maneira a torná-lo objetivo e operacional. De modo semelhante ao que ocorreu no trabalho fabril, pretende-se a objetivação do trabalho pedagógico.

Para tanto, era mister operacionalizar os objetivos e, pelo menos em certos aspectos, mecanizar o processo. Daí, a proliferação de propostas pedagógicas tais como o enfoque sistêmico, o micro-ensino, o tele-ensino, a instrução programada, as máquinas de ensinar etc.

Daí, também, o parcelamento do trabalho pedagógico com a especialização de funções, postulando-se a introdução no sistema de ensino de técnicos dos mais diferentes matizes.

Daí, enfim, a padronização do sistema de ensino a partir de esquemas de planejamento previamente formulados aos quais devem se ajustar as diferentes modalidades de disciplinas e práticas pedagógicas.

Se na pedagogia tradicional a iniciativa cabia ao professor que era, ao mesmo tempo, o sujeito do processo, o elemento decisivo e decisório; se na pedagogia nova a iniciativa desloca-se para o aluno, situando-se o nervo da ação educativa na relação professor-aluno, portanto, relação interpessoal, intersubjetiva — na pedagogia tecnicista, o elemento principal passa a ser a organização racional dos meios, ocupando professor e aluno posição secundária, relegados que são à condição de executores de um processo cuja concepção, planejamento, coordenação e controle ficam a cargo de especialistas supostamente habilitados, neutros, objetivos, imparciais.

À teoria pedagógica acima exposta corresponde uma reorganização das escolas que passam por um crescente processo de burocratização. Com efeito, acreditava-se que o processo se racionalizava na medida em que se agisse planificadamente. Para tanto, era mister baixar instruções minuciosas de como proceder com vistas a que os diferentes agentes cumprissem cada qual as tarefas específicas acometidas a cada um no amplo espectro em que se fragmentou o ato pedagógico.

O controle seria feito basicamente através do preenchimento de formulários. O magistério passou então a ser submetido a um pesado e sufocante ritual, com resultados visivelmente negativos. Na verdade, a pedagogia tecnicista, ao ensaiar transpor para a escola a forma de funcionamento do sistema fabril, perdeu de vista a especificidade da educação, ignorando que a articulação entre escola e processo produtivo se dá de modo indireto e através de complexas mediações.

Nessas condições, a pedagogia tecnicista acabou por contribuir para aumentar o caos no campo educativo gerando tal nível de descontinuidade, de heterogeneidade e de fragmentação, que praticamente inviabiliza o trabalho pedagógico. Com isto o problema da marginalidade só tendeu a se agravar: o conteúdo do ensino tornou-se ainda mais rarefeito e a relativa ampliação das vagas se tornou irrelevante em face dos altos índices de evasão e repetência.

A situação acima descrita afetou particularmente a América Latina já que desviou das atividades-fim para as atividades-meio parcela considerável dos recursos sabidamente escassos destinados à educação. Por outro lado sabe-se que boa parte dos programas internacionais de implantação de tecnologias de ensino nesses países tinham por detrás outros interesses como, por exemplo, a venda de artefatos tecnológicos obsoletos aos países subdesenvolvidos. (…)

As Teorias Crítico-Reprodutivistas

Como já assinalei, o primeiro grupo de teorias concebe a marginalidade como um desvio, tendo a educação por função a correção desse desvio. A marginalidade é vista como um problema social e a educação, que dispõe de autonomia em relação à sociedade, estaria, por esta razão, capacitada a intervir eficazmente na sociedade, transformando-a, tornando-a melhor, corrigindo as injustiças; em suma, promovendo a equalização social.

Essas teorias consideram, pois, apenas a ação da educação sobre a sociedade. Porque desconhecem as determinações sociais do fenômeno educativo eu
as denominei de “teorias não-críticas”.

Inversamente, as teorias do segundo grupo — que passarei a examinar — são críticas, uma vez que postulam não ser possível compreender a educação senão a partir dos seus condicionantes sociais. Há, pois, nessas teorias uma cabal percepção da dependência da educação em relação à sociedade.

Entretanto, como na análise que desenvolvem chegam invariavelmente a conclusão de que a função própria da educação consiste na reprodução da sociedade em que ela se insere, bem merecem a denominação de “teorias crítico-reprodutivistas”. (…)

Todas as reformas escolares fracassaram, tornando cada vez mais evidente o papel que a escola desempenha: reproduzir a sociedade de classes e reforçar o modo de produção capitalista.

(…)

Cumpre assinalar que, obviamente, tais teorias não deixaram de exercer influência na América Latina tendo alimentado ao longo da década de 70 uma razoável quantidade de estudos críticos sobre o sistema de ensino.

Se tais estudos tiveram o mérito de pôr em evidência o comprometimento da educação com os interesses dominantes, também é certo que contribuíram para disseminar entre os educadores um clima de pessimismo e de desânimo que, evidentemente, só poderia tornar ainda mais remota a possibilidade de articular os sistemas de ensino com os esforços de superação do problema da marginalidade nos países da região. (…)

PARA UMA TEORIA CRÍTICA DA EDUCAÇÃO

O leitor terá notado que, quando me referi às teorias não-críticas, após expor
brevemente o conteúdo de cada uma, procurei mostrar a forma de organização e funcionamento da escola decorrente da proposta pedagógica veiculada pela teoria.

Já em relação às teorias crítico-reprodutivistas isto não foi feito. Na verdade estas teorias não contém uma proposta pedagógica. Elas se empenham tão-somente em explicar o mecanismo de funcionamento da escola tal como está constituída.

Em outros termos, pelo seu caráter reprodutivista, estas teorias consideram que a escola não poderia ser diferente do que é. Empenham-se, pois, em mostrar a necessidade lógica, social e histórica da escola existente na sociedade capitalista, pondo em evidência aquilo que ela desconhece e mascara: seus determinantes materiais.

Em relação à questão da marginalidade ficamos, pois, com o seguinte resultado: enquanto as teorias não-críticas pretendem ingenuamente resolver o problema da marginalidade através da escola sem jamais conseguir êxito, as teorias crítico-reprodutivistas explicam a razão do suposto fracasso.

Segundo a concepção crítico-reprodutivista o aparente fracasso é, na verdade, o êxito da escola; aquilo que se julga ser uma disfunção é, antes, a função própria da escola. Com efeito, sendo um instrumento de reprodução das relações de produção a escola na sociedade capitalista necessariamente reproduz a dominação e exploração.

Daí, seu caráter segregador e marginalizador. Daí, sua natureza seletiva. A impressão que nos fica é que se passou de um poder ilusório para a impotência. (…)

O problema permanece, pois, em aberto. E pode ser recolocado nos seguintes termos: é possível encarar a escola como uma realidade histórica, isto é, suscetível de ser transformada intencionalmente pela ação humana?

Evitemos de escorregar para uma posição idealista e voluntarista.

Retenhamos da concepção crítico-reprodutivista a importante lição que nos trouxe: a escola é determinada socialmente; a sociedade em que vivemos, fundada no modo de produção capitalista, é dividida em classes com interesses opostos; portanto, a escola sofre a determinação do conflito de interesses que caracteriza a sociedade.

Considerando-se que a classe dominante não tem interesse na transformação histórica da escola (ela está empenhada na preservação de seu domínio, portanto apenas acionará mecanismos de adaptação que evitem a transformação), segue-se que uma teoria crítica (que não seja reprodutivista) só poderá ser formulada do ponto de vista dos interesses dominados.

O nosso problema pode, então, ser enunciado da seguinte maneira: é possível articular a escola com os interesses dominados? Da perspectiva do
tema deste artigo a questão recebe a seguinte formulação: é possível uma teoria da educação que capte criticamente a escola como um instrumento capaz de contribuir para a superação do problema da marginalidade? (Limito-me aqui a afirmar a possibilidade dessa teoria, já que escapa aos objetivos desse artigo, o desenvolvimento da mesma).

Uma teoria do tipo acima enunciado se impõe a tarefa de superar tanto o poder ilusório (que caracteriza as teorias não-críticas) como a impotência (decorrente das teorias crítico-reprodutivistas) colocando nas mãos dos educadores uma arma de luta capaz de permitir-lhes o exercício de um poder real, ainda que limitado.

No entanto, o caminho é repleto de armadilhas, já que os mecanismos de adaptação acionados periodicamente a partir dos interesses dominantes podem ser confundidos com os anseios da classe dominada. Para evitar esse risco é necessário avançar no sentido de captar a natureza específica da educação o que nos levará à compreensão das complexas mediações pelas quais se dá sua inserção contraditória na sociedade capitalista.

É nessa direção que começa a se desenvolver um promissor esforço de
elaboração teórica.

Do ponto de vista prático, trata-se de retomar vigorosamente a luta contra a
seletividade, a discriminação e o rebaixamento do ensino das camadas populares.

Lutar contra a marginalidade através da escola significa engajar-se no esforço para garantir aos trabalhadores um ensino da melhor qualidade possível nas condições históricas atuais. O papel de uma teoria crítica da educação é dar substância concreta a essa bandeira de luta de modo a evitar que ela seja apropriada e articulada com os interesses dominantes.

[Esta seleção de trechos faz parte do Percurso em Educação, do grupo MARÉ — Ubatuba.]

[Próximo texto: A Árvore do Conhecimento]

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