Texto 05 — “A árvore do conhecimento”

Trechos do livro de Humberto Maturana e Francisco Varela, de 1987 - pags. 260 a 264

Marcelo Voos
MARÉ Ubatuba
6 min readJul 2, 2016

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[esta seleção de trechos faz parte do nosso Percurso em Educação]

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Tudo o que temos em comum como seres humanos é uma tradição biológica que começou com a origem da vida e que se estende até hoje, nas variadas histórias dos seres humanos deste planeta. É devido a nossa herança biológica comum que temos os fundamentos de um mundo comum e não estranhamos que, para todos os seres humanos, o céu seja azul e o sol raie a cada manhã.

De nossas heranças lingüísticas diferentes surgem todas as diferenças de mundos culturais que podemos viver como seres humanos e que, dentro dos limites biológicos, podem ser tão diversas como se queira.

Todo conhecer humano pertence a um desses mundos, e é sempre vivido dentro de uma tradição cultural. A explicação dos fenômenos cognitivos que apresentamos neste livro se situa dentro da tradição da ciência e se valida por critérios científicos. No entanto, é uma explicação singular dentro dessa tradição ao mostrar como, ao tentar conhecer o conhecer, acabamos por nos encontrar com nosso próprio ser.

O conhecer do conhecer não se ergue como uma árvore com um ponto de partida sólido, que cresce gradualmente até esgotar tudo o que há para conhecer. Parece-se mais com a situação do rapaz na Galeria dos Quadros, de Escher (Figura 75), que admira um quadro que, de modo gradual e imperceptível, se transforma na cidade e na galeria onde ele próprio se encontra. Não sabemos onde situar o ponto de partida: fora ou dentro? A cidade ou a mente do rapaz? O reconhecimento dessa circularidade cognitiva, no entanto, não constitui um problema para a compreensão do fenômeno do conhecer, já que funda o ponto de partida que permite sua explicação científica.

Figura 75 : “Galeria de Quadros” de Maurits Cornelis Escher, 1947

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Ao longo deste livro, percorremos a “árvore do conhecimento”, vendo-a como o estudo científico dos processos que subjazem ao conhecimento. E, se seguimos seus argumentos e internalizamos suas conseqüências, percebemos também que são inescapáveis. O conhecimento do conhecimento compromete.

Compromete-nos a tomar uma atitude de permanente vigilância contra a tentação da certeza, a reconhecer que nossas certezas não são provas da verdade, como se o mundo que cada um de nós vê fosse o mundo, e não um mundo, que produzimos com outros. Compromete-nos porque, ao saber que sabemos, não podemos negar o que sabemos.

É por isso que tudo o que dissemos aqui, esse saber que sabemos, conduz a uma ética inescapável, que não podemos desprezar. Uma ética que emerge da consciência da estrutura biológica e social dos seres humanos, que brota da reflexão humana e a coloca no centro como fenômeno social constitutivo.

Equivale a buscar as circunstâncias que permitem tomar consciência da situação em que estamos — qualquer que seja — e olhá-la de uma perspectiva mais abrangente e distanciada.

Se sabemos que nosso mundo é sempre o mundo que construímos com outros, toda vez que nos encontrarmos em contradição ou oposição a outro ser humano com quem desejamos conviver, nossa atitude não poderá ser a de reafirmar o que vemos do nosso próprio ponto de vista, e sim a de considerar que nosso ponto de vista é resultado de um acoplamento estrutural dentro de um domínio experiencial tão válido como o de nosso oponente, ainda que o dele nos pareça menos desejável.

Caberá, portanto, buscar uma perspectiva mais abrangente, de um domínio experiencial em que o outro também tenha lugar e no qual possamos, com ele, construir um mundo. O que a biologia está mostrando, se o que dissemos neste livro está correto, é que a unicidade do ser humano, seu patrimônio exclusivo, encontra-se nessa percepção de um acoplamento socioestrutural em que a linguagem tem um papel duplo: por um lado, o de gerar as regularidades próprias do acoplamento estrutural social humano, que inclui, entre outros fenômenos, a identidade pessoal de cada um de nós; por outro, o de constituir a dinâmica recursiva do acoplamento socioestrutural.

Esse acoplamento produz a reflexividade que permite o ato de mirar a partir de uma perspectiva mais abrangente, o ato de sair do que até este momento era invisível ou intransponível para ver que, como seres humanos, só temos o mundo que criamos com outros. A esse ato de ampliar nosso domínio cognitivo reflexivo, que sempre implica uma experiência nova, só
podemos chegar pelo raciocínio motivado pelo encontro com o outro, pela possibilidade de olhar o outro como um igual, num ato que habitualmente chamamos de amor — ou, se não quisermos usar uma palavra tão forte, a aceitação do outro ao nosso lado na convivência.

Esse é o fundamento biológico do fenômeno social: sem amor, sem a aceitação do outro ao nosso lado, não há socialização, e sem socialização não há humanidade.

Tudo o que limite a aceitação do outro — seja a competição, a posse da verdade ou a certeza ideológica — destrói ou restringe a ocorrência do fenômeno social e, portanto, também o humano, porque destrói o processo biológico que o gera. Não se trata de moralizar — não estamos pregando o amor, mas apenas destacando o fato de que biologicamente, sem amor, sem a aceitação do outro, não há fenômeno social. Se ainda se convive assim, é hipocritamente, na indiferença ou ativa negação.

Descartar o amor como fundamento biológico do social, assim como as implicações éticas do amor, seria negar tudo o que nossa história de seres vivos, de mais de três bilhões e meio de idade, nos legou. Não prestar atenção no fato de que todo conhecer é fazer, não ver a identidade entre ação e conhecimento, não ver que todo ato humano, ao construir o mundo pelo linguajar, tem um caráter ético porque se dá no domínio social, equivale a não se permitir ver que as maçãs despencam ao chão. Agir assim, sabendo que sabemos, seria um auto-engano e uma negação intencional.

Para nós, portanto, este livro tem não apenas o propósito de ser uma pesquisa científica, mas também o de nos oferecer uma compreensão do ser humano na dinâmica social e nos libertar de uma cegueira fundamental: a de não nos darmos conta de que só temos o mundo que criamos com o outro, e que só o amor nos permite criar esse mundo em comum. Se conseguimos seduzir o leitor a fazer essa reflexão, o livro cumpriu seu segundo objetivo.

Afirmamos que no cerne das dificuldades do homem moderno está seu desconhecimento do conhecer. Não é o conhecimento, mas o conhecimento do conhecimento o que nos compromete.

Não é saber que a bomba mata, e sim o que queremos fazer com a bomba que determina se a usaremos ou não. Isso geralmente se ignora ou se finge desconhecer para evitar a responsabilidade que nos cabe em todos os nossos atos cotidianos, já que todos os nossos atos, sem exceção, contribuem para formar o mundo em que existimos e que legitimamos precisamente por meio desses atos, num processo que configura nosso vir-a-ser.

Cegos diante da transcendência de nossos atos, fingimos que o mundo tem um vir-a-ser independente de nós, justificando assim nossa irresponsabilidade e confundindo a imagem que buscamos projetar, o papel que representamos, com o ser que verdadeiramente construímos em nosso viver diário.

[Esta seleção de trechos faz parte do Percurso em Educação, do grupo MARÉ — Ubatuba.]

[Próximo texto: A Teia da Vida]

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