O lumpemproletariado brasileiro

Ou a classe que elegeu Bolsonaro, nosso Luis Bonaparte.

Leonardo Coreicha
Revista Marginália
6 min readJun 21, 2019

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Sob o pretexto de formar uma sociedade de beneficência, organizou-se todo o lumpemproletariado de Paris em ações secretas, cada uma das quais dirigida por agentes bonapartistas (…). Juntamente com roués [devassos, interesseiros e sem escrúpulos — francês] arruinados, como meios de subsistência equívocos e equivocada proeminência, juntamente com rebentos degenerados e aventureiros da burguesia, vagabundos, soldados desmobilizados, (…), vigaristas, charlatões, (…) donos de bordéis, (…); numa palavra, toda a massa indefinida, desagregada, flutuante a que os franceses chamam de la bohème [a boêmia — francês]; desse elemento, com ele aparentado, formou Bonaparte a Sociedade do 10 de dezembro, “sociedade de beneficência” na medida em que todos os membros sentiam, tal como Bonaparte, a necessidade de se beneficiar à custa da nação trabalhadora. Esse Bonaparte, se constitui como chefe do lumpemproletariado, que só neste encontra de forma maciça os interesses que ele pessoalmente persegue, que reconhece nestas fezes, detritos e escória de todas as classes a única classe em pode apoiar-se incondicionalmente, é o autêntico Bonaparte, o Bonaparte sans phrase [sem rodeios — francês]. (Marx, 2008, p. 273–274)

Como dito no artigo anterior, o apoio irrestrito a Bolsonaro só poderia ser assumido pelo lumpemproletariado, a massa desclassificada e imoral que absorve a ideologia dominante e se utiliza de meios escusos para comer as migalhas que caem da mesa da burguesia.

Em meio a massa ignorante, esses elementos desclassificados disseminam o discurso de ódio com mentiras, fake news, correntes em aplicativos e em pregações estapafúrdias nos púlpitos de igrejas neopentecostais. A ideologia do lumpemproletariado é uma corruptela da ideologia burguesa, na qual a defesa da propriedade privada, da religião e de um falso moralismo, convive com o racismo, o anticomunismo e um ódio às lutas históricas dos trabalhadores. Levando proletários e pequeno-burgueses ao lamaçal da corrupção, bandidagem e apoio incondicional à políticas fascistas e antipopulares.

O lumpemproletariado hodierno é uma mistura heterogênea de ideólogos e bandidos oficiais e extraoficiais, ligada diretamente à política tradicional ou se constituindo em “Estados Paralelos”, mas nunca contra a ordem e o status quo burguês.

Assim, entre os principais apoiadores e ideólogos de Bolsonaro temos: exploradores da prostituição, pastores evangélicos, milicianos, traficantes de armas e drogas, atores da indústria pornográfica, pedófilos, charlatões de todos os tipos (o mais eminente é um astrólogo terraplanista e guru do bolsonarismo), banqueiros do jogo do bicho, ideólogos profissionais (muitos dos novos deputados ligados a movimentos pelo impeachment da presidenta Dilma, como o capitão do mato moderno Fernando Holiday), juízes e promotores corruptos, policiais e outros militares com aspirações fascistas.

Comparação entre Fernado Holiday e um capitão do mato tradicional feita pelo site sensacionalista:

Fruto das contradições da sociedade capitalista, os lumpemproletários se dividem e são marginalizados discricionariamente pela burguesia conforme os interesses do partido no poder. Assim, há acordos abertos ou ocultos entre governantes e líderes do lumpemproletariado desde o início do período colonial. Assim, vale fazer um breve histórico da formação da classe que colocou Bolsonaro no poder.

No Brasil, o lumpemproletariado nasce na colonização. Pois, pressupõe-se que as relações sociais retrógradas, marcadas pela exploração do trabalho escravo de africanos, faziam parte de uma fase de acumulação capitalista. Assim sendo, a acumulação primitiva de capital, que pode ser pensada como o princípio de construção das relações capitalistas, se baseou no colonialismo, com a ampla utilização de mão de obra de negros e indígenas escravizados, na pirataria e superexploração e expropriação de camponeses.

Para fazer o trabalho sujo da escravidão, a burguesia comercial portuguesa e os colonos brasileiros (os senhores de terras e rentistas, que utilizavam de meios pré-capitalistas para gerar riquezas para Portugal e para sua própria classe), utilizavam pessoas que buscavam “trabalhos” rentáveis, mesmo que fossem baseados na imoralidade. Logo, enquanto o proletariado brasileiro tem sua raiz nos negros escravizados e, em menor parte em imigrantes europeus pobres, que migraram no final do século XIX, o lumpemproletariado emerge dos bandeirantes, jagunços e capitães do mato, cujo trabalho era a manutenção do status quo, lutando contra a liberdade de indígenas e negros.

Capitães do Mato e jagunços continuaram se mantendo nos campos com funções parecidas, mesmo após o fim da escravidão. O coronelismo foi a política padrão da primeira república, mantendo relações pré-capitalistas de submissão dos trabalhadores rurais, e, em muitos casos em situação análoga à escravidão. Muitos desses jagunços partiram para o banditismo regional, o cangaço, que longe do mito do bom banditismo, não tinha um padrão moral, usando de violência para ganhos pessoais. Há de se destacar que estes mesmos jagunços serviram de base para a formação da Guarda Nacional e participaram ativamente da Guerra do Paraguai.

Por outro lado, com o fim da escravidão, há um processo de proletarização ascendente. Aos escravizados não foram cedidos direitos ou possibilidades, restando-lhes trabalhar em uma semiescravidão nas fazendas onde trabalhavam antes ou em outras próximas. Poucos buscavam as cidades, pois o racismo impedia que estes ocupassem vagas de trabalho, excetuando o trabalho doméstico, que já era ocupados por escravizados (cf. Fernades,1961).

Fora do trabalho, os negros eram marginalizados e acabavam engrossando as fileiras do exército industrial de reserva, ou mesmo do lumpemproletariado, vivendo de pequenos furtos ou da prostituição. Entretanto, nas fileiras do lumpemproletariado, os negros eram submissos a brancos que dominavam o comércio ilegal e as casas de prostituição, liderando assim a hegemonia ideológica deste lumpemproletariado. Mas, deixa claro que, enquanto o lumpemproletariado branco é absorvido pela sociedade e participava ativamente da política, o lumpemproletariado negro era perseguido e encarcerado. E a violência contra os negros marginalizados se espalha sobre todo o proletariado, que vive precariamente nas favelas e subúrbios.

Até os anos 1970, a maioria da população brasileira era rural. Mesmo como os avanços industriais da era varguista, a urbanização caminhou a passos lentos. Nesta época, marcada pelo autoritarismo da Ditadura e a extrema repressão aos movimentos de trabalhadores, o lumpemproletariado cresce em paralelo ao crescimento da pequena-burguesia urbana e com ela se confunde ideologicamente.

O golpe de 1964 foi impulsionado ideologicamente pelo discurso pequeno-burguês, que também mobilizou o lumpemproletariado através do discurso religioso, que abarcava setores de classe média e da população pobre e pela primeira vez dá voz política às igrejas protestantes, principalmente, àquelas de orientação pentecostal — que foram inseridas no Brasil por missões estadunidenses e estrategicamente assumiram o setor de alfabetização de jovens e adultos no nordeste na Cruzada ABC (Cruzada de Ação Básica Cristã), bancada pelo acordo MEC-USAID, para substituir as ações impulsionadas por Paulo Freire [1].

Em meio a repressão da Ditadura se organiza a guerra às drogas, bancada pela política dos EUA para o Brasil. A guerra às drogas cria um inimigo interno, causando um aumento das forças repressiva dentro das cidades. Há uma onda de estigmatização e marginalização dos pobres e negros, principalmente dos moradores de favela.

Entretanto, aproveitando-se da miséria da população, o lumpemproletariado cresce e, absorvendo as brechas do sistema e da ideologia capitalista, coopta parte do proletariado pobre para sua imoralidade lucrativa. Em paralelo cresce as organizações para o tráfico internacional de drogas, bancado pela burguesia e a intensiva repressão policial oficial e extraoficial (grupos de extermínio, segurança privada e, hoje, principalmente, as milícias). A ditadura é responsável pela criação dos esquadrões da morte e grupos de extermínio e, em paralelo, as grandes organizações criminosas, como o Comando Vermelho, que se estabelece em resposta a esta grande repressão.

Família Bolsonaro confraternizando com milicianos da Zona Oeste do Rio de Janeiro.

No século XXI, estas relações entre Estado e lumpemproletariado se evidenciam. No Rio de Janeiro, vários políticos são denunciados por suas ligações com as milícias. Em São Paulo, o governador negocia diretamente com o PCC (Primeiro Comando do Capital). As igrejas neopentecostais, que cresceram entre a população mais pobre se tornam igrejas oficiais do lumpemproletariado, criando partidos políticos próprios, dominando redes de telecomunicação em massa e, principalmente, servindo de apoio para ascensão da ideologia de extrema direita impulsionada pelo lumpemproletariado.

Bibliografia:

FERNANDES, Florestan. A integração do Negro na sociedade de classes. Dominus Editora. São Paulo, 2 vols. 655 págs., 1965.

LIMA JÚNIOR, José Ferreira de. Protestantismo e golpe militar de 1964 em Pernambuco: uma análise da cruzada de ação básica cristã.

DUARTE, Thais; CANO, Ignacio. (coordenadores) “No sapatinho”: a evolução das milícias no Rio de Janeiro (2008–2011) Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2012.

MARX, Karl. O 18 Brumário de Luis Bonaparte. In: MARX. Karl. A Revolução antes da Revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2008

1- Coreicha, Leonardo. A Ignorância versus Paulo Freire. Revista Marginália

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Leonardo Coreicha
Revista Marginália

Educador, historiador, advogado e, principalmente, um proletário lutando contra a opressão capitalista.