O problema é o seu cérebro

Tayara Causanilhas
Revista Marginália
8 min readMay 19, 2020
Ítalo Marsili, médico cotado para o Ministério da Saúde — https://i.ytimg.com/vi/G6Ih7dOE1DM/maxresdefault.jpg

E eu posso te provar. Você foi culturalmente direcionado a acreditar que é normal que as mulheres sejam subjugadas. Você foi culturalmente incutido por um sentimento de superioridade e patriarcalismo.

É precisamente esse o motivo pelo qual o vídeo de Ítalo Marsili, que você pode encontrar no Instagram, te parece soar minimamente razoável.

Eu já contei, em algumas oportunidades, sobre a história da inclusão da mulher na política brasileira. Seguem os links, acho interessante que vocês leiam antes de eu continuar a minha exposição: link 1 e link 2.

A participação feminina na política, não só na política brasileira, mas na política de todo o mundo foi realizada com base em revolução. Isto, revolução. Porque, desde o início, os direitos civis e políticos não foram garantidos para mulheres, mas para homens brancos, como dispostos no primeiro documento que os garantiu: a Declaração Universal do Homem e do Cidadão.

Já contei essa história antes, mas vou repetir pra que não haja dúvidas quanto ao ativismo feminino à época — e nas posteriores.

À época das revoluções burguesas, nas quais se consolidaram os direitos fundamentais, muitas mulheres participaram ativamente dos movimentos — embora pouco se fale dessas vozes. O contexto de cidadãos não compreendia essas mulheres que, sobretudo, buscavam o exercício de seus direitos políticos. Assim tornou-se clara a expressão Declaração de Direitos do Homem, tal como a sociedade, marginalizando em sua interpretação a participação feminina. O contexto da época era machista, o nome da Declaração de Direitos Humanos também.

Em 1789, Marie Gouze morreu guilhotinada pelo exercício de seus direitos políticos, vista como transgressora de regras e contrária aos bons costumes. O século XIX pode ser personificado por Virginia Woolf que, embora escritora, traduziu em seus livros e discursos a dificuldade de tornar-se cidadã de si mesma.

Em 1792, pouco depois da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, Mary Wollstonecraft escreve “A vindication of the rights of woman”, em resposta ao boicote feito, em 1790, à Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, proposto em protesto ao original por Olympe de Gouges [1]. Ambas, ainda no século XVIII, defendiam direitos femininos.

No dia 8 de março de 1857, nos Estados Unidos, 129 operárias morreram queimadas por policiais ao reivindicar a redução da jornada de trabalho e o direito à licença maternidade. Este dia é, atualmente, o Dia Internacional da Mulher, consagrado em homenagem não só às que morreram em 1857, mas à todas que lutaram e foram apagadas na garantia de direitos femininos.

Em 1893, na Nova Zelândia, é conferido às mulheres o direito ao voto pela primeira vez na história. Até o século XIX, a participação política feminina ocorria nas entrelinhas e nos bastidores, nas conversas com seus maridos, subjugada aos costumes da época.

O século XX é, sem dúvidas, mais expressivo na questão dos diretos políticos femininos. Em 1920, o sufrágio feminino foi definido nos Estados Unidos. Em 1945, a igualdade entre homens e mulheres é reconhecida na Carta das Nações Unidas[2]. Em 1951 a Organização Internacional do Trabalho aprova a igualdade de remuneração entre os gêneros.

Em 1975, a Assembleia Geral da ONU declarou que este ano fosse conhecido como o Ano Internacional da Mulher e, nesse mesmo período, promove a I Conferência Mundial sobre a Mulher, na Cidade do México, quando é criado um Plano de Ação sobre a temática [2]. Em 1985 cria-se o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (Unifem). Por fim, vale-se destacar que a Conferência Mundial de Direitos Humanos, ocorrida em Viena no ano de 1993, teve como destaque os direitos das mulheres e a questão de violência doméstica, quando é criada a Declaração sobre a Eliminação da Violência Contra a Mulher.

Consagrando esse século, a Década da Mulher (1976–1985) foi o resultado desse encontro. Um slogan definiu o objetivo principal: igualdade, desenvolvimento e paz. A ONU intuía, com essa ação, modificar a situação das mulheres à época. Sobretudo, ficou definido o que é discriminação contra mulher.

No que tange os direitos políticos, verificou-se que, à época da movimentação da ONU, na maioria dos países, a proporção de mulheres que participavam efetivamente da política era injustificadamente baixa, mesmo em países desenvolvidos. Ainda é. Embora utilizando-se, muitas vezes, da política de cotas para tentar inserir numa porcentagem de 30–70% de equidade de sexos nos poderes políticos, a prática confirma que não é a realidade.

No Brasil, a política, embora acessível, tinha pouca participação efetivamente feminina. Em outro ponto, restou evidente que a marginalização de mulheres nos países em desenvolvimento gerava ainda mais distinções, afastando-se da igualdade proposta anteriormente.

Ainda assim, Ítalo Marsili entende que a conquista do direito do voto feminino — para além, do voto que se estenda para seres humanos que não sejam homens brancos héteros — é danosa ao exercício da democracia.

"MULHERES DO MEU CORAÇÃO, OFENDAM-SE"

Querido Ítalo, fico feliz que você tenha antecipado a asneira que iria falar. Me facilita a ser didática.

  1. O exercício democrático pressupõe a participação de todos. E embora você não esteja pronto para essa conversa, vamos tê-la.

Ainda que você cite explicitamente que a democracia grega não tinha a participação de todos, o que é uma verdade, acredito que é preciso esclarecer que a democracia, em si, carrega diversos sentidos. Foi uma ideia que tornou-se madura com o tempo; foi sendo lapidada.

A democracia é trabalhada e desenvolvida ao longo dos anos por diversos estudiosos no campo da filosofia, ciências políticas, sociologia, direito e diversas outras áreas do saber.

Com isso, diante do apresentado, a democracia pode ser entendida em linhas gerais como um governo do povo.

Para tanto, BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, (1998, p. 319) comentam que na teoria democrática existem três tradições, quais sejam:

a) a teoria clássica, divulgada como teoria aristotélica, das três formas de Governo, segundo a qual a Democracia, como Governo do povo, de todos os cidadãos, ou seja, de todos aqueles que gozam dos direitos de cidadania, se distingue da monarquia, como Governo de um só, e da aristocracia, como Governo de poucos; b) a teoria medieval, de origem romana, apoiada na soberania popular, na base da qual há a contraposição de uma concepção ascendente a uma concepção descendente da soberania conforme o poder supremo deriva do povo e se torna representativo ou deriva do príncipe e se transmite por delegação do superior para o inferior; c) a teoria moderna, conhecida como teoria de Maquiavel, nascida com o Estado moderno na forma das grandes monarquias, segundo a qual as formas históricas de Governo são essencialmente duas: a monarquia e a república, e a antiga Democracia nada mais é que uma forma de república (a outra é a aristocracia), onde se origina o intercâmbio característico do período pré-revolucionário entre ideais democráticos e ideais republicanos e o Governo genuinamente popular é chamado, em vez de Democracia, de república.

2. A democracia é o governo do povo. O que mudou foi a noção do que é povo. Esse é o pulo do gato que parece ser incompreendido pelo querido locutor.

É importante entender que a democracia é e sempre foi o governo do povo. Na Grécia Antiga, o povo era composto por uma pequena parte da população. Escravos, estrangeiros, mulheres e qualquer cidadão que não fosse grego não tinha direito à cidadania, isto é, não compunham a democracia.

Atualmente, a ideia de povo compõe sujeitos que lutaram — MUITO — pelos seus direitos. E é justamente por isso que o exercício democrático também os abarca.

Além disso, Bobbio determina, ainda, que na Democracia algumas instituições são fundamentais ao Estado, justamente por cumprirem ao menos duas funções complementares, quais sejam, uma primeira que envolve a distribuição do poder de tomar decisões que afetam a coletividade; e uma segunda que assegura a participação dos cidadãos na avaliação e no julgamento que fundamenta o processo de tomada dessas decisões.

Pois é, o povo — e aquelas que lutaram para obter direito de falar — são fundamentais ao exercício democrático.

Então, tudo o que eu posso te dizer é que, sim, o problema é seu cérebro. Esse que delicadamente concorda que mulheres votam ao candidato que lhes é mais atraente — e que mulheres se direcionam apenas em razão do tesão.

E que o seu cérebro está conformado com a ideia de que as únicas pessoas prudentes à tomada de decisões são os homens brancos, detentores de toda a razão mundial (sic, ironia).

O problema é que o seu cérebro continua legitimando a ideia de que mulheres são incapazes de falar ou fazer política, muito embora o processo de conquista por direitos políticos delas tenha sido muito mais extenso que o seu, homem branco que fala asneiras em lives do Instagram.

E por mais que você considere que não houve qualquer mudança no paradigma povo, mulheres, pretos e pobres fazem parte de quem escolhe o jogo democrático agora.

O problema é o seu cérebro que não consegue entender que democracia não é servir ao seu prazer. Democracia é a compreensão das vontades de todos e o desejo para que a maioria faça, em si, boas escolhas.

Ainda que essa boa escolha compreenda ser você, futuro Ministro da Saúde, e a vocês que fazem campanha para que Ítalo Marsili seja.

Esse texto foi escrito com base no ódio. É uma coluna de opinião. Me pediram para que eu ficasse ofendida e, pelos motivos que demonstro, hoje eu posso falar que não é ofensa; é burrice.

[1] https://nacoesunidas.org/acao/mulheres/ acesso em: 04/12/18

[2] Pseudônimo usado por Marie Gouze. http://biografias.netsaber.com.br/biografia-2345/biografia-de-marie-gouze--a-olympe-de-gouges acesso em: 04/12/18

[2] Preâmbulo da Carta da ONU — NÓS, OS POVOS DAS NAÇÕES UNIDAS, RESOLVIDOS a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla (…) https://nacoesunidas.org/carta/ acesso em: 04/12/2018

BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G.. Dicionário de política. v. I. 9ª ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1997, p. 328–329. Verbete “democracia.

BOBBIO, N. A era dos Direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. — Nova ed. — Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. — 7ª reimpressão. P.12

BOBBIO, N. Teoria geral da política. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

BOBBIO, N. O Futuro da Democracia. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1988.

BOBBIO, N. Estado Governo e Sociedade: Para uma teoria geral da política. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995–5ª reimpressão.

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Tayara Causanilhas
Revista Marginália

o caos acometeu e eu não deveria ficar acordada. aprende a viver agora, Tayara.