O dia em que fui 5

Maria Anna Leal Martins
Maria Anna Martins
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4 min readJul 29, 2019
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Poucos têm o privilégio de conseguir ser peles diferentes. E os que conseguem costumam ser mesquinhos e dificilmente compartilham suas experiências.

Eu, no entanto, pretendo narrar para você exatamente como é tornar-se outro. Passei vidas pensando sobre o assunto: como poderia lhe mostrar? Como você conseguiria sentir o que eu sinto?

Após conversar com alguns similares, e ter várias dores de cabeça, cheguei a conclusão de que a melhor forma, talvez, seja vivendo.

Definitivamente, você vai achar no mínimo interessante. Seremos 5 e todos eles estarão próximos. Será interessante… mas você vai ver. Continue a me escutar.

O motorista

Eu tinha acabado de aceitar a minha última corrida do dia. Estava morto, mas precisava daquele dinheiro. Ai minha cama… ah, que merda! Esqueci de comprar os remédios de Claudia. Preciso passar na farmácia antes de chegar em casa.

Pior que não posso nem xingar a mãe de alguém, porque o casal sentado no banco de trás me escutaria. Mais duas pessoas que entraram naquele carro e sairiam sem que eu fizesse questão de saber seus rostos.

Às vezes eu tenho curiosidade sobre os passageiros. Às vezes até puxo um papinho, tento parecer mais simpático do que realmente sou. “ Um ogrão”, é como minha mulher sempre diz . Cláudia nem se preocupava se estava me deixando para baixo… ela só ia lá e pimba! Jogava o que chamava de “verdades” na minha cara.

Logo eu, um marido tão maravilhoso que iria comprar remédios para ela mesmo com a coluna doendo de tanto tempo que minha bunda não deixa esse banco do carro.

Ai merda, o casal tá discutindo. Se não abaixarem a voz… queria que fossem filhos meus, uns dois tapas e tomavam juízo rápido. Será que são namorados? Não, irmãos….

O campo de futebol do bairro tá cheio de crianças hoje. Talvez eu devesse levar aí os pirralhos para gastarem energia. Deus é testemunha de como eu devia ser santificado por aguentar aquelas pestes!

O morador de rua

Um trocado, favor?

Dá uma moedinha pra eu comprar um lanche? Só umazinha, qualquer uma serve.

O homem no carro nem abriu o vidro. Tem casal no banco de trás, deve ser motorista.

Oh moço, só um real? Que falta faz um real pro doutor?

Num faz moço.

Minha barriga dói, a última comida foi ontem de tarde. Não dá, porque os arrumados não se importam?

Dedos balançando de um lado a outro. Só têm nãos.

Uns egoístas, todos eles! Não ficam sem comida na barriga por mais de algumas horas, mas quando a gente pede uns trocado, é sempre a mesma coisa.

“Desculpe, não tenho”.

Tem sim! A gente sabe que têm, nós que pedimos é que não têm.

Porcos gordos, todos eles!

Ô moço só um trocado vá? Uma moedinha pra eu comê…

Tenho que ter o suficiente pro pão de dona Selma. Só mais umas moedinhas…

A adolescente

Eu não acredito que consegui sobreviver a 17 anos da minha vida ao lado desse energúmeno do meu irmão! Fechei minhas mãos e apertei as unhas na própria pele. Doía, mas, ao menos, me impediria de dar um soco naquele sorrisinho mimado aqui mesmo, no banco de trás do Uber!

Se estivéssemos na casa dos nossos pais eu já teria lhe dado uns tapas muito bem dados. Inferno, eu falei tanto a mãe que ela precisava dar um jeito nele, mas ela não me escutou. Claro, quem é que me escuta ? Ninguém! Nunca, na verdade, sempre não escutam! Mas às vezes, sabe, às vezes, eu tenho razão. Às vezes eu tenho toda razão!

Ok, preciso me acalmar.

Depois de dar uns gritos nele, percebi que o motorista nos observava pelo retrovisor e resolvi ficar calada. Virei a cara para a janela e fiquei olhando a rua.

Tinha uma menininha brincando com um cachorro.

Eu sentia falta de cachorros em casa, mas mais uma vez o energúmeno era um empata: tinha alergia a pelos.

Acho que suspirei alto, não sei.

Oh no.

Como eu diria aos meus pais que Alexandre levava maconha para fumar na escola?

A menina

Eu vou conseguir! A bola tá no pé, finalmemde a bola tá no pé!

Agora é só correr!

opa, não vai tomar de mim não, uhu!

papai vai ver eu acertar o gol em cheio, ele vai ver sim!! As outras meninas bem tão tendando, mas eu que vou conseguir o gol da vitória.

Droga.

Preciso passar para Isabella.

vai Isa! se eu correr mais um pouco passo na frende dela e ela pode mandar para mim.

Rápido Edna, rápido! os pés gordos dessa menina não vão me impedir!

E a bola tá comigo de novo, mais rápida do que a Mulher Maravilha. Eu vou correr que nem a Supergirl, eu vou chudar a bola agora e…

É gol!!!!!

ganhamos! As meninas da rua augusta são campeã!!!

você viu isso papai? Viu?

Você não tá aqui, mas me disseram que de onde tá pode ver. gosdou papai? O gol foi para você.

Preciso tomar água.

O cachorro

Máquina, máquina, máquina.

Parou. Humm, fome.

Tá quente, pata dói.

Mais rápido.

Cheirar.

Hum, pé.

Chegar perto? Não sei…

Carinho…

Salgadinho?

Amo você!

Felicidade!!!

Colo. Adoro colo.

Pulinhos.

Hum, para onde ela tá me levando?

Vai demorar?

Cheira, cheira.

Que lugar quentinho.

Comida?

Huuummmm.

Amo você.

Quentinho, macio.

Uaaa…

Melhor dormir.

Eu

Você entendeu? Conseguiu sentir? Fomos 5! Isso mesmo que te mostrei. Você foi 5 comigo. Ou será que ao entrar em mim foi 6? Esse dia brilhante, foi cheio de experiência. Ser 5, sentir 5.

Ah, vai dizer que não gostou?

Quantas vezes você foi outro?

Não sabe? Bom, eu sei quantas vezes já fui você. Mas isso não vem ao caso, talvez nunca venha.

Hoje fomos 5 e é bem mais do que muita gente vai ser nessa vida.

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