Em 1969, vitória do América fez Grêmio apagar as luzes do Olímpico

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8 min readNov 12, 2019
Elenco do América formado no Maracanã, em 1969 | Reprodução

Emmanuel do Valle

Ao longo das décadas em que disputou torneios nacionais de elite, o América sempre foi rival indigesto para os clubes gaúchos. Com o Grêmio não foi diferente. Em 1969, na primeira vez em que participou do Torneio Roberto Gomes Pedrosa, o time rubro arrancou vitória sensacional por 2 a 0 dentro do Olímpico, em Porto Alegre, em um jogo que terminou antes do tempo regulamentar: tentando levar o destino da partida para o tapetão da CBD, os gremistas apagaram os refletores do estádio no segundo tempo. Mas não colou, e o resultado foi mantido.

O América já não tinha mais chances de classificação ao quadrangular final do Robertão quando viajou a Porto Alegre para enfrentar o Grêmio, mas estava animado. Nos dois jogos anteriores, ambos no Pacaembu, empatara com o Santos de Pelé em 1 a 1 e com o Corinthians de Rivelino em 2 a 2 (neste, após ficar duas vezes à frente no placar). E contava com Edu — autor dos três gols nas duas partidas na capital paulista — em grande forma.

No dia seguinte, O Globo narrou o apagão provocado no Olímpico | Reprodução

Dirigido pelo preparador físico Edsel Fernandes, que assumira o cargo de treinador com a saída do veterano Flávio Costa no fim de outubro, o América tinha uma baixa para a partida contra os gaúchos: a do atacante Antunes, com um estiramento na coxa esquerda. Em seu lugar, entraria o ponta-direita Mário “Tilico” (ex-Fluminense, Vasco e Bangu), que já havia sido titular do time no início do torneio, mas perdera a vaga por má forma física.

Outra alteração em relação ao time que enfrentara o Corinthians estava no gol: dando sequência ao prometido revezamento, Helinho (ex-Campo Grande) dava lugar a Jonas (ex-Bonsucesso). O restante da equipe estava mantido: Sérgio, Alex, Aldeci e Zé Carlos formavam a linha de defesa. Badeco, Renato e Tadeu compunham o trio de meias, com o terceiro mais adiantado, encostando em Edu, que ocupava o comando do ataque com Sarão na ponta-esquerda.

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Nos pés deste time americano também estavam as esperanças de outros dois cariocas, Botafogo e Fluminense, que tinham no Grêmio um adversário por uma vaga na fase final do campeonato. Mas o zagueiro rubro Alex negava que o América fosse jogar em Porto Alegre pensando nos rivais: “Não temos a intenção de prejudicar ou beneficiar a ninguém, mas apenas a de garantir ao nosso clube uma boa posição na Taça de Prata”, explicava.

O time gaúcho, por sua vez, precisava desesperadamente da vitória. Mas tinha problemas no ataque: o artilheiro Alcindo se lesionara na partida contra o Vasco e, para piorar, seu reserva Hélio Pires também se contundira no jogo seguinte, contra o Bahia, o que levaria o técnico Sérgio Moacir Torres a improvisar no setor. Mesmo assim, os gremistas ainda contavam com um time forte, que incluía o lateral Everaldo e o futuro americano Flecha.

O gaúcho “Diário de Notícias” também registrou o apagão ocorrido no Olímpico | Reprodução

Contra essa força do Grêmio e de sua torcida, o América utilizaria a mesma estratégia que tinha valido muitos pontos aos gaúchos fora de casa: atrair o adversário para seu campo, detê-lo com uma forte retranca e sair em contragolpes aproveitando o espaço criado para que Edu desfilasse seu talento. A estratégia surtiu efeito logo de início: o Grêmio começou sufocando o América, mas após contra-ataque aos oito minutos os rubros abriram o placar.

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O gol veio em uma falta cobrada por Mário, num lance em que o goleiro gremista Arlindo falhou. Atrás no placar, o Grêmio passou a atacar ainda mais e chegou ao empate com Paíca, mas o gol foi anulado por impedimento. Foi quando os gremistas se descontrolaram. O time passou a apelar para jogadas violentas e a torcida local começou a atirar pedras e outros objetos no gramado, acertando inclusive o médico do America, Dr. José Fernandes, nas costas.

O juiz paulista José Clemente de Oliveira ainda estendeu o primeiro tempo até os 50 minutos e, quando apitou para o intervalo, dirigentes gremistas invadiram o campo para ofender o auxiliar Orion Sater de Mello, que havia anulado o gol de Paíca. O América voltou para o segundo tempo com o atacante Jeremias no lugar de Renato, e passou a incomodar muito os donos da casa, até que aos 21 minutos Edu sofreu falta de Ari Ercílio perto da área.

Atlético-MG qualificou o episódio como “cafajestada”, nas páginas do Jornal dos Sports | Reprodução

Antes da cobrança, o atacante americano foi provocado pelo zagueiro gremista, revidou, e ambos acabaram expulsos. Assim que o jogo foi reiniciado com bola ao chão, Mário foi acionado, passou por Everaldo e bateu para marcar o segundo gol do América. Foi o estopim para que o estádio se tornasse de vez uma praça de guerra. O meia Júlio Amaral foi expulso por reclamação, e logo em seguida foi a vez de Flecha e Zé Carlos, por troca de pontapés.

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Naquele exato instante ocorreu o episódio que levaria o jogo para o tapetão da CBD (a CBF da época): o apagão dos refletores do Olímpico, que provocaria o encerramento precoce da partida, depois de o árbitro aguardar pelos minutos regulamentares o reestabelecimento da energia elétrica, sem sucesso. Na confusão que se seguiu, um repórter da “Folha da Tarde” foi agredido por dezenas de torcedores gremistas e foi parar no hospital.

Não era a primeira vez que o incidente ocorria: duas semanas antes, contra o Coritiba, em meio à pressão dos visitantes, os refletores se apagaram por alguns minutos. No fim, quando ela voltou, o Grêmio fez o gol da vitória por 1 a 0. Contra o América o episódio ganhou ares ainda maiores de tramoia de bastidores, uma vez que o apagão chegou a ser anunciado dois minutos antes de acontecer pelos repórteres da Rádio Guaíba, que transmitia a partida.

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Os dias que se seguiram foram quentes: escudados pela Federação Gaúcha, os dirigentes do Grêmio muniram-se do que podiam para tentar a anulação da partida. Enquanto tentavam tirar de si a responsabilidade pelo apagão, alegando que o reparo das torres de iluminação levaria horas, culpavam o árbitro da partida — que, segundo os cartolas, havia prejudicado o Tricolor — pelo clima de guerra em que o jogo transcorreu.

O América, por sua vez, não admitia sob hipótese alguma disputar novamente a partida, e nisso tinha o apoio da Federação Carioca, na pessoa de seu presidente Otávio Pinto Guimarães. Além disso, o Atlético Mineiro — que disputava a vaga no quadrangular com o Grêmio — tomou as dores dos rubros, qualificando a atitude gremista como “cafajestada”. O Botafogo, outra parte interessada, prometia ir “até as últimas consequências” contra a anulação do jogo.

Na súmula, o árbitro paulista José Clemente de Oliveira afirmava que paralisara o jogo aos 30 minutos do segundo tempo e esperara por mais cerca de 45 minutos pelo restabelecimento da energia. No documento, ele registrava ainda que os dirigentes gremistas não fizeram o menor esforço para que o reparo fosse feito, opinião corroborada pelos dois auxiliares, Orion Sater e José Luís Barreto, ambos filiados à Federação Gaúcha.

Episódio provocou união política entre clubes do Rio de Janeiro | Reprodução

Nos corredores da CBD, havia a inclinação para se manter o resultado, já que o defeito havia sido causado, na melhor das hipóteses, por negligência. Enquanto a batalha dos bastidores seguia — o Grêmio chegou a recorrer por carta ao presidente da República, general Emílio Garrastazu Médici, torcedor do clube –, empurrando o julgamento do caso para o fim daquele mês de novembro, a bola continuou a rolar pelo Torneio Roberto Gomes Pedrosa.

Quatro dias depois de perder para o América, o time gaúcho empatou em 1 a 1 com o Cruzeiro no Olímpico, agora sem apagar a luz. No domingo seguinte, venceu o Santa Cruz por 3 a 1, de novo em casa, e chegou com chances à última rodada cheia da primeira fase. Mas, no sábado, 22 de novembro, em jogo antecipado, foi goleado pelo Palmeiras por 4 a 1 no Morumbi, resultado que encerrou totalmente suas chances matemáticas de classificação.

O gaúcho Diário de Notícias exalta o artilheiro Edu, no dia do jogo | Reprodução

Com o caso já murchando, o STJD decidiu, no dia 25, acolher o parecer do auditor, que sugeriu manter o resultado e a contagem de pontos em favor do América, por entender que o Grêmio, como infrator, seria o maior beneficiado com a marcação de um novo jogo. O Tribunal ainda multou o clube gaúcho em NCr$ 40 mil (Cruzeiros Novos) e decretou a interdição do Estádio Olímpico para jogos noturnos enquanto o Grêmio não apresentasse projeto de reforma da iluminação.

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Os dois pontos na conta ajudaram o América a encerrar de maneira bastante digna aquela que seria sua melhor campanha — sétimo colocado — nas quatro edições do Robertão. Quatro dias depois de vencer o Grêmio, o time arrancou nos minutos finais o empate em 1 a 1 contra um cansado e já eliminado Flamengo, em uma partida em que os rubros tiveram dois jogadores expulsos. Mas o grande desfecho veio no dia seguinte à decisão favorável do STJD.

O América recebeu o São Paulo de nomes como o zagueiro Roberto Dias, o meia Gerson e o atacante Toninho Guerreiro no velho estádio botafoguense de General Severiano. O jogo já não despertava interesse porque ambas as equipes estavam eliminadas. Mas os rubros não perderam a chance de golear por 4 a 0, com uma magnífica tripleta de Edu — que terminaria o certame como artilheiro, com 14 gols — mais um do meia Suquinha, fechando o placar.

*Emmanuel do Valle é jornalista e pesquisador da história do futebol brasileiro e internacional.

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