Heleno de Freitas encerrou a carreira pelo América, que lhe deu seu único jogo no Maracanã

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7 min readNov 8, 2019

Gabriel Sawaf

Heleno, à direita, em sua estreia pelo América: derrota por 3 a 1 para o São Cristóvão | Esporte Ilustrado

Craque dentro dos gramados, polêmico fora deles, Heleno de Freitas viveu seu auge esportivo durante os anos 40, um período em que não houve Copas do Mundo por causa da Segunda Guerra Mundial. Depois do apogeu, viriam graves problemas de saúde mental e o ostracismo. Quando praticamente já havia pendurado as chuteiras, o centroavante recebeu nova oportunidade para se despedir do esporte. Foi em 1951, com a camisa do América. Nesta brevíssima passagem, teve apenas uma atuação com o manto rubro. Essa foi também a única vez que ele atuou no então recém-inaugurado Maracanã. O Príncipe Maldito faleceu em 1959, no Hospital Colônia de Barbacena-MG, sanatório onde estava internado.

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Natural da mineira Nepomuceno, Heleno chegou ao Rio em sua juventude para atuar pelo Madureira. Pouco tempo depois, acabaria descoberto pelo time de praia do Botafogo. Após o fim das atividades do departamento, foi para o Fluminense. Só em 1940 começou sua carreira no futebol brasileiro pelo clube de General Severiano e ali começou a encantar todos que o viam. Seu talento é reverenciado em uma das obras literárias mais marcantes sobre o esporte: “Futebol ao sol e à sombra”, do uruguaio Eduardo Galeano.

“Entre o gol e ele, uma multidão. Na área do Flamengo havia mais gente que em todo o Brasil. Se a bola caísse no chão, estava perdido. E então Heleno pôs-se a caminhar, sempre curvado para trás, e com a bola no peito atravessou tranquilamente as linhas inimigas. Ninguém podia tirá-la sem fazer falta, e estavam na zona de perigo. Quando chegou às portas do gol, Heleno endireitou o corpo. A bola deslizou até seus pés. E ele arrematou”.

Além de ser reconhecido pelo futebol, Heleno tinha fama no Rio por sua agitada vida extra-campo. Seu cotidiano dentro da boemia carioca, além de problemas com drogas como lança-perfume, o fizera ganhar o apelido Príncipe Maldito. Em uma ocasião, Heleno chegou a tentar se eletrocutar após um treino pelo clube de General Severiano.

Heleno de Freitas em treino pelo América, antes da estreia contra o São Cristóvão

Após encantar os cariocas com seu futebol e defender a seleção brasileira, Heleno se transferiu ao Boca Juniors, em 1946. A transação custou 600 mil cruzeiros aos cofres xeinezes e foi a maior da época na América do Sul. Sua passagem de três anos por Buenos Aires não rendeu o esperado e o centroavante retornou no Brasil para atuar pelo Vasco. A passagem pelo cruzmaltino ficou marcada pela presença no famoso “Expresso da Vitória” do clube da Colina, e também por uma briga generalizada com Flávio Costa, que o tirou da Copa de 1950.

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Após o atrito, Heleno foi emprestado para o Junior Barranquila. Na Colômbia, encantou outro grande escritor sul-americano: Gabriel Garcia Márquez. Após um ano, retornou ao Vasco da Gama, onde teve uma discussão pública com Flávio Costa e foi expulso de um baile por inalar lança-perfume.

HELENO, DO AMÉRICA

Com todos os problemas, cada vez em um mundo mais sombrio por conta da bebida, quem poderia dar uma chance a Heleno? O América! Em uma boate da noite carioca, conheceu Raul Martins, diretor de futebol do clube rubro na época. Após várias noites de conversa, Martins conseguiu convencer os conselheiros e o presidente Fabio Horta a dar uma chance a Heleno, como conta Marcos Eduardo Neves na biografia “Nunca houve um homem como Heleno”, lançada em 2006 pela Ediouro.

O ambiente era de dúvida sobre o momento de Heleno de Freitas | Esporte Ilustrado

Martins era um grande fã de Heleno e acreditava que no América o centroavante poderia retornar aos seus tempos áureos, além de colocar o clube em mais destaque na mídia. Campos Salles abriu as portas para Heleno no dia 17 de outubro de 1951, mas não houve acordo por conta de questões salariais. Uma semana depois, o Príncipe Maldito voltou, por conta própria, e se ofereceu para treinar com o grupo.

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Fora do peso, Heleno provocava desconfiança na diretoria e na torcida, algo que duraria pouco. Em seu primeiro coletivo, o atacante deixou outra impressão. Sem correr muito, Heleno, que atuou no time dos reservas, fez um gol fantástico: driblou dois zagueiros e tirou o goleiro Osni para tocar no fundo da rede. Foi o suficiente para que Horta pegasse a quantia do próprio bolso e fosse para o Vasco comprar seu passe, antes que o valor aumentasse.

Mas Heleno não mudara de personalidade. Seu temperamento já assustou antes do coletivo. Ele partiu para cima de um fotógrafo que estava em Campos Salles e tentou tirar uma foto do atacante, fora de forma, sem camisa. O treinador Délio Neves interveio na situação e impediu que seu jogador quebrasse a câmera do profissional. A situação fez com que o resto do elenco ficasse com uma preocupação em relação ao novo reforço.

Nota de O Globo Sportivo sobre Heleno de Freitas

Com tudo isso, Neves sabia que não podia lançar Heleno logo de cara e tinha que trabalhá-lo bem para que conseguisse atuar com maestria com a camisa rubra. Porém o destino aprontou. O América já não podia contar com Nivaldo e Walter, contundidos, o escrete da Tijuca perdeu Maneco na véspera de uma partida decisiva contra o São Cristóvão, no Maracanã. Neves se viu em uma corda bamba e não teve jeito: Heleno iria para o jogo.

A torcida ficou entusiasmada com a chance de ver o craque com a camisa americana, o jogador também. Além da estreia pelo América, o duelo marcava o primeiro jogo de Heleno no Maracanã, a grande e esperada oportunidade de finalmente atuar no maior do mundo.

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O duelo foi disputado no dia 4 de novembro de 1951 e seria transmitido pela TV Tupi. Apesar da atração televisiva, muitos torcedores foram ao Maracanã para ver o retorno de Heleno de Freitas aos gramados brasileiros após dois anos. O momento era decisão para a vida do craque. No aquecimento, discutiu com Dimas e ficou quieto, sem dar entrevistas, antes da partida, isolado em um canto de vestiário.

Ao subir o túnel veio sozinho, à frente dos seus companheiros. Também não posou para a foto com o grupo, o que evidenciava um clima ruim. A partida começou, o América precisava vencer para seguir vivo no Carioca. Heleno teve um bom início de jogo, veloz como nos áureos tempos de Botafogo. As arquibancadas vibraram quando o craque aplicou três dribles e foi parado com falta.

Heleno em campo, em treino antes da estreia | Reprodução O Curioso do Futebol

Mas no lance seguinte as coisas sairiam de controle. Heleno recebeu passe, dominou com a perna direita driblou um marcador e foi derrubado pelo zagueiro Torbis. A marcação da falta não foi o suficiente e Heleno explodiu contra seu adversário. Ao ser contido pelos seus colegas, se aborreceu com todos. O árbitro marcou falta técnica e o grupo sentiu os efeitos da presença do Príncipe Maldito no jogo.

Após isso Heleno ficou displicente, só aceitava passes que vinham em seu pé. Fora de forma, não conseguia acompanhar seus companheiros e os xingava, por se sentir boicotado. A atitude custou caro: Heleno acabaria expulso aos 25 minutos da primeira etapa por atitude antidesportiva contra os próprios jogadores do América. Na sua saída do gramado, suas únicas palavras oficiais com a camisa rubra.

“Espero viver em paz com Délio Neves. Afinal, ele não teve culpa do que houve.”

Por fim o América acabou derrotado por 3 a 1. A surpresa da rodada. No vestiário, Heleno teve um acesso de loucura. Xingava e agredia quem passava em sua frente. O resto do time ficou distante, espremido em um canto. Um fotógrafo conseguiu adentrar ao local e tentou registrar o momento. Um flash foi suficiente para que o atacante partisse para cima para tentar quebrar a máquina que disparava o filme de sua dor, como registrara Marcos Eduardo Neves.

Neves novamente o acalmou e ficou com ele até que o vestiário ficasse vazio. Heleno só conseguiu deixar o Maracanã duas horas após o jogo, escondido em um carro. Cerca de 200 torcedores o esperavam e, ao passar pela multidão, o atacante teve que ser contido para não parar o automóvel e ir para cima do que os criticavam.

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Foi o fim da passagem de Heleno pelo América. O treinador Délio Neves assumiu a culpa por tê-lo escalado de forma precipitada, mas excluiu o Príncipe Maldito do restante do campeonato. Na diretoria, todos lavavam suas mãos para que ninguém saísse como culpado.

Heleno ainda teve uma oportunidade no Flamengo, mas foi expulso da Gávea antes da estreia por nova confusão. Por conta de sua vida conturbada, Heleno foi acometido por sífilis e encaminhado o sanatório de Barbacena, onde seu quadro agravou até a morte, em oito de novembro de 1959. Há exatamente 60 anos. Sua trajetória também ganharia as telonas em 2011, com “Heleno”, de João Henrique Fonseca. O jogador foi interpretado por Rodrigo Santoro.

Com o passar dos anos, o Brasil descobriu que o Hospital Colônia de Barbacena mantinha seus pacientes internados em condições desumanas, comparáveis às dos campos de concentração da Alemanha nazista. Em 2013, esse cenário foi desvendado pela jornalista Daniela Arbex, com o premiado livro-reportagem “Holocausto brasileiro”, que chegou ao impressionante número de 60 mil pessoas assassinadas no local.

*Gabriel Sawaf é jornalista formado pela PUC-PR e colabora com o site Do Rico ao Pobre, que cobre o futebol paranaense.

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