Conceição Evaristo e Jarid Arraes na Festipoa 2018. (Foto: Gisamara Oliveira)

Sobre o que o cânone jamais conhecerá

Meu encontro com Conceição Evaristo

4 min readMay 7, 2018

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Estava sentada no saguão do hotel quando ela apareceu. A bolsa grande pendurada no ombro, o lenço colorido enfeitando o cabelo. Meus joelhos falharam, não quiseram sustentar o peso. Olhei para o tapete, tentando me convencer de que conseguiria, de que ficaria tudo bem. Conceição, que alegria te encontrar. Eu sou a Jarid, me convidaram para conversar com você. A voz tremida, segurando a vontade de chorar, carregando um peso de 8 anos nas costas.

Eu tinha 19 anos quando descobri Conceição. Todos os meus anos como leitora não foram suficientes para conhecer escritoras negras, elas não estavam disponíveis nas bibliotecas, na escola, na mídia. Uma garota do interior do Ceará, do Cariri, lia o que chegava até suas mãos. Lia muita coisa, muitos poetas, muito cânone, mas nenhuma escritora negra. Com 19 anos, decidi procurá-las. Então entendi que eu também me parecia com elas. Encontrar a mim mesma, me descobrir como uma mulher negra, foi uma dança intensa de encontro com as palavras de autoras negras que me fortaleceram e me deram coragem para me autorizar a escrever. Dentre elas, estava Conceição Evaristo.

No carro, a caminho do Mercado Municipal de Porto Alegre, pedi que, por favor, aquilo não fosse compreendido como bajulação vazia. Mas, Conceição, estar ao seu lado significa tanto pra mim. As primeiras lágrimas vieram devagar, acuadas, como crianças que chegam numa casa desconhecida, cheia de adultos tão grandes e onde tudo parece tão enorme. Ela sorria tão linda, dizendo que se sentia feliz, dizendo que as novas gerações contribuíam com sua trajetória. E eu pensava como pode, como pode.

Comemos peixe. Ela bebeu cerveja preta. Conversamos sobre Literatura, sobre o legado da ancestralidade, sobre a resistência da oralidade, sobre cordel e poesia. Chorei de novo, de leve. Foi ficando mais fácil e ela, mais como uma amiga. Pude contar da minha pesquisa — não acadêmica — a respeito de Beatriz Nascimento, e ela disse que me emprestaria um livro, que me entregou mais tarde. Tomou sorvete e eu fiz um registro pros Stories do meu Instagram.

Na verdade, eu estava me acabando em nervosismo. Quando sou convidada para eventos, normalmente não me sinto assim. Porque tenho um discurso político, porque tenho que me fortalecer e me preparar tanto, me considero uma pessoa bastante segura. Mas, na Festipoa, era tudo diferente. Perdi a conta de quantas vezes comentei com o Jeferson Tenório, nosso anfitrião de mesa de abertura e escritor maravilhoso, primeiro aluno cotista formado pela UFRGS, que meu corpo estava gelado, como se caísse de um prédio, de um abismo, e fosse puxado de volta, só pra cair novamente e de novo e outra vez.

E se eu falasse besteira? E se eu falasse demais?

Tive o privilégio de acompanhar Conceição Evaristo durante a coletiva de imprensa e ouvir sua fala lúcida e política a respeito de sua candidatura à Academia Brasileira de Letras. Pensei que sua presença seria um favor prestado à ABL. Quem não concorda é tolo e não conhece a ABL. Ali, todos pareciam concordar e estavam muito felizes. A fila para entrada no Salão de Atos era enorme. O tempo parecia não passar. Até que passou.

(Foto: Gisamara Oliveira)

Conceição foi ovacionada. Sentamos. Mais de 1500 pessoas? Acho que sim. Eu não sabia o que fazer com minhas pernas. No fim das contas, penso que me saí bem. E me saí bem porque Conceição estava ao meu lado. Ela me olhava, sorria, me dava a mão e eu lembrava de todas as vezes em que me chamou de menina, em que se interessou por meu trabalho, fez perguntas, disse conhecer meus livros. Como todas as outras escritoras negras que conheci aos 19 anos e tive a felicidade imensa de encontrar, Conceição me abraçou, me acolheu. Mais uma vez, me fortaleceu.

E isso o cânone jamais conhecerá.

Nenhum autor consagrado, branco, jamais conhecerá.

Ao final da mesa, me permiti chorar. Soltar o peso de 8 anos que a menina Jarid carregava nas costas. No entanto, o choro de dor, de chorar a injustiça de nunca me enxergar, de achar que a escrita não era coisa de preto, de preta, se transformou em choro de felicidade. De plenitude. Eu, menina, estava ao lado de Conceição Evaristo. Eu, menina, agradecia pelos caminhos que ela abriu para mim. Eu, menina, agradecia pelo legado que mudou minha vida e que marcará para sempre a nossa história.

E ela novamente me deu a mão. Olhou para meus olhos d’água. Levantou, abriu os braços, coletou meu corpo. E disse:

Isso nenhum autor consagrado conhecerá.

Esta crônica foi publicada na iniciativa Mulheres que Escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como dar visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

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Escritora, cordelista, poeta. Curadora do selo Ferina. Fundadora e coordenadora do Clube da Escrita Para Mulheres.