Escultura por Alison SaarBareroot

Uma mulher negra escrevendo em busca de casa

Resgatando um continente inteiro da minha memória

Jarid Arraes
6 min readJul 19, 2017

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Descobri, pelo Instagram, a poeta Nayyirah Waheed. Na Wikipédia, seu artigo em inglês nos diz que, embora seja uma das poetas mais seguidas da rede social (se não a mais), sabe-se muito pouco sobre sua vida, seus gostos e sua infância. Não há selfies. É difícil encontrar seu rosto por aí. Nayyirah publica suas poesias e é isso.

Fiquei encantada pela “proposta”; curiosa, peguei seus livros disponíveis para Kindle. Comecei por nejma, que me ganhou. Terminei em salt., que me fez chorar profundamente. Como pode uma poesia tão “minimalista” (nessa pegada meio Rupi Kaur, sabe?) dizer tanto? Dizer tão infinito?

A escolha de Nayyirah em permanecer quieta e deixar sua poesia falar por si me deu licença para encontrar minha resposta: Nayyirah fala de uma dor e de uma busca que, para mim, traduz todos os desafios e dores que o mercado editorial, as livrarias e o “mundo literário” representam para uma escritora negra como eu.

eu perdi um continente inteiro
um continente inteiro da minha memória.
diferentes de todos os outros hifenizados americanos
meu hífen é feito de sangue. fezes. osso.
quando áfrica diz oi
minha boca é um coração partido.
porque não tenho nada na minha língua
para respondê-la
eu não sei como dizer oi para minha mãe.

- afroamericana ii

(nayyirah waheed)

Sou uma mulher negra muito brasileira. Muito filha de uma mãe loira e de um pai negro de pele mais clara. Sou uma mulher negra que só entendeu ser negra depois da adolescência, depois de todo o racismo sofrido até ali. Apesar de todo o racismo sofrido até ali. E quando compreendi isso, também descobri que podia escrever.

Entenda, não é simples: meu avô é um poeta de reconhecimento internacional, assim como meu pai. Por não ter dinheiro para comprar livros e por falta de livrarias no interior do Ceará, os livros de poesia do meu pai foram minha farinha, minha sustância. Voltava da escola na garupa da moto enquanto ele declamava “Versos Íntimos” e “No Meio do Caminho” para mim. Descobri Drummond, Gullar, Leminski, Bandeira. Descobri tantos poetas, tantos homens poetas, tantos homens brancos poetas, que me afoguei na impressão de que poesia era uma coisa só deles. Não pra mim, que escrevia escondida em meus cadernos.

Quando cresci, ouvi falar de Feminismo, depois de Feminismo Negro, comecei a encontrar por aí um monte de mulheres que me trouxeram outras impressões sobre o mundo, sobre a escrita e sobre mim. E foi quando descobri as escritoras negras que me foram negadas por toda a minha vida que entendi: eu podia escrever.

Escultura por Alison SaarAlumna

No entanto, escrever cresceu dentro do meu peito como algo muito maior do que meus antigos cadernos. Maior do que meu primeiro blog sobre feminismo, maior do que as colunas que eu assinava em veículos de notícias. O que eu queria da escrita era aquilo que Drummond tinha. Mas e a literatura? Ela me queria?

Faça o exercício de acompanhar os lançamentos literários a cada mês: quantos livros são publicados por mulheres? Entre essas mulheres, quantas são negras?

Agora pense nos livros que você lê e diga baixinho, só pra mim, quantas protagonistas são negras? Quantas personagens são negras?

Isso é parte do que dói e do que Nayyirah Waheed escreve.

que bonito
que você pode abrir um mapa
e com o dedo firme
me mostrar quem você é.
você diz
‘me mostre, me mostre quem você é.’
eu digo ao meu dedo mole e apertado
‘não tenha medo’
eu devagar e levemente
deito meu dedo em áfrica (como se eu não pertencesse a ela.)
e
então
você me pergunta
‘onde’.

- afroamericana iii

(nayyirah waheed)

Nas prateleiras das livrarias, é muito mais fácil encontrar escritoras brancas publicadas. Seus sobrenomes contam origens europeias, famílias italianas, alemãs e de tantos outros lugares. Nas casas dos seus avós, é provável que brasões familiares sejam parte da decoração. Elas podem conhecer as comidas do seu povo, as festas do seu povo, a língua do seu povo. E podem contar as histórias do seu povo, porque algumas editoras publicarão. E nós leremos livros que se passam em períodos históricos diversos, por toda a Europa e em São Paulo, e amaremos essas histórias, faremos coleção desses livros e clubes de leitura. E embora eu goste de tudo isso, cada vez mais comecei a perguntar: e eu?

Quem é meu povo? Quais são nossas comidas, nossas datas, nosso sobrenome? Meu cabelo crespo é o cabelo crespo de onde? Nigéria, Angola ou Congo? Outro país do continente africano?

Quanto mais essas perguntas fervilham em mim, mais escrevo. Essa busca está no meu primeiro livro, de prosa. Está no meu segundo livro, de poesia em forma de cordel. E eu acredito que estará no meu próximo livro de poemas, e em todos os outros livros que virão. Porque as dificuldades que o mercado editorial levantam contra mim, a discriminação na hora de conseguir espaço de divulgação, a falta do dinheiro que paga a presença nas livrarias e nas melhores prateleiras, tudo isso começa aí.

Escultura por Alison Saar Harriet Tubman Memorial (Swing Low)

Começou quando a primeira pessoa negra foi sequestrada de seu país, teve seu nome mudado, perdeu seu sobrenome, foi proibida de falar sua língua e não pode aprender a ler e escrever na língua portuguesa. Começou quando a primeira mulher negra escravizada foi vendida como boa reprodutora; quando foi vista como um corpo hipersexual, que só para isso serviria. Começou aí e foi se espalhando, virando nossa cultura, nossas “opiniões” que até hoje repentem a mesma ladainha: mulheres negras são intelectuais? Escritoras? Mas como, se na novela, nos filmes, nos livros elas nunca estão? Se quando estão, são aquelas consideradas em posição subalterna? Como eu, escritora negra, teria as mesmas oportunidades que uma escritora branca, se já carimbaram há séculos o tipo de gente que tenho que ser?

Como Carolina Maria de Jesus seria lida em clubes de leitura hoje, se nossas prateleiras, editoras e eventos só enxergam Clarice Lispector?

Nayyirah é muito lida porque busca meios que fogem do padrão. Porque ao invés de mandar originais para as grandes editoras e esperar eternamente, decidiu que se publicaria no instagram. Antes de conseguir publicar meu primeiro livro por uma editora, escolhi o caminho da publicação independente. Apanhei, trabalhei, fiz tudo, me virei em mil. E até hoje o roteiro continua. Até hoje, parece que a única via possível é aquela desviada, cheia de pedras. Afinal, ainda “comemoramos” 30% de convidados negros no maior evento literário do país. Como se 30% fosse sequer 10% perto da metade. Não é. Não é suficiente.

E enquanto leio Nayyirah Waheeh, penso em todas as minhas amigas escritoras brancas. Será que elas sabem disso tudo? Será que entendem os poemas de Nayyirah? Será que existe a possibilidade de que uma lágrima escorra dos seus olhos quando eu e Nayyirah balbuciamos qualquer coisa que não diz nem “oi” para nossa origem (desconhecida)? Será que aquilo que escrevemos é suficiente para que entendam? Ou melhor: será que somos lidas?

Quantas escritoras, autoras, poetas negras você leu nas suas leituras do mês?

que mulher que
sou
me pergunto
espelhada

que mulher tem essa pele
desbotada

o que sou de mulher
com cabelos armados
e perigosos
que mulher periga
na linha encardida
da caixa parda

que mulher que sou
aos teus olhos
de mulher

sou repetição
diferença
ou sou resposta
quem sabe
ausência

que sou eu
mulher
misturada

entre cores
diluídas
e marcas
deixadas

não sei que mulher
é meu tipo
de ser
se sou como ela
como outra
se minhas raízes
se fazem entender

pergunto
no espelho
com o tubo
de creme

[pingaram três gotas
no tapete]

que mulher sou eu
mulher-quase
mulher-nem-tanto
mulher-um-pouco-demais
para não ser.

(Jarid Arraes)

Julho é o mês da mulher negra. Dia 25 celebramos o Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha. Nas pesquisas realizadas pela especialista em literatura Regina Dalcastagnè vemos que, nos lançamentos publicados entre os anos de 1990 a 2004, 93,9% dos autores são brancos e apenas 7,9% dos personagens são negros. É preciso abrir espaços na Literatura, é preciso ler mais mulheres e, principalmente, mais mulheres negras.

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Jarid Arraes

Escritora, cordelista, poeta. Curadora do selo Ferina. Fundadora e coordenadora do Clube da Escrita Para Mulheres.