casa da matriz #4 (auge , declínio e futuro)
(esse é a quarta e última desse textão de quatro blocos que faço de homenagem à Casa da Matriz, à noite alternativa carioca e a tudo o que isso me significa. A primeira parte você pode ler aqui, a segunda aqui e a terceira aqui, mas vai ter mais graça lendo desde o início, então deixa de preguiça e cola lá para ler tudo, poxa!)
O que me parece ter sido o auge dessa cena alternativa, ao menos do ponto de vista do negócio (várias festas, várias casas novas), também foi para mim o auge de gostar e praticar esse entretenimento noturno chamado “boate”, “discoteca” ou “balada” (fora do Rio). Era tanta festa acontecendo num fim de semana que era impossível não achar sua subtribo dentro da tribo alternativa: o mar estava para peixe. O público dessa noite com a qual convivi nesses que posso dizer terem sido os (meus) golden years era, em sua maioria, de universitários, entre 18 e 24 anos. Fazendo as contas e arredondando, convivi “na noite” com um público de nascidos entre 1985 e 1995… esse talvez seja um bom chute de sobre quem (e para quem) eu possa estar falando.
Acho que lá para o final de 2011/2012, tudo começou a ficar errado dentro de mim. Na minha memória possivelmente falha, deve ser quando as festas começaram com esses atrativos de servir pizza, sorvete, shots de qualquer coisa ou dar pulseirinha de neon para as pessoas fazerem mídia (isso antes do Instagram ser significativo). Festas viraram temáticas de nerds/geek, com superproduções. Acabou aquela coisa noventista, de frequentar no mesmo mesmo dia da semana a mesma festa na mesma casa com as mesmas pessoas. Virou careta. De toda forma, tenho para mim que os late millenials (ou já a geração Z) estragaram a noite alternativa com seus modismos, pulsões por Harry Potter, etc, mas talvez eu só seja um velho ranzinza a profanar a juventude alheia. Um invejoso.
Lembro com tristeza de quando pulularam como feature de festas a presença de sites de fotografias (ok, falo do I HATE FLASH), quando as pessoas passaram a curtir fotos com exposição longa e flash (i love flash é o nome de verdade, “i hate flash” é ironia) na qual apareciam com luzes em movimento, geralmente fazendo fazendo carão e fingindo que não estão posando. De repente, esse tipo de coisa virou a coqueluche midiática de pessoas tímidas vivendo os efeitos de uma geração superexposta. Se você já trocou sua foto de perfil por uma do I Hate Flash fazendo carão, clique aqui.
Fui ficando atravessado. Eu, que passara uns cinco anos, do final de 2007 ao final de 2012, indo religiosamente quase toda semana em alguma festa da noite alternativa carioca para expurgar meus demônios e lavar minha alma, em dado momento também cansei. Cansei da cena, cansei das pessoas, cansei até de mim mesmo, um pouquinho. Estava para me formar, teria que estudar muito para concurso público, comecei a namorar bem sério, estava me cansando do Rio, não estava mais bebendo quase nada.
Não apenas eu, mas todas as pessoas daqueles tempos foram ficando mais velhas, a Matriz foi ficando mais velha, os rocks foram ficando velhos (e não mais so last week), os antes universitários viraram seres com horários rígidos, compromissos, pressões de empregabilidade, relacionamentos sérios, estágios promissores, etc. O corpo também não é mais o mesmo para todos: a resistência ao pouco sono diminui, a facilidade da ressaca aumenta e aquele prazer absurdo de chegar sexta à noite e se dar ao luxo de dormir cedo após uma semana cansativa vai se fazendo cada vez mais real, ainda mais depois que trouxeram o Netflix ao Brasil (em setembro de 2011, coincidentemente ou não).
Analisando de forma não criteriosa, acho que o declínio da cena teve seu germe no seu próprio auge: ousaria dizer que esse excesso de festas que movimentava a indústria gerou uma desnaturação do foco do que faz uma boa festa. Na melhor das hipóteses, é uma mera perspectiva de um conflito geracional. Na pior das hipóteses, houve empobrecimento real na genuinidade da festa de rock. E um certo empobrecimento geral não há como se negar: as festas passaram a tocar mais hits e menos coisas a serem descobertas, as pessoas começaram a ser mais “normais” em suas interações e tipos humanos, a festa deu lugar ao evento, o tipo inferninho virou mais “paraisinho”, funk e indie se misturaram com uma facilidade assustadora, as produções ficaram mais politizadas em sentidos que me soam, mais uma vez, diversionismo. Virou um espaço de liberação alheio, um espaço do qual eu não me sentia mais parte, talvez exceto pelo singularíssimo ato de me balançar ao som de música. Junto disso, vieram as redes sociais de aparição instantânea, hashtags, etc. Começaram a fazer dicotomia raiz e nutella. Memes fizeram parte: eu cheguei a ouvir a paródia do Nissin Ourfali na noite. Minha sensação, ao final, é de que as pistas de dança e a boate como espaço de veneração musical viraram meros acessórios do entretenimento, como se fossem parte do tema de uma festa, e não mais a alma de uma festa.
Some-se a isso o fato de que a playboyzada também começou a frequentar mais a noite alternativa. E alguns poucos alternativos, como eu, aprenderam a gostar de uma noite de playboy, especialmente porque a comida e os banheiros eram melhores. Minto. Também aprendi a gostar muito de David Guetta, esse estilo aí que eu nem sei explicar direito, e as musiquinhas “lelesconas” da época — sou um dancing animal eclético, poxa…
Os playboyzões, que antes achavam que festa alternativa era “coisa de viado” de tão bipartidarizada e homofóbica que era a juventude carioca em dado momento da evolução civilizatória (que, felizmente, hoje mostra fronteiras entre os outrora segmentos — na década de 90, o termo era “boate GLS” — um pouco mais esmaecidas), também mergulharam no mundo alternativo. Com isso, também trouxeram todos os seus podres típicos, como brigas de machões, flertes agressivos de quem achava ser ‘doce’ quem dizia “só vim aqui para dançar”, crença abusiva de que vão participar de pegação entre lésbicas como convidado de honra (“será que são bi?” é o que perguntavam), mascação de chicletinho marrento para disfarçar a frustração de ter levado um toco (um não ao flerte), etc. A versão publicável é que a playboyzada fez esse mergulho nas trevas da alternatividade porque acharam a noite alternativa mais divertida e possivelmente genuína, mas sei que parte da verdade é porque achavam que na boate alternativa era mais fácil “pegar mulher”, igual a playboyzada que ia no show da Pitty em 2005 chegar nas “grunges” (o Rio é uma tragédia para bolinar os diferentes, grunge era sinônimo de qualquer alternativo. Metaleiro era grunge). Segredaram-me e aqui fofoco, porque o Rio de Janeiro é uma piada e todos os fatos já prescreveram no deserto da frustração que é todo mundo estar adulto e, afinal, sofrer mais ou menos dos mesmos problemas. Tribo de adulto é bloco do “eu sozinho”, sozinho com cônjuge, filho e/ou pets, em casas que querem imitar coisas de Pinterest para não revelarem a fragilidade que esconde aquele montão de MDF e aglomerado por que às vezes pagamos até caro na TokStok.
abre parênteses.
Aliás, o Rio de Janeiro é tanto uma piada que, de repente, em 2016/2017, o Rio passou a ter um “bar de rock” que, dizia a reportagem, estava “bombando no verão”. Porra! “Bar de Rock” e “bombar no verão” não se misturam, igual seria colocar o Ozzy Osbourne para fazer uma versão good vibes de Mr. Crowley no Luau MTV, com adolescentes com gargantilhas balançando braços. É óbvio que esse tal bar não era um autêntico bar de rock, mas um bar temático de rock, a céu aberto, onde pessoas desconexas vão fazer o entretenimento da vez, pessoas essas que devem curtir coisas de gente que canta sorrindo (tipo Thiaguinho) e que vão ao tal bar com camisa genérica do AC/DC, às vezes com barriga de fora, tirar foto fazendo chifrinho com as mãos e sorrindo. Algo me diz que os camarotes do Rock In Rio, mesmo nos dias mais pesados, também é frequentado por gente assim, “hoje é dia de rock, bebê”. Calma lá: o Rio é mesmo muito errado, qualquer tema serve para se posar. Digo e repito: não existe bar ou boate correta de rock sem inferninho, sem esfumaçamento, sem algum tipo de sordidez ou podridão do lugar ou de seus frequentadores. A Matriz nunca seria a Matriz se tivesse um lounge com chaises com vista para o Cristo Redentor e água saborizada de limão siciliano. A Matriz rima com o cemitério São João Batista: revertere ad locum tuum.
(fecha parênteses)
Boates dependem de jovens e os novos jovens, ainda mais jovens do que a última leva que certamente curtiu muito a noite alternativa ainda que de forma diferente daquela na qual eu havia sido forjado, vieram com hábitos ainda menos noturnos, menos infernísticos, menos rockeiros, talvez. Aposto que bebem menos: disso eu já era um prenúncio. O negócio boate, o business, foi saindo de tendência no mundo todo, com capitais noturnas registrando recordes de fechamentos. No Brasil, o Rio foi ficando perigoso, a cidade cara, a noite duvidosa. O ocaso econômico foi dando as caras no país. Ainda antes, o incêndio-tragédia na Boate Kiss em Santa Maria em 2013 criara novas exigências de segurança que deixaram as casas e as produções mais receosas, naturalmente: a Matriz teve que instalar uma escada de incêndio por fora, mas teve lugar que precisou fechar.
O rock alternativo também foi saindo de moda. Você provavelmente não ouviu os três álbuns que o Franz Ferdinand lançou depois de Tonight (se é que ouviu o Tonight, a bem da verdade), pois eu também não. Parte da magia se foi. É inegável. A porcaria do Imagine Dragons virou a salvação comercial do rock. Em 2013, veio o Tinder, tornando mais fácil, eficiente e barato a ideia de conhecer alguém sem precisar enfrentar o sofrimento que para alguns inevitavelmente o ambiente de bares e boates acabava sendo para “chegar” em alguém. Em 2015/2016, veio a crise. Os outrora jovens passaram a trabalhar. O mercado de trabalho deve estar mais competitivo. Alguém ainda cogita “começar a semana se acabando” numa festa que começa às 23 horas em plena segunda-feira n’ “A Maldita”? Mais do que isso, alguém postaria story dando check-in na festa “A Maldita” hoje? O que seu chefe vai pensar? Melhor colocar foto do relógio do computador de madrugada com hashtag #homeoffice ou apagando a luz do escritório. Isso sim é se acabar.
As várias casas do Grupo Matriz foram morrendo, uma a uma. Pouco sobrou do império que havia em 2009/2010. No início do declínio, a Pista 3 fechou, levando consigo a parte da Matriz que muita gente lembra com mais saudade do que da própria Matriz (avisei na primeira parte que o título “Casa da Matriz” é metonímia e homenagem). A Pista 3, fechando com solidão e discrição, deu lugar a mais uma filial da Casas Chamma, tradicional loja de roupa de cama, por onde, quando passo de carro na frente, fecho os olhos tentando lembrar da fila que se formava ali para entrar naquele estranho e saudoso inferninho de uma pista única, ao lado de uma escadaria imensa com direito a banheiros no mezanino e uma janelinha de “submarino” por onde, do banheiro, dava para observar a curtição (a foto acima é do “submarino”). Bem que podiam fazer um edredom temático “fluidificado” em homenagem.
De repente, não mais que de repente, também o DJ Túlio parou de tocar na Veneno, que continuou com algumas mudanças e uma certa consistência. Por sorte, a Veneno ainda continuou sendo a Veneno (em que pese a decepção de eu ter ido uma vez, talvez em 2016, e ter achado a festa completamente desfigurada, mas foi só dessa vez — depois voltou ao normal). Em dado momento de 2018, disseram que a Veneno ia acabar e houve um chororô danado das viúvas e viúvos no mural do evento da edição final, saideira à qual eu não pude comparecer, pois já não morava no Rio. Menos de ano depois, voltou a Veneno, com edições mais esporádicas. Fui numas vezes e foi ótimo.
No meio disso tudo, também o Fornalha desmembrou-se em Fornalha e Catarina, por conflito entre os sócios. Fornalha era a lanchonete oficial da Matriz. O Fornalha “da Casa da Matriz”, que virou Catarina, é aquele que ficava na Rua Sorocaba com a Voluntários da Pátria e, pela proximidade, era o after por excelência dos notívagos dançantes, ávidos por coxinhas com requeijão, pasteis de forno e outros salgados. Simplesmente, parou de abrir depois das 22 horas, após sucessivos assaltos. Levou consigo parte importante da noite: terminar a noitada bem alimentado. É, até dava para comer outras coisas nas redondezas, mas não tão gostoso e nem tão perto para o andar trôpego de quem saía da noitada.
Outras tantas casas da noite alternativa foram fechando. Algumas festas acabaram. Outras passaram a ser bissextas. A religiosa Sundae Tracks, sagrada como os domingos em que acontecia, agora vive para edições anuais perto do Natal, momento em que os diversos órfãos dos gloriosos dias da Casa da Matriz, muitos espalhados pelo Brasil e pelo mundo, se encontraram em celebração inevitavelmente nostálgica da qual tive a chance de participar em 2019, numa despedida pressentida de um fim que só agora veio a se consumar.
1º de julho de 2020.
“Chegou a hora, passados redondos 20 anos, da Casa da Matriz se despedir do número 107 da Rua Henrique de Novaes. Foi o terceiro imóvel que recebeu a encarnação da Casa da Matriz e o mais longevo. Nossa alma, que se julga imortal, pulou espertamente e literalmente de lado e já se inseminou e está em autogestação na casa gêmea, a Vizinha 123, filha prenhe da mãe, onde aos poucos e, definitivamente após a pandemia, nasce a Casa da Matriz Estudios / Vizinha 123. Os salões, quartos e corredores daquela casa marcaram a vida e a história de muita gente. A memória, por mais embaçada que esteja, está lá, com todo mundo que cruzou aquele portal. O imóvel foi posto à venda pelo proprietário a quem agradecemos por todos esses anos de parceria.”
Anunciaram há dez dias que a Casa da Matriz vai fechar. Ou melhor, que renascerá em sua “alma imortal” na casa vizinha de número 123, cujo nome é, em homenagem eterna à casa que agora se fecha, nada menos que “Vizinha 123”. Perdoem-me os donos da Matriz, a quem agradeço por tudo, mas eu acabei corporificando a Matriz em seu espaço da casa 107.
Portanto, para mim, sem mais delongas, a Matriz morreu. Morreu dormindo no meio de uma pandemia, que nos forçou para dentro de nossas casas, sujeitos a lives horrorosas de cinco horas de gente cantando sorrindo (eu sou implicante, né). Enfio a cara no travesseiro e grito “nãoooooo”. Diz a notícia que o proprietário do imóvel pediu de volta o imóvel. Foi a especulação imobiliária que acontece em Botafogo e que já ergueu prédios sem graça no lugar do casario decrépito do entorno do cemitério São João Batista, arredores nos quais me permitira morar a superstição da minha vó pelo cemitério no qual ela quer jazer em breve? Aqueles prédios sem graça em vizinhanças pouco atraentes, em ruas barulhentíssimas e sem calçada, que custarão milhão só porque é prédio novo na Zona Sul do Rio de Janeiro (também conhecido como fenômeno “Rua da Passagem”). Não sei.
Com um anúncio melancólico que mais virou um mural de lamentações nas redes sociais, narraram esse fechamento-renascimento, que por tantos foi recebido como o fim de uma era. Eu ousaria dizer: o epílogo de uma era já finda. Inevitável é que só agora muitos perceberam que suas memórias ali corporificadas não eram mais recentes, mas saudades irrepetíveis. Alguns devem ter se tocado que ficaram velhos: “ — Caramba, aquele dia já faz 11 anos!” (E claro, não há nada mais adulto do que interromper uma brisa nostálgica “ — Opa, calma aí que tá entrando uma call”. Não é meu caso, que reservo as madrugadas para mergulhar em passados.)
Não vai ter mais Matriz nostálgica, salvo ao teatro onírico do fechar dos olhos. O afã de reviver sempre se beneficia de seu suporte físico-espacial. Algumas nostalgias precisam acontecer in loco: não suportam imitações, não suportam estúdios cenográficos. O lugar é importante e o lugar de muitas das memórias de toda uma geração da tribo alternativa carioca simplesmente vai-se embora junto com aquela casa de tantas emoções. E o dia chegou quando não podíamos sair de casa.
Eis aqui minha tristeza. Não é um protesto pelo fechamento, mas é só uma homenagem. Não quero me assimilar ao chororô dos frequentadores remissos que ocorre com qualquer fechamento, situação a qual às vezes beira o ridículo como aconteceu com a Luana Piovani protestando contra o fim do Cine Leblon. Em realidade paralela, como num filme cujo roteiro eu entrego de bandeja a quem quiser, os frequentadores assíduos quem sabe se uniriam para comprar o lugar do proprietário especulador e transformar a Matriz em eterna. O filme acabaria com uns coroas dançando Never There e fazendo carão com seus cabelos grisalhos. Lol. Não irá acontecer. Todos parecemos conformados e pauperizados. O fim-fim já parecia próximo — ou inevitável.
Aliás, tivessem anunciado o fechamento antes da pandemia e houvessem possibilitado uma festa de despedida, é fato que eu teria me deslocado de qualquer parte do globo para comparecer. Quereria pisar de novo naquele chão xadrez por uma última vez. Quem sabe tocá-lo? Levar um ladrilho para colocar na minha sala? Quereria usar aquele banheiro sujo por uma última vez. Tocar naquela parede de carpete. Esbarrar na saída de emergência e sair do outro lado. Pirar nas luzes. Pedir Blue Monday. Conversar com o grave dos falantes. Quem sabe, chorar ao final. Ah, claro, eu iria pedir “Quem Sabe” do Los Hermanos, possivelmente uma das pouquíssimas músicas do vernáculo que tocava nas Venenos e que é tudo a ver: a melhor música de perda já feita em língua portuguesa, mais pelo clima do que pela letra. Quem sabe o que é ter e perder alguém sente a dor que eu senti. Não sei viver sem te ter não dá mais para ser….. assim.
Eu iria querer me benzer naquele templo, permitir-me uma derradeira sessão de magia com outros tantos que certamente compartilham o mesmo vazio. Mas eis que uma despedida digna não foi possível.
“Nossa… como você é apegado.”
Câncer com ascendente em câncer.
Diante da despedida impossível, fiz sem saber a despedida que me foi possibilitada. Sem saber sabendo. Despedida sem se saber despedida é meio indigna, ocorre pela metade. Pressenti, intui que talvez fosse a última vez.
Era 22 de dezembro de 2019, a tal edição anual de Natal de Sundae Tracks. Parecia Natal, mas o público estava mais para Carnaval: o popular “outros carnavais”. Encontrei um pessoal das antigas, gente que nem mora mais no Rio de Janeiro, pessoas que você mantém contato exclusivo por redes sociais, conhece até a casa da pessoa, o cachorro, os hábitos matinais, mas não vê há anos. Amigos, semiconhecidos, semidesconhecidos. A fauna de sempre. Todo mundo um pouco mais velho, um pouco mais tímido, como se tivesse uma imagem a zelar e estar ali, naquele momento, fosse até meio queima-filme. Meu caminho de velhice é ficar mais tiozão do pavê. Lamento, mas era previsto. Cada um vai para um lado e eu não escolhi esperar a velhice. Sou do tipo que tira fotos na pista para ver depois. Dessa vez, até posei fazendo joinha, como quem diz “Oi, eu estive aqui em 2019.” Não posto porque o senso de ridículo ainda me bate, embora não haja desnudez maior do que escrever todas as essas linhas.
Foi uma noite muito boa. Pulei muito, dancei muito, fiquei suado e rouco, como nos velhos tempos. Tocaram as coisas de sempre, como esperado. Foi tudo nos conformes. De repente, também como sempre, bate um cansaço, uma pressão imensa para sair. Paguei a conta. E, mais uma vez como sempre, eu fiquei com a conta paga e fiquei esperando a próxima música. Acontecia assim: se fosse uma música ruim, eu ia embora. Se fosse uma música boa, eu ficava por mais uma, até vir uma música ruim. Na verdade, o que eu fico esperando mesmo é que toque Blue Monday. Se tocar Bizarre Love Triangle, eu vou embora com gosto. Eu detesto Bizarre Love Triangle. Quando toca Bizarre Love Triangle no meio da noite, a chance de tocar Blue Monday até o fim da mesma noite é quase nula. Aliás, está um motivo pelo qual eu subornaria um DJ. Aliás, se houvesse um preço a pagar para tocar Blue Monday e ainda saber que aquela noite seria a última naquele lugar sagrado, eu teria pago muito dinheiro por uma última sessão de Blue Monday na Casa da Matriz, para, com louvor, poder atualizar minhas definições biográfico-dicionarísticas do que seja uma saideira.
Nem sei mais se narro as coisas no presente ou no pretérito. Tem hábitos que talvez não se repitam.
A Matriz morreu e, hoje, acuso-me um viúvo. Faço meu recorte: a noite alternativa carioca — da forma como eu a conhecia — morreu, porque seus lugares morreram (talvez tenha sobrado a Fosfobox), sua vibe morreu, seu frescor morreu, seus passantes passaram e não se renovaram como necessário. Seu tempo morreu. Em plena pandemia, até esquecemos que um dia foi possível se aglomerar para ouvir música.
Talvez no futuro seja permitido fazer festas revivals para pessoas nos seus 40, 50, 60 anos com essa temática “festinhas indie 2010”, onde então divorciados farão sua recolocação amorosa com aquele flerte da Old Matriz, ao som de músicas constitutivas das suas juventudes. Teremos a nossa equivalente da Banda Celebrare arrepiando ao som de Last Nite ou Somebody Told Me? Cara, eu odeio banda de música ao vivo para dançar, mas, “quem sabe”, se o DJ Tulio tocar, até lá eu me anime. Aliás, medo do que serão as festas nostálgicas dos anos 2010 nos anos 2030/2040… espero que não seja com realidade virtual. Até 2030/2040, ou até que por milagre eu encontre casa equivalente para onde esse dancing animal possa ter seu habitat, sofrerei minha viuvez.
Dessa cena alternativa carioca que vivamente vivi guardo uma espécie de retrato nostálgico gravado entre 2007 e 2011, que fica na minha mesa de cabeceira, na foto pendurada no retrovisor, etc. Está em mim. É parte do filme da minha vida. Já fiz playlist para compartilhar essa lembrança com amigos e anônimos, mas há cheiros, pensamentos e pessoas que só em minha cabeça consigo evocar e, infelizmente, são memórias não compartilháveis, parte do meu tempo-espaço mental que agora se torna mais mental do que nunca.
Essas sinestesias afetivo-memoriais são tão punks que há até a memória auditiva de batidas aceleradas envolvendo um gosto etílico de um drink específico de nome “Mate-me por favor”, à base de chá-mate, que em dezembro passado tomei novamente e, para minha frustração nostálgica, não estava com o sabor de antigamente. Nesse gosto, há também a sensação do quão gostoso foi uma uma das primeiras vezes em que fiquei bêbado na vida e, cansado dos indie rock que rolavam na pista 1, subi para a festa de drum’n’bass que acontecia na pista 2 (“Febre”) e dancei loucaço um estilo que eu desconhecia, mega acelerado. Eu estava vivo.
Deus permita não deixar essas memórias esmaecerem ao sabor do tempo ou das novas memórias. Queria fazer backup delas num disco externo, salvá-las na nuvem a prova de desastres. Restou-me escrever, como sempre, como forma de não deixar apagar. Ora, essa reunião de memórias na gaveta Casa da Matriz hoje fecho para, quem sabe, reabrir em breve, ainda que na forma de tantos epílogos quantos bastem para um fade out digno. Vai deixar saudades — e saudades são uma forma de manter um pedacinho daquilo que se foi conosco: guardamos a parte que nos marcou.
Memórias reunidas que talvez me remetam ao exato gosto de ser jovem, de me saber jovem, de ter no “hoje” o “agora”, eis que confortável estava com o “amanhã” ser uma adorável incógnita, cuja única certeza era acordar fedendo aos cigarros que não fumei, rouco das músicas que cantei, mal dormido da madrugada sobre a qual avancei, porém feliz por tudo isso. Não é isso o que diziam que importava? Por tudo e por todos, eu ❤ Casa da Matriz.
(esse texto vai dedicado ao amigo Diogo Romano, que no dia 19 de julho completaria 31 anos, ele que foi amigo no colégio e que nos deixou prematuramente, após uma noitada na Matriz. Alguém de quem não pude me despedir direito, mas de quem acabei me despedindo mesmo sem saber, também pela metade, também deixando tantas conversas pendentes (porque eu estava na pista, e não no bar, e ele queria tanto conversar), numa triste noite de janeiro de 2011.)