Afinal, de onde vêm as fogueiras?

Fogo era usado para celebrar festas pagãs no Hemisfério Norte e também em celebrações indígenas do Brasil antes de Cabral

Reportagens Especiais
OVA UFPE
7 min readJun 26, 2024

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Por Adriane Delgado

“A fogueira está queimando em homenagem a São João/ o forró já começou, vamos, gente, arrastá pé nesse salão”. Esse trecho faz parte da música São João na roça, do cantor e compositor Luiz Gonzaga, o Rei do Baião. Ela é uma entre dezenas de canções de forró, baião, xaxado, coco e outros ritmos que fazem menção à fogueira junina, um símbolo que faz parte da paisagem das festas do mês de junho e das histórias e tradições de muitas pessoas. Conhecida no Brasil por ser acesa para homenagear São João, São Pedro e Santo Antônio (e tem diferenças entre elas, você vai ver), a tradição possui diversas raízes, que vão das nórdicas e europeias àquelas que mostram os usos das fogueiras por diversas etnias indígenas brasileiras.

Dar luz à escuridão

Desde o surgimento da humanidade, ainda no período neolítico, as fogueiras já eram acesas para iluminar a escuridão, para aquecer as pessoas e protegê-las de ataques de animais. Mas, com o passar do tempo, o fogo deixou de ser um instrumento meramente funcional e começou a ser usado para celebrar.

Prática de acender fogueiras perdura desde o início da humanidade / Ilustração: Adriane Delgado

Na antiguidade, as fogueiras eram feitas para marcar os solstícios de verão (quando um dos hemisférios está mais voltado para o sol) na Europa. No norte do continente, devido a inclinação da Terra, a região passa por mais de seis meses vivendo sob pouca luz, à espera do calor. Para comemorar a chegada desse momento, acendiam-se fogueiras em homenagem ao sol, um ritual pagão muito espraiado pelo continente europeu. O momento era marcado por danças, músicas e rituais, como o de pular a fogueira para garantir saúde e força no trabalho do campo durante o verão, além de espantar os maus-espíritos. Ainda havia a crença de que, se dois jovens pulassem a fogueira juntos, a união estava garantida. Esse é um hábito que se manteve em diversas regiões ao longo dos séculos (em junho, as fogueiras também são acesas em países como Espanha e Portugal).

Do paganismo à religião

Por volta do século 3, durante a expansão da Igreja Católica pelo continente europeu, as práticas pagãs foram proibidas e a festa do solstício foi reprimida. Porém, a resistência dessa celebração foi tão forte que a Igreja preferiu associar a tradição a significados cristãos (algo que povos africanos irão fazer, no Brasil, quando suas crenças são reprimidas, no período da escravidão). Foi o famoso “se não pode com eles, junte-se a eles”, como disse o historiador e pesquisador caruaruense Walmiré Dimeron.

Assim, com o sufocamento de uma cultura popular, começou a ser contada uma nova história para a fogueira, agora através de uma gramática cristã. Diz a tradição católica que Izabel, mãe de João Batista, primo de Jesus, usou do artifício para avisar a Maria que João havia nascido. A partir desse acontecimento, a Igreja Católica passa a usar a narrativa como justificativa para acender as fogueiras, se apropriando do símbolo. Como João Batista é conhecido na religião católica como “a voz que grita no deserto’’ e é testemunha da Luz, que no caso é Jesus, a fogueira é acesa como o sinal da luz que ele pregava.

Fogueira de São João na cidade de Caruaru (PE) — Foto: Leandro Machado

Em relação aos três santos juninos, pouco se sabe que há motivações e mesmo fogueiras diferentes entre eles. O santo mais conhecido e celebrado do mês de junho é, já sabemos, São João. A fogueira acesa no dia 23 do mês para celebrar o seu nascimento é outra estratégia da Igreja Católica: mesmo não sabendo o dia exato do acontecimento, a instituição decidiu ocupar o mesmo dia em que as celebrações pagãs do solstício do Hemisfério Norte do planeta eram realizadas.

Mas se o fogo no dia 23 celebra o nascimento de São João, as outras fogueiras do mês de junho marcam a morte de Santo Antônio e São Pedro, nos dias 13 de junho e 29 de junho, respectivamente. Para cada um deles, existe um formato diferente para montar a fogueira: no dia de São João, o formato é arredondado na base, formando uma pirâmide; no dia de Santo Antônio, o formato é quadrangular; na fogueira de São Pedro, o formato é triangular.

Com a popularização do catolicismo, o que antes servia para homenagear deuses e deusas da natureza, a renovação dos ciclos e a fertilidade, por exemplo, passou a homenagear santos católicos, incorporando assim as fogueiras nas festas religiosas (com espaço cada vez maior e simultâneo para celebrações profanas). Essa mescla, ao longo dos séculos, foi ganhando diferentes tons e práticas: as fogueiras nordestinas, por exemplo, não são iguais às fogueiras feitas em Valência e Alicante, na Espanha, por exemplo (lá, costuma-se construir fogueiras nas praias). Cada população vai adequando suas práticas conforme suas premissas, disputas e cotidiano. É como o antropólogo britânico Daniel Miller, em seu livro Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material, relata: as pessoas “criam novas práticas culturais com base nos artefatos que possuem e na maneira como usam”.

Nordeste junino

No Brasil, além das celebrações indígenas, as fogueiras também chegaram com práticas trazidas pelos portugueses. Antes, estavam conectadas às “festas joaninas”, para homenagear São João Batista. Logo que começaram a se popularizar no país, principalmente no Nordeste, passaram a ser chamadas de “festas juninas”, em referência ao mês de junho. Segundo o historiador Walmiré Dimeron, a força das celebrações aqui se deve ao fato de, segundo ele, estarmos em “uma região onde a fé é mais presente, e por consequência, também a prática religiosa, predominantemente católica”, afirma. Ele ainda diz que “é importante lembrar que junho é mês de colheita, de fartura, ocasião perfeita para o nordestino celebrar festivamente. Novamente vemos aí presente o conjunto de crenças e ritos com elementos pagãos e cristãos”.

Fogo negro e indígena

Entre comunidades indígenas, a prática de acender fogueira também é comum. O historiador Walmiré Dimeron nos diz que há registros de uso do fogo pelos povos originários brasileiros muito antes da chegada do colonizador. Ele afirma que seu uso era funcional, no preparo de alimentos, e, também ritualísticos, “principalmente em cerimônias fúnebres”.

Grande parte dos povos indígenas do Cerrado brasileiro, como as etnias Xavante, Krahô, Kayapó, Xerente e Karajá, utilizam o fogo para limpar caminhos e os arredores das habitações, abrir áreas de cultivo e também para praticar a cultura itinerante (ou de corte e queima). Além disso, ele ainda é utilizado para se proteger de animais selvagens, auxiliar nas caçadas e processos de plantação e cultivo de algumas plantas e coletar mel. As cinzas que restam da fogueira servem para fertilizar o solo. Depois, a área utilizada é abandonada durante um tempo para que o solo se recupere. “Os povos indígenas e comunidades tradicionais manejam a vegetação nativa conforme suas necessidades”, diz a Dra Vânia Pivello, do Departamento de Ecologia da Universidade de São Paulo, em texto publicado no blog do Museu do Fogo. “Seja qual for a razão, os povos indígenas usam o fogo de maneira cuidadosa e precisa. Os objetivos da queima, o local e o comportamento do fogo são bem definidos”, diz.

Trazemos mais um exemplo do uso da fogueira entre os indígenas: ele vem a partir de um relato da jornalista Raquel Cintra Pryzant em suas andanças por Goiás. Ali, ela se deparou com Xumayá Xya, uma mulher da etnia Fulni-ô, grupo indígena localizado em Águas Belas, Pernambuco. Foi ela que apresentou para a jornalista um novo significado para a fogueira: “são os homens, as mulheres, as crianças e os anciões”. Ela continuou: “A madeira são os homens, que dão estrutura à aldeia. As mulheres são o fogo, que se unem a elas. Já as cinzas são anciões, que não precisam fazer nada, mas tem a função vital de manter a chama acesa. Ah, e essa fumaça, que incomoda seus olhos…é ela que leva todos os pensamentos dos que fazem parte dessa roda para o grande espírito”. O texto completo da conversa de Pryzant com Xummayá está publicado no portal Sola no mundo.

Nas religiões de matriz africana, a fogueira também tem tradição de cultos. No Candomblé, ela é feita para homenagear Xangô, o orixá do fogo. A celebração também acontece nos dias de homenagear São João, santo católico que tem espaço também em religiões como a Umbanda, na qual o sincretismo tem enorme espaço. Esse tema foi abordado em artigos clássicos como Bandeira de Alairá: a festa de Xangô-São João e os problemas do sincretismo afro-brasileiro, de Roberto Mota (na revista Ciência e Trópico, de 1975). Em Caruaru, durante a programação oficial das festas juninas, celebra-se o orixá há oito anos: o xirê para os orixás vai acontecer na sexta (28), no Polo Azulão. Também haverá, na festa, apresentações dos artistas Chris Mendes, Colibri Brasil e do Grupo Olodum.

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projeto de extensão do Observatório da Vida Agreste (OVA), Curso de Comunicação Social da UFPE/Centro Acadêmico do Agreste (CAA)