Para aqueles que estão fugindo #8: A eterna novidade do mundo

Livro de aventura e busca por autoconhecimento inspirado em acontecimentos reais

Murilo Papantonio
Revista Passaporte
7 min readAug 22, 2019

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Os dias na Chapada dos Veadeiros transcorrem entre longas caminhadas, nuvens de borboletas amarelas e céus estrelados. Num começo de tarde, cruzamos com o Vidroh passando de carro e ele nos oferece carona para uma cachoeira de entrada grátis conhecida só pelos locais.

O carro balança com a estrada de terra quando freia bruscamente — por instantes, ficamos sem entender o que aconteceu. Abaixa o vidro manual com rapidez, olha por longos instantes na direção de uma vereda cheia de buritis, e depois para nós. Sua expressão é de absoluto assombro, como um astronauta observando o cosmos da janela de uma espaçonave na sua primeira viagem espacial — ele conhece esse tipo de paisagem há décadas, mas é como se estivesse vendo um lugar assim pela primeira vez.

Isso me faz lembrar do poeta Alberto Caeiro e do seu pasmo com eterna novidade do mundo — tenho então a certeza de que o papo da outra noite não foi da boca para fora, mero xaveco para nos impressionar. Ele realmente sabe ver as coisas como apenas os loucos, os sábios, os apaixonados, as crianças: além dos velhos pensamentos e cinismos covardes que dizem que o mundo é algo monótono, previsível, já conhecido, mensurado e explicado em sua totalidade pelas nossas pretensas ciências.

Estaciona o carro num lugar no meio do cerrado e nos lembra de trancar as portas: “Até no Paraíso tem desemprego, falta educação, oportunidade.” As águas geladas e transparentes do riozinho serpenteiam pela vasta paisagem, árida porém riquíssima em vida colorida — três araras-canindé cortam o céu azul sem nuvens.

Após o mergulho, sentamos numa rocha e uma pergunta qualquer desencadeia mais um dos monólogos do Vidroh, vívido, profundo e inspirado como o da outra noite. Uma brisa misteriosa parece soprar sobre o mundo — a aura cristalina do solo, das águas e céus da Chapada dos Veadeiros como que nos empurra, delicada porém decididamente, por um caminho sem volta.

À noite o astrólogo nos leva ao aeroporto abandonado da cidade para explorarmos o céu com seu telescópio. O firmamento está profundamente negro e absurdamente cheio de estrelas — elas cintilam como se fossem seres vivos, respirando luminosamente. A empolgação do Vidroh, todavia, chega à beira do exagero de tão intensa, de tanto êxtase.

Ele fala sem parar durante horas sobre o movimento dos astros, a imensidão das galáxias, a distância das estrelas, enquanto observamos as Plêiades, o cinturão de Órion, a solitária e antiga Sirius, as crateras da Lua. Conseguimos até mesmo distinguir, com o pequeno telescópio, Saturno rodeado pelo seu luminoso anel.

Deixamos Alto Paraíso numa manhã ensolarada, de carona com um casal, que viaja de carro. São simpáticos e educados conosco, mas verdadeiros monstros com o filho, de uns três anos. Distribuem ameaças, tapas, beliscões e repreensões pelos motivos mais supérfluos — a ignorância sendo transmitida de geração em geração.

Ficamos em Campos Belos. Atravessamos a cidade andando a pé por ruas empoeiradas, entre casas antigas, carnes expostas nas calçadas rodeadas por nuvens de mosquitos. O comércio é lento, mas vivo — são os traços de um lugar aparentemente estacionado no passado. Tentamos carona por horas e estamos prestes a desistir, no fim da tarde, quando um caminhoneiro com uma carga descoberta de telhas encosta e grita, animado, para subirmos na traseira.

Não podemos conter os risos e sorrisos, agarrados firmemente às telhas, essa sorte, o vento refrescante no rosto, a liberdade! Por aqui vegetação começa a tomar forma de matagal, as árvores mais altas e mais cheias de folhas, em comparação ao cerrado em forma de savana que rodeia Alto Paraíso. Do alto do caminhão enxergamos o verde escuro até o horizonte — ao seu encontro vem o pôr do sol lilás e alaranjado, um pouco melancólico como todos os pores do sol.

Cruzamos a fronteira entre Goiás e Tocantins em cima das telhas e chegamos já de noite em Arraias, uma cidadezinha no sul tocantinense, local de algumas fortificações em ruínas e quilombos. Encontramos uma pousadinha simples e saímos para dar uma volta — uma cerveja aqui, uns xavecos sem sucesso ali e um lanche em frente à igrejinha central.

Já deitados na cama, prestes a dormir, percebemos, curiosos, um som repetitivo, exótico, hipnótico, trazendo uma sensação familiar e ao mesmo tempo alienígena: provavelmente sapos ou insetos, mensageiros anunciando a proximidade da grande floresta, a Amazônia.

No café da manhã, como de costume, comemos como se fosse a última refeição do dia. Mesmo assim o Dênis esconde alguns lanches no bolso, para quando der fome na estrada. Vamos de carona numa caminhonete conduzida por um homem de uns cinquenta anos, por centenas de quilômetros em linha reta.

A paisagem é preenchida por uma vegetação densa, com árvores um pouco secas. Ocasionalmente, aparece um pequeno rebanho de gado raquítico ou um acampamento sem-terra em condições miseráveis. Penso na possibilidade de viajar tudo isso de bicicleta, indo mais lentamente, sentindo os cheiros, conversando com as pessoas, mais próximo da realidade delas.

Chegamos em Palmas no final da tarde, com muita fome e calor, e logo descobrimos, maravilhados, uma porção de guaraná da Amazônia batido com castanhas, paçoca, chocolate e outras vitaminas, uma verdadeira injeção de energia. Alojados num hotelzinho e bem alimentados, bolamos um baseado, sobra de Alto Paraíso, e vamos dar uma volta.

Encontramos uma imensa praça, numa região alta, com vista para parte da cidade. O sol já se escondeu, mas seus raios ainda iluminam o amplo horizonte — uma brisa suave começa a soprar. Acendemos o beque e uma grande mancha se forma no céu: centenas de pássaros, provavelmente maritacas, fazem acrobacias em alta velocidade, dançando na imensidão tingida pelo pôr do sol.

Seguindo caminhada, sentimos um bafo quente e observamos uma nuvem de vapor pairando sobre as luzes de barraquinhas distantes — cheira a álcool, fritura e uma miríade de temperos. Quando chegamos à enorme feira, descobrimos que é dividida em duas partes: de um lado artesanatos e artigos de utilidade, do outro frutas e alimentos preparados na hora. No meio, mesas e cadeiras de metal com pessoas comendo, bebendo, rindo e conversando. A voz do Zé Ramalho sai de grandes alto-falantes.

É, talvez, uma versão modificada das grandes feiras do Nordeste, de que tanto ouvimos falar. A própria Palmas, a capital mais nova do Brasil, é uma interessante mistura de pessoas de todos os cantos do país. Provamos pela primeira vez deliciosos bolinhos de guariroba e compramos paçocas para sobremesa. Mas o que o vendedor nos entrega não tem nada a ver com o doce de amendoim que conhecemos por esse nome: é uma mistura de carne seca e farofa. Apesar de vegetarianos, comemos assim mesmo para não desperdiçar.

De Palmas seguimos com um funcionário dos Correios, de carro, até Paraíso do Tocantins, de volta à Transbrasiliana. Ficamos num típico posto de caminhoneiros. Em postos assim os banheiros têm chuveiros, a comida é mais barata e existe um sutil clima de fraternidade: os motoristas, geralmente de chinelo, barba por fazer e barriga saliente, dividem marmitas, tomam cerveja ou chimarrão e jogam papo fora. Para nós é garantia de banho, comida mais barata e o “teto” de um caminhão para passar a noite.

Tentamos carona o dia inteiro, sob o sol forte, sem resultados. Quanto mais ao norte do Brasil, mais ouvimos histórias de roubos de caminhões — por esse motivo, é mais difícil conseguir carona levantando o dedo na beira da estrada. Por isso, mudamos de estratégia e passamos a pedir carona individualmente a cada motorista, enquanto abastecem. Fazemos um breve relato do nosso projeto e indicamos nosso próximo destino.

Só de noite conseguimos carona, em dois caminhões separados. Patrão e funcionário estão retornando às profundezas da Amazônia, a uma das últimas cidades da nunca pavimentada rodovia Transamazônica. Vêm de Anápolis, em Goiás, onde compraram produtos alimentícios para serem vendidos no comércio do patrão. Viajo com ele, que dirige um grande caminhão com esses itens armazenados num compartimento refrigerado. O Dênis vai um pouco atrás, de carona com o funcionário num caminhão menor, que leva uma caminhonete na carroceria.

A jornada dos dois, repetida mensalmente, dura cerca de sete dias de ida e sete de volta. Dois dias no asfalto e cinco na lama, pela lendária e temida Transamazônica, onde são comuns atolamentos e bandidos armados. Apesar desses esforços e transtornos monumentais, repetidos periodicamente, o dono do mercado diz preferir que a Transamazônica não seja asfaltada. Os grandes fazendeiros de soja são os senhores absolutos da região, o governador do Mato Grosso um dos maiores produtores mundiais. Quem quer que enfrente esses interesses só têm um destino: a cova. Então, se a Transamazônica fosse asfaltada, o destino da floresta ao redor seria certo, ela se tornaria uma enorme monocultura de soja.

Ao amanhecer estacionam os caminhões em Darcinópolis, quase na divisa entre Tocantins e Maranhão, de onde devem virar à esquerda para a Transamazônica. Dizem que podemos seguir com eles, se quisermos trocar a Transbrasiliana pela Transamazônica. A tentação de mudar totalmente de rota e embarcar numa aventura ainda maior é grande — vacilamos por alguns instantes, mas acabamos decidindo manter a rota inicial e seguir para Belém.

Acesse o próximo capítulo aqui ou o capítulo #1 aqui.

*Acompanhe outros textos do autor na revista indō.

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Murilo Papantonio
Revista Passaporte

Monge que fugiu do monastério, escritor desconhecido, cofundador do institutodo.com