Floralis Generica entreaberta (Arquivo Pessoal, 2017, Buenos Aires).

Buenos Aires e o tango do platonismo

Igor Mariano
Revista Passaporte
Published in
8 min readFeb 24, 2018

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Texto escrito ao som de Mano a Mano, uma composição original de Carlos Gardel.

A gente se conheceu em um grupo do Facebook porque calhou de você precisar de dicas sobre Buenos Aires na mesma época que eu. Roubei os conselhos que te davam e aproveitei as respostas pra fazer mais perguntas. Você me chamou para uma conversa privada e nas primeiras palavras trocadas descobri que você ia pra capital argentina na mesma época que eu.

Pra constar, foi você quem sugeriu que a gente ficasse no mesmo hostel e foi você que puxou a maioria das conversas nos dois meses seguintes. De primeiro eu achei que você tinha se interessado por mim, mas então você começou a falar sobre a sua namorada e eu só conseguia pensar qual seria a sua reação quando soubesse que eu era gay, se é que você não sabia ainda. Nosso assunto orbitava entre Buenos Aires, viagens, trabalho e sua namorada. Buenos Aires, viagens, trabalho, namorada. E depois tudo de novo.

Eu embarquei sozinho para fazer aquilo que eu mais gostava. Peito explodindo de empolgação, como sempre, pois a empolgação de partir nunca diminui. Eu jamais admitiria que, entre a Calle Florida e o Obelisco, eu também ansiava por te conhecer. Assim como os outros pontos turísticos, eu só tinha te visto por fotos e palavras, então uma parte de mim mal podia esperar pra te ver pessoalmente. Confirmar a sua existência.

Nesse ponto eu ainda tinha todo o meu lado racional firmando os meus pés no chão, mesmo que estivesse em pleno ar, dentro do avião. Eu sabia que você estava indo sozinho porque sua namorada não tinha conseguido férias no trabalho e você amava viajar. Eu sabia que você só queria uma companhia e eu era apenas um amigo virtual que poderia te acompanhar. Eu tinha consciência de tudo isso.

Felizmente eu cheguei um dia antes de você, então pude criar memórias argentinas que não te envolvessem. Mas você chegou. Bastou o sol se pôr uma vez para na manhã seguinte te trazer com ele.

Eu lembro de receber sua mensagem no WhatsApp enquanto tomava café na varanda em frente ao hostel. Lembro de você chegando pelo corretor estreito de jeans e camisa de botão, carregando sua mala pelas alças. Você era tão parecido com as imagens que até o seu cabelo castanho escuro estava na mesma posição que na sua foto de perfil. Você olhou primeiro para a recepção e então virou a cabeça até me ver sentado no sofá — só de short e regata, porque estava um calor infernal. Seus olhos se fecharam levemente à medida em que seu sorriso se abriu. Merda. Eu não estava preparado para o sorriso.

O fato de eu lembrar de todos esses detalhes é o que dá cabo de mim. Essa é a prova de que meu lado racional era apenas uma ilusão. Quem não se importa não se lembra. A gente não controla nossas expectativas.

Sua chegada foi apenas o primeiro acorde do tango que dançamos por 6 dias.

Primeiro ato.

O inesperado jeito carinhoso com que você me tratou logo de cara, como se nos conhecêssemos a uma vida inteira, enquanto passeávamos juntos pela cidade com destino à Casa Rosada.

Segundo ato.

Acordar na parte de cima da beliche e perceber que você já tinha ido embora sem mim. Passei um dia inteiro me convencendo de que você não me devia nada e aquela sempre foi uma viagem solo afinal.

Terceiro ato.

O convite daquelas duas europeias do hostel, vindas de uma cidade pequena cujo nome eu nunca tinha ouvido falar e nem consegui decorar. Mas decorei o calor da sua perna encostada na minha dentro do ônibus por todo o percurso. E decorei o calor da sua mão pegando no meu ombro durante a foto que tiramos em frente ao Caminito. Decorei também o cheiro do seu perfume, que me cercava por todos os lados, porque você não saía de perto de mim — o que deve ter frustado as duas estrangeiras, mas teria satisfeito a sua namorada. Decorei tudo isso porque, tentando entender se eu tinha interpretado tudo errado, rebobinei essas cenas infinitas vezes na minha cabeça depois.

Quarto ato.

Você me chamou para aquele bar descolado em Puerto Madero e fomos, seis homens de nacionalidades diversas, beber na noite argentina. As cervejas custavam os olhos da cara, mas meus olhos não saíam de você. E os seus pareciam ter se tornado imunes a mim, ou fiquei invisível e não percebi, porque você passou mais ou menos seis horas sem me enxergar ou trocar qualquer palavra comigo. Conversei a noite toda com os dois colombianos que trabalhavam no mesmo ramo que eu, mas ao invés da voz deles eu só conseguia ouvir a sua e por isso eu perguntei “¿Qué?” vezes demais.

Finalmente fomos enxotados de lá porque o bar ia fechar e eu dei graças a Deus por alguém me dar um motivo para ir embora, já que meu amor próprio não era capaz de inventar uma desculpa para acabar com aquela tortura.

Quinto ato.

Eu acordei e, entre os males da ressaca, decidi que aquela situação precisava terminar. Peguei minhas coisas e resolvi ir pedalar sozinho pela cidade, porque isso me acalma. De companhia, só a bicicleta alugada e os pensamentos meus, juntos conhecendo Palermo, o Jardim Botânico e o Rosedal. Cheguei no parque da Floralis Generica sem planejar. Ela é uma escultura em formato de flor que se abre de dia e se fecha à noite, mas que curiosamente estava entreaberta às 3 da tarde. Encarei isso como um sinal. Precisava aceitar que o interesse só era mútuo na minha imaginação.

Enquanto eu pedalava, me sentia um pouco mais livre, um tanto menos ridículo, pois me afastar de você me fazia perceber que eu já conhecia toda aquela situação e não poderia permitir que ela continuasse. Eu já não tinha mais idade pra me deixar cair nesse joguinho de esperança e desesperança, que além de tudo, é um enredo fraco e batido.

Mas bastou pisar na recepção do hostel para seu nome piscar na tela do meu celular, que só se conectava no Wi-Fi.

“Vc anima tango hj de noite?”

E eu quis dizer não. Juro que quis. Segurei a resposta dentro de mim por várias horas, enquanto atualizava minhas redes sociais com as fotos do meu passeio do dia e fazia toda a força que podia para não responder sua mensagem. Mesmo me sentindo um adolescente pego pelo platonismo (todo mundo conhece bem esse tipo), eu queria acreditar que ser adulto me garantia pelo menos um pouco mais de autocontrole. Mas você chegou no quarto e sem nem tomar fôlego perguntou se eu ia. Eu não tive tempo pra pensar e só por isso eu disse sim.

Sexto ato.

Eu não contava com mais três pessoas na nossa mesa, incluindo as duas europeias sabe-se-lá-de-onde, mas também o que eu esperava? Não fazia sentido pensar que seria diferente.

Sétimo ato.

Ainda meio tonto depois de tantas rasgadas entre o violino e o acordeão, minha vista foi ofuscada pelas luzes do restaurante que acenderam ao fim do show. Ainda estava um pouco emocionado com o espetáculo e por isso mal acreditei quando na saída você dispensou nossos acompanhantes e me guiou para o lado oposto, com o pretexto de esticar a noite em um bar. Caminhamos um pouco buscando onde beber, mas provavelmente estávamos na região errada e preferimos pegar um táxi para San Telmo. Foi você que sugeriu.

Bastou uma cerveja para você se mostrar completamente bêbado. Assim, de imediato. Se na noite anterior eu não tivesse te visto beber dez vezes mais sem se abalar, talvez eu tivesse acreditado no seu teatro. Mas para dançar tango cada um tem que fazer o seu papel e eu desempenhei o meu. Te deixei guiar e segui o ritmo da conversa, cerveja após cerveja, até você considerar que já era hora do seu álcool te fazer me contar, a título de curiosidade, que quando o tango foi criado no século XIX ele era dançado por dois homens e que por isso que os dançarinos nunca se encaravam.

Foi como se a música acelerasse de uma vez só. Se existisse, toda a orquestra teria presenciado nossa dança. Cada vez mais rápido. Eu te perguntando se você dançaria tango com um homem. Você falando que sim, mas brincando que sua namorada teria ciúmes e me devolvendo a pergunta. Mais rápido. Minha confissão sobre ser gay — e aí foi sua vez de desempenhar o seu papel e dizer que você nem desconfiava porque eu nem parecia. Mais rápido. A conta. Mais rápido. Estávamos na rua, naquela noite quente de janeiro, eu com frio nas mãos, tentando imaginar como você se sentia. E mais rápido ainda, quando meu coração já não conseguia mais acompanhar o ritmo dos acontecimentos, estávamos na porta de um telo, um motel.

Você entrou no quarto e deitou no chão ao invés da cama, porque a louça estava fria e você disse que estava muito quente. Subitamente parecia que você não sabia o que estávamos fazendo ali, então eu deitei ao seu lado e ficamos conversando, ombro a ombro, estendidos sobre o ladrilho preto e branco, sem coragem de se encarar, igual os dançarinos do século XIX.

Só que àquela altura eu já não tinha dúvidas dos sinais. O local entregava todas as intenções. Eu percebi que era minha vez de guiar, então me debrucei sobre você e te dei um beijo, que se demorou até eu ter vontade de abrir sua camisa de botão e descer pelo seu tórax e barriga, em direção ao óbvio.

Ato final.

Meu orgasmo ainda nem tinha terminado quando você colocou as mãos na cabeça e me encarou como se tivesse presenciado um grande absurdo. Eu não entendi nada e perguntei o que houve.

Aquilo jamais podia ter acontecido. Ninguém podia saber. Sua namorada não podia descobrir. Era tudo um grande mal entendido. Você não gostava de homens. Você estava bêbado. A culpa era toda da bebida. Aliás, não!, era minha. Eu tinha me aproveitado da situação. Eu não podia ter feito aquilo. Era errado. Era imoral. Era pecado.

A música parou.

Eu quebrei o silêncio apenas para te garantir que ninguém nunca saberia, que tinha sido um erro e que eu também estava bêbado. Acendi as luzes, vestimos as roupas sem falar mais nada e fomos para o hostel em ubers separados. No dia seguinte, quando acordei, você já tinha saído para fazer turismo em Tigre.

Eu aproveitei para digerir a noite anterior e arrumar as malas. Meu voo era só no fim da tarde e você sabia, por isso eu tinha certeza de que você não ia voltar antes disso. Peguei minhas coisas e fui tomar um café do outro lado da rua, respirando um pouco mais do ar quente e sexual de Buenos Aires antes de partir. Aquele roteiro fraco e batido não tinha nada de surpreendente no clímax, mas ainda assim eu tinha me surpreendido. Na parede da cafeteria, uma citação de Enrique Discépolo especialmente para mim:

“O tango é um pensamento triste que se pode dançar”.

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Igor Mariano
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Brasileiro, gestor de marketing, apaixonado por viagens, café, cerveja, livros e tudo que nos distrai • www.instagram.com/igor_mariano