Para aqueles que estão fugindo #5: Dois forasteiros na fronteira sul

Livro de aventura e busca por autoconhecimento inspirado em acontecimentos reais

Murilo Papantonio
Revista Passaporte
8 min readJul 27, 2019

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Mais de dez mil quilômetros de estrada pela frente e a grande dúvida: conseguiremos a primeira carona? O arauto do novo mundo não demora a chegar num caminhão velho, caindo aos pedaços, que ele encosta com enorme barulho de freios e ranger de engrenagens no acostamento a poucos metros da gente.

Inclina o corpo todo para abrir a porta ao nosso lado e podemos então contemplar seu rosto: tem uma aparência de índio, com pele morena e os olhos um pouco puxados, o cabelo preto e liso divido ao meio, todos os dentes brancos à mostra num largo sorriso. Com seu gesto de mão para subirmos no caminhão as dúvidas e angústias dos últimos meses se dissipam num segundo. No fim, não foi preciso esperar nem dez minutos pela primeira carona.

“Tiveram sorte, por aqui é proibido caminhão parar no acostamento,” diz com uma gargalhada. Reparo com satisfação que tem um olhar puro, quase infantil. No nosso pedaço de papelão — que ele afirma não ter lido — está escrito PORTO ALEGRE, mas diz que pode nos levar mais longe, até Pelotas, a cerca de setecentos quilomêtros de Florianópolis. Está finalmente voltando para casa depois de semanas na estrada.

Radiante pela perspectiva de reencontrar a jovem esposa e o filhinho, se compara a um cavalo esfomeado avistando as luzes da fazenda após uma longa e exaustiva jornada. Mostra, todo orgulhoso, o singelo presente que leva para a mulher: um enfeite de plástico em formato de coração, desses meio bregas de posto de gasolina. O interior do objeto é preenchido por um pó brilhante flutuando num líquido pastoso e transparente, com um “Eu Te Amo” escrito no meio.

Apesar da sua ânsia para chegar logo o caminhão é lento, não passa de setenta por hora, e só entramos em Pelotas depois de mais de quinze horas de viagem, sem paradas para comer e uma tempestade que causou goteiras pelo teto enferrujado da cabine.

Observamos comovidos ele abrir o portãozinho de uma edícula num bairro periférico e correr para abraçar e beijar a esposa e o bebê nos seus braços. Depois diz que podemos dormir no caminhão, até deixaria a chave conosco. Não aceitamos o convite com um pouco de vergonha, agradecendo efusivamente — estamos eufóricos para ver a cara cidade e comer algo. Já passam das dez.

Nos arrependemos um pouco dessa decisão enquanto caminhamos pelas ruas mal iluminadas do centro. Talvez sejam alucinações causadas pela fome, mas a cada esquina aparentemente cruzamos com as mesmas pessoas da esquina anterior. As enlameadas ruas de paralelepípedo parecem ecoar os cascos de cavalos, vultos de pessoas de séculos passados. Olhamos um ao outro com olhos arregalados e o Dênis comenta algo sobre a possibilidade de ficarmos presos nessa realidade mal assombrada para todo o sempre, como na música Hotel California.

Na primeira tentativa de encontrar um hotelzinho barato tenho um sobressalto ao perceber que um gato preto nos observa de uma poltrona velha de veludo vermelho, num quarto além da recepção, que está vazia. A televisão do quarto está ligada, sem espectador, e o recepcionista, que surge subitamente na nossa frente, acrescenta outro toque sinistro à cena: é um velho mal humorado de olhar meio macabro, a pele um pouco esverdeada como o bolor no papel de parede da escada em espiral logo atrás. Perguntamos o preço somente para despistar e partimos o mais rápido possível.

Finalmente encontramos um hotelzinho de arquitetura colonial por vinte reais, o café da manhã incluso, e encerramos o dia sentados num banco de praça em frente ao hotel, rodeados de flores lilás recém-caídas de uma árvore estrondosa. É o palco de uma gostosa conversa entre amigos, sobre as mulheres que amamos, a amizade, a poesia e a beleza da vida.

Acordamos fazendo piadas e comemos o máximo que conseguimos no café da manhã — a experiência do dia anterior mostrou que não são pequenas as chances de passarmos o dia sem comer nada.

Nietzsche teria dito que é um crime ler um livro nas primeiras horas da manhã, enquanto mais um dia começa em todo o seu esplendor de vida acordando, numa arrebatadora mistura de tons, cores, cheiros, pessoas, veículos, cavalos, cachorros, árvores, pássaros, insetos, todos banhados pela brisa refrescante e a gentil luminosidade matinal. O sorriso que brota em nossos rostos vem do calor que sentimos no coração ao contemplar a beleza disso tudo, na longa caminhada pelas ruas de Pelotas até o próximo ponto de carona, na estrada.

Com um gosto de liberdade na boca, sinto o transbordamento de estar vivendo um sonho: caminhando numa manhã luminosa por ruas nunca antes vistas, amplos horizontes à frente, zero compromissos e sem a menor ideia de onde amanheceremos no próximo dia, muito menos no próximo mês.

O Dênis, com os seus braços compridos, mais de um metro e oitenta de altura, olhos inteligentes, um pouco tristes, misteriosos e loucos, é um poço aparentemente inesgotável de energia. Entre os amigos da faculdade sempre foi o que mais bebeu, estudou, trabalhou, leu, usou drogas e o que menos dormiu. Boa parte da sua energia, no entanto, é exteriorizada na forma de palavras, conversas, monólogos, contação de histórias — um verdadeiro tagarela.

Nossa caminhada, então, é colorida por diálogos cheios de êxtase, em que nos esquecemos de nós mesmos e pintamos quadros no ar, com nossas palavras, descrevendo as linhas e cores de acontecimento passados, ou traçando mundos cheios de tons e possibilidades para o futuro. No fim toda a obra é levada pelo vento da estrada.

Depois de pouco mais de uma hora de espera num cruzamento um caminhão encosta à frente. Sentimos, pela primeira vez, que o projeto de cruzar o Brasil de carona é realmente viável. Dessa vez o caminhão é maior, mais novo, rápido e tem até ar-condicionado. Durante as duas ou três horas de viagem o gaúcho de barba por fazer, baixinho e gordinho, conta sobre supostas ultrapassagens cinematográficas, perseguições em alta velocidade e até surras que teria dado em policiais, além de outras proezas espetaculares. A calma paisagem dos pampas gaúcho é o pano de fundo para os seus causos.

Em Bagé vamos a um supermercado comprar o almoço e um funcionário educadamente nos informa que não podemos entrar com as mochilas, indicando um guarda-volumes. No caminho até lá somos cercados pelo gerente e outros funcionários. Curiosos, disparam perguntas. Nossa história impressiona principalmente o gerente: “Vocês é que sabem viver!”

Ele nos presenteia com dois bonés da rede de supermercados e diz que um funcionário do escritório também gosta de viajar — em seguida some atrás do moço. O jovem loiro que se apresenta pouco depois nos sugere uma visita ao centro de permacultura de Bagé, não muito distante do mercado. Pede para esperarmos um segundo e retorna com o seu telefone escrito num papelzinho, caso precisemos de um lugar para passar a noite.

A caminhada até o tal centro é feita sob o sol escaldante, algumas crianças de pé descalço brincando perto da linha do trem, numa área rural. Andamos em silêncio, mergulhados em pensamentos. A generosidade das pessoas que conhecemos nesses menos de dois dias de viagem é comovente. Lembro de um relato que li certa vez na internet de um rapaz que foi de Curitiba a Macapá de bicicleta. Ele argumentava que a grande maioria das pessoas no mundo são boas, apesar das notícias dizerem o contrário.

A frase do gerente do supermercado ecoa na minha mente. Enquanto poucos conhecidos nos deram algum encorajamento antes da viagem, talvez projetando seus próprios medos e frustrações na nossa jornada, os desconhecidos que vamos encontrado parecem fascinados pelo arquétipo do forasteiro, que aparentemente representamos, e oferecem todo o tipo de apoio. Como se trouxéssemos boas novas de terras desconhecidas, ou desbravássemos horizontes que eles não puderam, não tiveram a coragem ou a oportunidade de explorar.

Reconhecemos o sítio de permacultura pela surreal visão de casas com hortas nos telhados. Mortos de sede, pedimos água a uma mulher sorridente, que nos conduz à cozinha. Conta que a água foi coletada da chuva e que o gás do fogão veio de um depósito de matéria orgânica.

Saímos do barracão de madeira e avistamos dois homens manuseando um pequeno monte de barro embaixo de uma cobertura de palha. Não temos ideia do que fazem, mas oferecemos ajuda. Enquanto metemos a mão no barro, eles explicam que estamos preparando bolinhas com uns cinco tipos diferentes de semente. O objetivo é jogar essas bolinhas, depois de secas, em certos lugares da propriedade, para as sementes germinarem com a próxima chuva.

Aproveitamos a oportunidade para perguntar o que é, afinal, permacultura. Os dois — um agrônomo visitante e um morador do sítio — se revesam explicando que a essência é aprender com os processos da natureza e desenvolver sistemas baseados nesses ciclos, para produzir alimentos, gerar energia, reutilizar o lixo e construir de forma sustentável.

A palavra “permacultura” significa “cultura permanente” e um exemplo são as plantações ao nosso redor, que mais lembram matagais. São locais em que, ao contrário da monocultura, diferentes espécies de plantas, alimentícias ou não, dividem o espaço, o que resulta numa maior biodiversidade, em solos mais ricos e num sistema que depende menos da intervenção humana e de recursos hídricos e energéticos para se manter — ou seja, mais “permanente” e sustentável.

Em seguida, enchemos alguns sacos com bolinhas já secas e partimos para a “plantação”. Somos agora seis homens, cada um empunhando um facão. A primeira tarefa é atirar bolinhas de barro em todas as direções, num pasto aberto, sob o sol de rachar. Depois descobrimos o porquê dos facões: eles nos pedem para desmatar. Diante das nossas caras de total perplexidade vem a explicação: o antigo proprietário do sítio destruiu bastante a vegetação e nós podaremos algumas árvores para acelerar a recuperação da mata.

A jornada de trabalho acaba com um refrescante banho de riacho. No caminho de volta avistamos interessantes casas de barro, de tecnologia africana, explicam, com boa capacidade térmica e acústica. O fim da tarde se aproxima. Dizem que geralmente cobram dez reais pelo pernoite com alimentação, mas podem fazer um desconto para nós. Agradecemos, mas recusamos o convite: pretendemos chegar ainda hoje em Aceguá, na divisa com o Uruguai, ansiosos pelo verdadeiro início da Transbrasiliana.

Uma longa caminhada nos leva à saída de Bagé, onde levantamos uma plaquinha de papelão escrito ACEGUÁ. Minutos depois um casal de meia idade, de carro, encosta, e a mulher levanta seu banco para entrarmos. Eles conversam entre si, e nós, do banco traseiro, aproveitamos para descansar em silêncio e contemplar a paisagem. Perto das nove da noite o sol, como uma bola de fogo avermelhada, se afunda nos pampas dourados. O olhar inconformado que trocamos expressa mais do que poderíamos dizer em palavras: nem quarenta e oito horas de viagem e nossas vidas já mudaram pra sempre.

Acesse o próximo capítulo aqui ou o capítulo #1 aqui.

*Acompanhe outros textos do autor na revista indō.

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Murilo Papantonio
Revista Passaporte

Monge que fugiu do monastério, escritor desconhecido, cofundador do institutodo.com