Para aqueles que estão fugindo #7: O espetáculo luminoso dos céus
Livro de aventura e busca por autoconhecimento inspirado em acontecimentos reais
Uma longa caminhada matinal entre araucárias e típicas casas de madeira com fumaça saindo das chaminés nos leva mais uma vez à beira da estrada. Em pouco minutos descobrimos que é possível, sim, pegar carona no dia de Natal.
A boa alma da vez é um rapaz de uns trinta anos, testemunha de Jeová. Vendedor de livros, seu trabalho consiste em bater de porta em porta, casa em casa, e tentar convencer as pessoas de que toda casa deve ter três livros: um dicionário, uma enciclopédia e uma bíblia. Ele nos explica que o verdadeiro nome de Deus é Jeová, está na bíblia.
“Vocês acreditam em Deus?”
“É… eu acredito num Deus que está em tudo e em todos,” respondo diplomaticamente, apesar de não acreditar em Jeová.
“Ah, quando eu tinha a sua idade também pensava assim…” — interrompe.
Está indo a Concórdia, em Santa Catarina, almoçar com os pais no dia de Natal. Vira à esquerda, rumo à cidade, e nós ficamos num trevo no meio do nada. O lugar parece difícil de conseguir carona, pois a estrada não tem nenhum obstáculo, quebra-molas, semáforo ou rotatória que faça os poucos carros que passam diminuir a velocidade.
Nossa distração durante as longas horas de espera é uma competição de acertar pedras numa placa distante. O céu, a mata e até os sons da natureza lembram o Dênis da sua cidadezinha natal, no interior do Paraná, não muito longe daqui. Ele conta, cheio de nostalgia, causos da infância.
Abrimos nosso enorme mapa do Brasil, que já começa a rasgar nas dobras, e descobrimos que estamos no primeiro trevo de Concórdia, de quem vai do sul ao norte do Brasil. As maiores chances de carona em carros saindo da cidade são, portanto, a partir do segundo trevo, a nove quilômetros de distância. Decidimos caminhar até lá.
Morremos de medo dos carros que passam voando enquanto andamos no acostamento estreito num trecho da estrada que corta uma serra, ao mesmo tempo deslumbrados com a mata exuberante ao redor. Ao lado de uma plantação, um homem coloca num carro velho algumas espigas de milho provavelmente furtadas. O céu de repente escurece e algumas gotas grossas começam a cair. A chuva vai apertando quando, por sorte, alcançamos um posto de gasolina, após a longa caminhada. Assim que nos abrigamos, desaba um violento temporal.
Pedimos carona por horas, protegidos pela cobertura do posto, falando diretamente com os motoristas. Já é fim de tarde quando a chuva finalmente para e podemos voltar à beira da estrada. No acostamento eu reparo, com um pequeno arrebatamento no coração, transformado em sorriso, uma poça de água barrenta refletindo as cores do pôr do sol: por instantes a lama é a tela onde assistimos o espetáculo luminoso dos céus.
Quando começa a escurecer voltamos a conversar com os motoristas no interior do posto, quase desistindo pelo dia. Na porta da loja de conveniência abordamos um caminhoneiro jovem, de cabelo meio comprido saltando do boné para trás, que acabou de estacionar o caminhão. Desconfiado, desconversa, diz que vai ver e entra na loja. Quando sai, nos mede com o olhar de cima a baixo, pergunta para onde vamos mesmo, e finalmente faz um gesto para irmos com ele.
Está viajando com mais três caminhões — segue de perto o caminhão do seu amigo também cabeludo e eles deixam os outros dois motoristas viajarem à frente, por serem “cuzões”. Ouvimos um rock alto enquanto ele conta, quase gritando, de épocas em que cheirava pó para dirigir à noite. Agora não cheira mais, diz, mas dirige em alta velocidade e canta, aos berros, músicas do Sex Pistols, que compartilha empolgado com o amigo pelo rádio do caminhão.
Virou caminhoneiro porque não gostava estudar, mesmo tendo a oportunidade. Seu sonho mesmo é morar num barraco na beira da praia em Floripa, com a mulher. Ser pescador ou abrir um botequinho, viver uma vida simples, não precisa de nada luxuoso. Dizendo isso, pede para anotarmos nosso telefone num papel, caso um dia tente realizar seu sonho em Florianópolis.
Paramos num posto em algum lugar de Santa Catarina, no meio da madrugada. É a primeira vez que usamos nossas redes, guardadas no fundo das pequenas mochilas, para dormir embaixo de um caminhão. Durante toda a noite passamos muito frio: com a ilusão de que no verão brasileiro só faz calor, não trouxemos nenhum agasalho.
Acordamos cedo com o barulho dos escapamentos e o cheiro de fumaça. Nossos corpos gelados imploram por calor e corremos para comprar um pingado antes de partir. Ah, a alegria transbordante de mais uma manhã na estrada, o destino incerto, café com leite para esquentar o corpo e uma brisa fresca batendo na cara! Viajamos mais algumas horas com o cabeludo até União da Vitória, a primeira cidade do Paraná.
Ainda de manhã seguimos com um engenheiro amigável e conversador, porém um pouco triste por conta de um recente divórcio. Ele faz questão de nos pagar o almoço. Atravessamos a pacata cidade de Palmeira a pé e conseguimos outra carona com um homem loiro e sorridente, dirigindo um caminhão bitrem carregado de milho, até Ponta Grossa, onde pegamos um ônibus circular para atravessar a cidade e começar a pedir caronas novamente.
Já entardece quando uma mulher no banco de passageiros de um carro que passa olha na nossa direção e ri desdenhosamente, o que leva o Dênis comentar, “Sabe quando uma mulher vai dar carona pra gente? Nunca!”
A sensação é que Deus ouviu as palavras do Dênis e decidiu nos pregar uma peça: o carro seguinte, ocupado por duas gatas, encosta um pouco à frente — trocamos olhares assombrados na corrida até lá. Já dentro do carro, passado o susto inicial, tentamos, delicadamente, demonstrar certa abertura, perguntando se teria alguma festa boa na região à noite. Elas são apenas simpáticas e nos levam até uma cidadezinha não muito longe.
Ainda conseguimos outra carona, num caminhão leiteiro, no começo da noite. O volume de litros de leite transportados todos os dias pela empresa do motorista me leva a pensar na produção industrial de laticínios, que escraviza milhões de vacas e as enche de hormônios para que a caixinha chegue todos os dias no supermercado estampada com desenhos de vaquinhas felizes.
Descemos em frente à singela entrada do Parque Estadual do Guartelá, perto de Tibagi. A estrada de pista simples está vazia, uma única placa enferrujada indica a presença do parque. Depois do caminhão sumir no horizonte, permanecemos um bom tempo imóveis, em silêncio, incrédulos com a quantidade de estrelas no céu, o silêncio absoluto cortado apenas pelo cri-cri dos grilos.
Caminhamos até um sítio e batemos palma em frente a um casebre de madeira. A janela é aberta com um rangido de arrepiar quando surge, na penumbra, a silhueta de uma velha de cabelos longos e branquíssimos. Com uma voz rouca e soturna, diz para acamparmos no pasto, cuidando para não soltar os bichos.
Armamos a barraca sob a iluminação das estrelas e, já dentro dela, nos enrolamos nas redes, numa tentativa vã de espantar o frio. A lembrança da velha de aparência fantasmagórica, o silêncio profundo da noite, interrompido por barulhos estranhos e, talvez, instintos primitivos, fazem surgir um medo visceral em cada um de nós — como bons amigos, confessamos isso um ao outro. Felizmente o cansaço é intenso e o sono vem logo. De manhã acordamos com o sol esquentando a barraca, abrimos o zíper e nos deparamos com alguns dos seres que faziam barulho durante a noite: vacas e bodes pastam ao redor.
Os dias em Tibagi renovam as energias. Visitamos cachoeiras, cânions, caminhamos longamente por estradas de terra e nadamos muito. Depois seguimos pelo único trecho não asfaltado da Transbrasiliana na Kombi de um missionário católico negro, gordinho e portador de um sorriso brincalhão e benevolente.
Na cidade de Ventania subimos num caminhão bauzinho levando serragem, pois a região tem grande produção madeireira, diz o motorista. Enquanto o Dênis dorme eu observo o homem me contar, com um semblante bondoso e o olhar quase em êxtase, a história bíblica de Moisés batendo com um cajado numa rocha e fazendo leite jorrar — o que me faz refletir sobre o poder dessas histórias, que continuam a encantar as pessoas através dos milênios.
Descemos no posto fiscal da divisa com São Paulo, perto de Ourinhos. Algumas mulheres com roupas curtíssimas vendem café aos caminhoneiros — às vezes deixam a garrafa térmica de lado e entram nos caminhões.
Quando começa a escurecer decidimos caminhar pelo acostamento até um posto de gasolina, buscando abrigo para a noite. Em pouco tempo já está completamente escuro e tememos por nossas vidas enquanto sentimos o brusco deslocamento de ar causado pela passagem, em altíssima velocidade, a poucos centímetros de distância, de monstros de metal, óleo e borracha pesando toneladas.
Inesperadamente, um caminhão do tipo bauzinho encosta poucos metros à frente. O homem sentado no banco do passageiro diz que nos viu no posto fiscal e que podemos seguir com eles até um posto de gasolina, se quisermos. A oferta é estranha, mas, diante da situação, aceitamos.
Não há espaço dentro da cabine e temos que ir trancados na carroceria. Completamente fechados no baú, começamos a ficar a apreensivos: a viagem parece se alongar demais. O Dênis deixa a sua faca num lugar acessível e eu me posiciono perto de um facão, acomodado entre outros objetos. A tensão aumenta quando começamos a chacoalhar, aparentemente por estarmos passando por uma estrada de terra cheia de buracos.
Uma estrada de terra? O que estamos fazendo numa estrada de terra? Onde estão levando a gente? O chacoalhar continua e a tensão chega ao ápice. Imóveis, em silêncio, nos preparamos para o pior. O caminhão então estaciona — fitamos a porta tensos, sem piscar. Ela é aberta… à nossa frente, podemos ver as bombas do posto de gasolina.
Abordamos um motorista e pedimos permissão para pendurar nossas redes embaixo do seu caminhão, explicando brevemente o nosso projeto, e ele concorda — já aprendemos que, enquanto os caminhões nos fornecem proteção contra a chuva e segurança à noite, nossa presença é também é boa para os caminhoneiros, pois ajudamos a vigiar os seus estepes contra furtos.
Acordamos cedinho e caminhamos até a saída para Marília. A primeira carona do dia é com um motorista sessentão, gaúcho, um pouco desconfiado — diz que seu caminhão tem um botão de emergência que, se apertado, faz um helicóptero chegar em cinco minutos. Aos poucos vamos ganhando sua confiança e, mais à vontade, ele preenche o tempo com histórias da sua vida de viagens por todos os rincões do Brasil.
Quando começa a chuviscar ele encosta o caminhão bruscamente e nós três subimos na caçamba, apressados para cobrir com lona a carga de cebola. Em mais uma rota impressionante desse Brasil dos transportadores de quase todas as mercadorias que consumimos, leva cebolas do Rio Grande do Sul a São Luís do Maranhão. São três ou quatro dias de viagem só para ir, e deve retornar de lá com a madeira ilegal da Amazônia, transportada com notas frias.
Paramos num posto perto de São José do Rio Preto. Os meus avós moram numa cidadezinha próxima, onde decidimos passar a virada do ano, por isso recusamos a oferta de seguir viagem com o velho gaúcho. Ele se despede com alguns conselhos paternais e nós o observamos partir com os corações um pouco apertados. Minutos depois o meu avô chega buzinando.
No pequeno distrito, quase rural, passamos alguns dias de longas caminhadas, banhos em riachos e conversas com o meu avô — minha avó está visitando um tio em outra cidade. Na véspera do ano novo ele vai dormir às oito da noite. “É um dia como outro qualquer!” diz, um pouco rabugento.
O lugarejo, meio colônia de férias, tem um hotel, dois bares e uma pousada. A festa de ano novo no hotel é de gala, paga, e o único boteco que conhecemos está fechado, por isso caminhamos pelas ruas desertas em busca de um lugar para passar a virada. Lá pela meia noite encontramos uma pousadinha com certa movimentação e pedimos informação. Dizem que virando a esquina tem um bar.
Chegamos com a contagem regressiva na televisão: “Cinco, quatro, três…” Logo após o “um”, um homem gordo, vestido todo de branco, nos recebe com um abraço e duas taças de champanhe, enchidas na hora. Em seguida abraçamos e desejamos feliz ano novo a pessoas que nunca vimos na vida.
O bar, localizado numa rua arborizada qualquer, tem as paredes decoradas com fotos de lendas do rock e prateleiras cheias de vinis. A ceia de réveillon é uma mesa repleta de petiscos árabes, que comemos de graça, pedindo uma cerveja gelada atrás da outra. O gordão simpático é o dono do bar e nos convida para um baseado, escondido da sua mãe, uma velhinha de mais de oitenta anos que bebe cerveja numa das mesas.
No dia seguinte, seguimos viagem de carona com um caminhoneiro do interior paulista, um piadista nato que acabou de sair de três dias de churrasco com a família num sítio. A cada uma ou duas horas ele encosta num posto para “beber uma coca”. Os seus olhos vão ficando cada vez mais avermelhados, as histórias mais coloridas, e finalmente descobrimos, com um misto de riso e apreensão, que os copos de coca-cola invariavelmente contêm uma dose conhaque. Ele então passa a fazer longos e cada vez mais criativos monólogos explicando porque dirige muito melhor bêbado que sóbrio.
O oeste de Minas Gerais é o pior pedaço da Transbrasiliana até agora, por longos trechos não é possível viajar a mais de trinta por hora — a superfície da estrada parece ter mais buracos que asfalto. Após o “Trevão da Morte” entramos em Goiás, com suas extensas monoculturas e postos de gasolina desolados — por aqui os roubos de caminhão começam a ficar mais frequentes, aprendemos. Ao anoitecer paramos num posto para dormir. Outra noite de frio nas redes, embaixo do caminhão.
Partimos antes do sol nascer e descemos do caminhão em Aparecida de Goiânia, ainda de madrugada. Uma bela atendente de uma padaria nos explica como chegar ao centro de Goiânia, de ônibus circular. Acostumados com o mundo vibrante — mesmo que por vezes duro — dos caminhoneiros e trabalhadores da estrada, é um pouco chocante observar as pessoas a caminho do trabalho, no ônibus lotado: sonolentas, os rostos fechados, semblantes meio sem vida, como mortos-vivos presos num purgatório sem fim.
Frutas suculentas são vendidas nas ruas da cidade, acomodadas entre raspas de gelo, que as mantêm frescas e atraentes no dia de sol forte. Almoçamos à vontade por seis reais — a comida se revela deliciosa, os temperos e os ingredientes goianos um pouco exóticos para nós, tudo muito saboroso. O resto do dia transcorre preguiçoso e quente, até o cair da noite.
Revigorados após uma longa noite de sono, pegamos um ônibus de manhã até o melhor ponto de carona, próximo a uma favela. Fomos alertados sobre o perigo de assaltos na região, por isso caminhamos no acostamento, buscando um lugar mais afastado. Pingando de suor sob o sol implacável, subimos uma ladeira estendendo os dedões a cada carro que passa. Um deles para. Um jovem casal de Brasília, funcionários dos ministérios da Cultura e da Comunicação, nos leva à capital, no caminho para Alto Paraíso de Goiás.
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