A romantização do ser nômade
Oito meses bastaram para transformar minhas ideias do que significa ser nômade.
Nômade é a palavra usada para descrever quem faz o que eu faço.
Permita-me pintar uma imagem para quem nunca havia tropeçado em uma nômade antes: estou constantemente me movendo de um lugar a outro. Não tenho endereço fixo. Seja de ônibus ou de avião, eu compro passagens só de ida porque não tenho compromisso nenhum de voltar. Decido no caminho qual será meu próximo destino. Nada é certo, mas nada é por acaso.
Embora possa passar meses em apenas uma cidade, sei que inevitavelmente deixarei aquele lugar e partirei para o próximo quando tiver vontade (ou quando o visto expirar porque, afinal, ninguém é livre de burocracias).
Particularmente, eu não gosto de usar a palavra “nômade”. Nunca me identifiquei com ela. Na falta de uma alternativa e diante da necessidade de explicar, tenho a usado, mas com um sentido diferente.
Eu planejei “virar nômade” durante o período de oito meses, dedicando a estes planos o carinho e o amor que a maioria das pessoas dedicaria a um filho. Já tinha um trabalho 100% remoto, então não precisei me preocupar em fazer essa transição. Mas fiz todo o resto: economizei, comecei a me livrar das coisas inúteis e a pesquisar possíveis destinos. Desatei todos os nós que me prendiam ao lugar que eu chamava de casa. Deixei espaço para que tudo que pudesse vir a brotar, brotasse em seu devido tempo. Minha única pressa era em viver tudo que eu não tinha vivido antes.
Terminei esse processo com apenas uma mala e muitos adeus.
Primeiras impressões em primeira pessoa
Estou com os dois pés na estrada há oito meses. O que eu não antecipei é que ser nômade é mais difícil e trabalhoso do que viver em um lugar só. Parece uma associação fácil, não? Se locomover envolve planejamento e pesquisa, afinal, enquanto ficar num lugar só envolve conforto.
Mas eu não imaginava todo o trabalho que é estar em constante movimento. E não se engane, é um trabalho. Querendo ou não, estou sempre buscando os próximos destinos, averiguando as rotas, as passagens, pesquisando os preços dos aluguéis, cuidando o prazo do visto, procurando coisas novas para fazer, buscando os próximos destinos, averiguando passagens…
É um ciclo que nunca termina e que se traduz em horas e horas de pesquisa em cima do meu horário de trabalho normal. E não se esqueça que, além destes dois trabalhos, eu também preciso de tempo para realmente vivenciar o lugar onde estou.
Infelizmente, as pessoas geralmente não falam sobre os lados negativos da vida nômade nas redes sociais. Elas não falam sobre o impacto que nós causamos nas comunidades locais que recebem um número exagerado de nômades digitais (Bali e Medellín, só para dar dois exemplos). Não falam sobre o impacto de viajar e turistar de forma excessiva. Não falam sobre o isolamento e solidão que sentimos em terra estrangeira. E quase ninguém fala sobre a desconexão que inevitavelmente acontece com quem você deixa para trás, sobre as críticas que você recebe da família ou sobre como é difícil se conectar com outro país, outra gente, outra cultura, por mais que o desejo de fazer tudo isso esteja presente em você.
Pelo contrário, as pessoas normalmente vendem a ideia de que ser nômade é tirar férias eternas — e mais: qualquer um pode fazê-lo.
Quem vende essa perspectiva muitas vezes também está vendendo seu curso online sobre como se tornar nômade digital em 5 passos. Entendo que é contraproducente, para eles, ressaltar os aspectos negativos. Quem vende felicidade precisa estar feliz o tempo todo. Mas eu não vendo, nem compro, e como tudo na vida, a vida nômade vem com seus altos e baixos.
Expectativas x Realidade
Antes de deixar o Brasil, eu não pensava muito em como seria o nomadismo. Eu tinha expectativas, é claro. Mas não há como saber realmente como será a menos que você faça a mala e parta sem data pra voltar.
Eu tinha muito claro, porém, que ele não era uma fuga, nem uma resposta às minhas amarguras, muito menos um antídoto para a infelicidade, como muitos o vendem.
Eu escolhi ser nômade porque sentia que precisava conhecer, aprender e crescer — exatamente nessa ordem. Eu estava interessada nas transformações que essa grande transformação faria em mim. Para ser sincera, era uma escolha bastante egoísta da minha parte, que só visava meu bem próprio. Por anos, eu estava ansiando algo que me tirasse da caixinha na qual eu me prendi. O nomadismo foi a personificação da tempestade que varreu as paredes que me protegiam para fora do mapa.
Nos primeiros meses, eu não gostava da sensação de incerteza. Queria ter tudo planejado de antemão. Hoje, planejo somente o próximo mês, às vezes nem isso. Existe algo muito mágico nessa liberdade de não saber onde você estará no próximo mês, no próximo verão ou no próximo ano inverno: você se abre para todo tipo de possibilidades. Absolutamente nada fica de fora.
Para mim, ser nômade hoje é mais do que viver em movimento — é também viver em transformação. É aceitar que somos mutáveis, que seremos mutáveis a vida toda, e é preciso estar dispostos a repensar nossas escolhas, propósitos, ações e legados todos os dias.
No feed do Instagram, você vai ver sonhos realizados e praias paradisíacas. Mas, durante esse tempo, também passei pela experiência do luto, larguei a viagem e voltei para um velório.
O que quero dizer com isso é que viver constantemente na estrada não é, quase nunca, glamouroso como algumas fotos podem fazer parecer. E eu quero mostrar esse lado, mas é difícil registrar os dias que fico em casa trabalhando, cozinhando, descansando, fazendo e desfazendo as malas. Então eu escrevo sobre eles.
É verdade que eu pago um preço por ser nômade — e ainda estou entendendo todas as nuances desse lado sobre o qual pouca gente se atreve a falar em voz alta — mas ele é pequeno comparado ao que eu deixaria de viver se tivesse escolhido ficar.
Estar no mundo
Ser nômade não tem muito a ver com gostar de viajar.
Em muitos sentidos, eu sou uma péssima viajante. Eu nunca acampei e não serei a primeira a levantar a mão para esse tipo de convite. Não como qualquer coisa e só agora comecei a provar sabores diferentes. A ideia de ficar em um quarto de hostel com estranhos não me atrai nem um pouco. Dormir no sofá de alguém? Não, obrigada. À noite, eu facilmente escolho a cama em vez do bar.
Não conto os países pelos quais passei. O número realmente não me importa. Meu objetivo não é visitar 10 países em dois meses. E certamente não estou interessada nos pontos turísticos e nas fotos. Eu não risco destinos tomados pelo turismo em massa de uma lista. Para mim, isso foge à noção de liberdade que o nomadismo me propõe. Nem tenho lista. Eu conheceria o mundo todo. O que importa é que eu tenho a vontade, a possibilidade e a perspectiva. Quantas pessoas podem dizer o mesmo?
A estampa no passaporte que muitos viajantes ostentam quase sempre me intimida, porque o que eu desejo é me conectar em cada lugar que chego. E se conectar dá muito mais trabalho do que simplesmente vestir a mochila e descer do avião, sabe?
Posso dizer que, até agora, eu não atingi esse nível de conexão. Viajar constantemente só fez crescer o meu sentimento de não-pertencimento. Aquela sensação familiar na boca do estômago de que há alguma outra coisa que eu deveria estar fazendo aqui. E tudo bem. Eu não esperava que fosse fácil. Por enquanto, é suficiente que eu esteja levantando estas questões e refletindo sobre isso.
Eu costumava dizer que via o mundo de forma diferente da maioria das pessoas. Pode até ser verdade, mas a lição mais valiosa que tirei dos últimos meses, para minha surpresa, foi que não é suficiente ver. É necessário agir de forma diferente.
Do minimalismo ao vegetarianismo, ser nômade causou uma mudança no meu modo de estar no mundo. É sobre esse estar no mundo que eu pretendo me focar daqui em diante.
Ser nômade e ser casa
Mesmo depois de oito meses, ainda é estranho explicar a estranhos onde eu vivo.
Minha casa já foi feita de tijolo em cima de tijolo, de janelas de vidro e o som de uma família grande e barulhenta. Ela já foi uma casa antiga recheada de energia nova e possibilidades infinitas. Já foi feita de pisos de parquet e portas fechadas no corredor. E também foi feita de mãos que transbordavam calor e compreensão.
Hoje, eu entendo que nenhuma estrutura física e ninguém mais pode ser a minha casa, se eu mesma não for o meu lar antes.
Meu corpo é minha nova casa.
E a minha casa fala comigo o tempo todo. Ela me dá sinais se tem algo precisando de atenção ou até mesmo de conserto. É aqui que eu descanso todos os dias. É somente aqui que eu encontro todas as respostas que eu busco, não importa o quanto eu tente encontrá-las em outro lugar.
Este corpo, que é tão imperfeito nas suas perfeições, fruto da herança e predisposição genética de tanta gente que veio antes de mim. Parte mãe, parte pai, e tantos avós. Eles estão presentes aqui, nesta pele, cabelo, coração e estômago sensíveis demais.
Eu posso até ser nômade, mas eu aprendi a sempre carregar a minha casa comigo.
Sou nômade, poeta, escritora. Arqueóloga e antropóloga por formação. E também sou muito mais do que isso. Meu nome é Dayanne. Se você gostou do texto, me escreva! E leia mais: