Para aqueles que estão fugindo #4: On the Road com Jack Kerouac

Livro de aventura e busca por autoconhecimento inspirado em acontecimentos reais

Murilo Papantonio
Revista Passaporte
3 min readJul 18, 2019

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Estava decido: o natal de 2006 seria viajando de carona pela Transbrasiliana, a pouco conhecida rodovia que corta o Brasil de um extremo ao outro, do Rio Grande do Sul ao Pará. Um artigo de revista sobre a estrada e a leitura de On the Road, de Jack Kerouac, foram os gatilhos. No prefácio da versão brasileira do livro, Eduardo Bueno conta que Bob Dylan fugiu de casa depois de ter lido On the Road. A sorte estava lançada.

Estamos no terceiro semestre na universidade. A possibilidade de atravessar o Brasil de carona, pelo interior, longe das rotas turísticas, parece uma boa oportunidade de escapar um pouco do mundinho privilegiado da universidade pública e mergulhar no Brasil “verdadeiro” e profundo dos sertões, monoculturas de cana, estradas empoeiradas, pistoleiros e caminhoneiros calejados. Uma viagem assim talvez seja uma outra forma de universidade.

Quando comento com as pessoas sobre a ideia, no entanto, invariavelmente recebo de volta olhares de descrédito. Ninguém mais dá carona no Brasil hoje em dia, dizem. Se tentar, provavelmente passarei dias sem sair do lugar. Isso na melhor das hipóteses — na pior, serei assassinado.

Um ou outro amigo mais maluco se empolga com a ideia, mas ninguém se compromete a ir comigo. Com exceção do Dênis, companheiro de república e grande parceiro de loucuras, poemas, textos anarquistas, conversas filosóficas e aventuras embriagadas. Cogita me acompanhar, no caso improvável de conseguir algum dinheiro extra até as férias de verão.

É em meio a esse cenário de dúvidas e incertezas que me preparo para cair na estrada sozinho. Na verdade, estou aterrorizado. O simples pensamento de deixar as fronteiras do mundo familiar e penetrar, solitário, num universo totalmente desconhecido, potencialmente selvagem e perigoso, traz à tona uma sensação quase de pânico.

Mesmo assim, decido partir a qualquer custo. Sou movido por uma ânsia profunda de me jogar no mundo meio sem rumo, entre praças de cidadezinhas, montanhas e amplos horizontes—espécie de combustível para os sonhos desde a infância. Por outro lado, a lembrança de longas jornadas de bicicleta por estradas de terra na adolescência me faz refletir que nem sempre devemos ouvir aqueles que não acreditam ou ridicularizam nossos sonhos. Como dizia Bob Dylan, as pessoas tendem a criticar aquilo que não conseguem entender.

A data da partida se aproxima, até que numa tarde de novembro, durante um cochilo após o almoço, acordo confuso. O Dênis está praticamente chutando a porta do meu quarto. Entra berrando e se movendo de maneira assustadora, sacudindo violentamente o estupor causado pelo sono profundo — quase dou um soco na sua cara, de susto. Tem uma novidade e por isso está tão exaltado: seu chefe no estágio ofereceu o pagamento adiantado de alguns meses de salário e ele terá dinheiro para a viagem.

No dia vinte de dezembro chegamos à beira da BR-101 às sete da manhã. O primeiro passo é descer de Florianópolis, onde moramos, até a pequena Aceguá, divisa entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai e início da Transbrasiliana. A rota até lá passa por Porto Alegre, Pelotas e Bagé.

Acomodamos nossas pequenas mochilas no acostamento e o Dênis segura com as mãos uma plaquinha, feita com um pedaço de caixa de papelão de mercado, onde escrevemos com canetinha preta PORTO ALEGRE. Ao seu lado, estendo meu dedão direito. Trocamos um breve olhar meio de êxtase, meio de apreensão — como quem acaba de entrar numa grande aventura rumo a mundos inimagináveis. Estamos determinados, caso necessário, a passar dias esperando pela primeira carona.

Acesse o próximo capítulo aqui ou o capítulo #1 aqui.

*Acompanhe outros textos do autor na revista indō.

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Murilo Papantonio
Revista Passaporte

Monge que fugiu do monastério, escritor desconhecido, cofundador do institutodo.com