Tudo que eu tenho cabe em uma mala

A transição para a ‘vida na estrada’ foi libertadora, e é na bagagem que ela fica mais evidente.

Dayanne Dockhorn
Revista Passaporte
4 min readMay 14, 2019

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Já faz pouco mais de 10 meses que dei início, junto ao meu companheiro, a uma vida nômade. Isso significa que não temos casa ou endereço fixo, e que continuaremos viagem com pouco ou nenhum planejamento pelo tempo que desejamos.

Se isso parece hipster demais para o seu gosto, chame-a de vida sem teto. Eu chamo, às vezes.

Nestes 10 meses, já fizemos casa em 10 cidades na América do Sul, América Central e América do Norte entre apartamentos próprios, casa de familiares e, mais recentemente, trabalhos de house-sitting.

Por um tempo, criei e alimentei muitas dúvidas e medos sobre essa mudança (que é, querendo ou não, uma grande mudança). Eu tinha finalmente aprendido a amar a minha vida do jeito que ela era, e não queria que nada mudasse.

Por outro lado, se nada mudasse, eu seguiria sendo sempre a mesma pessoa. Só que meu objetivo era continuar crescendo e aprendendo, e não permanecer a mesma. Para isso, algo precisava acontecer. Eu precisava, sobretudo, atender desejos que eu sempre tive e mantive adormecidos.

No processo para a mudança, tivemos que deixar algumas coisas para trás. E doeu dizer adeus a algumas delas. Mas a vida é feita de começos e términos. Aceitamos que algumas coisas precisam ficar para trás para que o ato de abrir novas portas não seja uma escolha, mas uma necessidade.

Tá, mas e a mala?

Foto posada com a mala e a mochila porque toda vez que saio para uma rodoviária ou aeroporto não dá tempo de tirar foto, desculpa. Meu Instagram.

Foi preciso essa pequena introdução para explicar melhor que tudo que eu tenho de material hoje cabe em uma mala. Roupas de verão e inverno, sapatos, produtos de higiene e maquiagem. Os eletrônicos, que são minhas ferramentas de trabalho, como computador e câmera, cabem na mochila.

Não ter um lugar fixo para chamar de casa fez com que deixássemos para trás todos os supérfluos e ficássemos com pouco. Hoje, cada um de nós carrega uma mala de 23 kg e uma mochila. E só isso. E é suficiente. É mais do que suficiente, na verdade. Ainda estamos aprendendo a desapegar.

A transição para a ‘vida na estrada’ foi libertadora em muitos sentidos, mas é na bagagem que ela fica mais evidente. Perdi dezenas de quilos materiais e me tornei mais do que o que eu possuo. Hoje, me importo muito menos com a minha aparência e muito mais com como me sinto e com o que vejo ao meu redor.

E o mais importante: o meu consumo passou a ser extremamente consciente. Quando eu preciso comprar algo novo, algo velho é descartado. Não só porque não há espaço, mas porque sei que não preciso de muito e que minha relação com as coisas precisa ser consciente. Cada compra implica muito mais do que uma simples troca de dinheiro, mas isso ainda não ensinam na escola.

Embora tenha acontecido comigo, não é preciso ser nômade para pensar sobre a sua forma de consumir. Basta prestar atenção ao seu relacionamento com as coisas e com o dinheiro. A maior parte dos nossos gastos é feita para suprir carências emocionais. Afogamos sentimentos com materiais porque é mais fácil do que encarar o que sentimos.

A vida é sobre ter ou ser?

Eu não tenho guarda-roupa, quarto, casa, escritório, endereço e telefone fixo. Não tenho um montão de roupas, bolsas, sapatos caros, carro e garagem.

Aos estranhos pode parecer que eu não tenho absolutamente nada. E é difícil explicar, mas a realidade é exatamente o contrário. Eu tenho tudo!

Quanto mais eu sei, quanto mais eu conheço do mundo, menos eu preciso. Quanto mais eu me liberto do material, mais eu recebo o que o dinheiro não compra. Tenho a minha liberdade. Estou conectada comigo. Tenho mais amor — por mim, pela vida, pelos outros. Tenho ar, terra debaixo dos meus pés. Tenho o mundo todo pela frente e nas minhas mãos. Em vez de apenas estar, agora eu sou.

Tive que perder peso para chegar aqui, certamente. Não só peso material, mas também diversos pesos emocionais. Todo dia é um tremendo exercício de perseverança. Todo dia, um “o que estamos fazendo aqui?” em um cenário diferente, em um momento do dia diferente.

Mas eu tenho sorte, porque na maioria dos dias, essa pergunta é respondida por outra voz, que me lembra, pontualmente: “estamos vivendo como queremos”.

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