El Potro del Faro

O Deportivo Recoleta venceu o I Torneio de Contos de futebol — Mario Benedetti — com a história de um velho faroleiro que revive suas memórias em Cabo Polônio, no Uruguai

Puntero Izquierdo
Puntero Izquierdo
Published in
10 min readJun 11, 2020

--

Há quase dois meses fizemos o convite: "Exercitar o futebol na criatividade, na imaginação e na escrita".

Logo fomos surpreendidos pelas letras e inundados por textos que congestionaram nossos servidores (?) e caixa de emails. Era real, já não cabia dúvidas: o Torneio de Contos tinha TOMADO FÔLEGO.

Contagiados pelo entusiasmo em saber que há tanta gente praticando futebol através da escrita ficcional, nossa equipe varou noites analisando e debatendo sobre o total de 246 contos inscritos. E aqui vai o nosso mais sincero agradecimento a todos que reservaram um tempinho, se dedicaram e escreveram para o nosso Torneio.

Muitos ficaram na fase prévia, infelizmente, mas tornamos pública nossa intenção de divulgá-los eventualmente num outro momento.

Somente 40 contos foram selecionados para a fase de grupos, que começou no dia 05 de maio.

Um especial 'CHAS GRACIAS a eles, portanto:

Anna Martino
Antônio Fausto
Celio Pires Peixoto
Cláudio Arreguy
Daniel Cassol
Danilo Heitor
Dora Scobar
Elcio Cornelsen
Evandro Pereira
Fabrício Corsaletti
Flávio VM Costa
Gabriel José

Gabriel Proiete de Souza
Gil Luiz Mendes
Guilherme Machado Nunes
Guilherme Trucco
Hiury Pereira
Ignacio Arbelo Allegro
Igor Pauzoca Oliva
Iuri Müller
João Schlaepfer
Leandro Iamin
Leandro Vignoli
Marcos Abrucio

Maria Fernanda Moraes
Mateus Fernandes
Mauro Castro
Pedro Santa Helena
Rafael Fabro

Rapha Santos
Richard Roch
Rômulo Arbo
Valter Vinícius Costa
Vinícius Neves Mariano
Vitor Monteiro de Castro
Vítor Ribeiro Santos

E, por supuesto, aos nossos vencedores e premiados (apenas times peruanos e paraguaios aqui representados — muy COPADA essa nossa Libertadores de Los Cuentos):

Gabriel Rebello, com seu garboso "O velho da casaca", representando o paraguaio 3 de Febrero, ficou com o quarto lugar.

João Bourrol e o reflexivo "Gol azul", com o valente Sport Chavelines, do Peru, na terceira colocação.

Gabriel Eduardo Bortulini, com o lindo "Noções de elasticidade", foi o vice-campeão com outro time peruano: Los Caimanes.

E Leonardo Ritta, "El Potro del Faro", numa belíssima história de reencontro bateu campeão com o paraguaio Deportivo Recoleta. Aqui a final.

Todos os kits de prêmios estão detalhadamente explicaditos acá. Também aproveitamos a oportunidade para mandar aquele abraço de gol aos parceiros que fizeram possível semelhantes regalos: Editora Grande Área, Ludopédio, Editora Dolores, Revista Corner, Editora Companhia das Letras e José Trajano.

E já que de agradecimento se trata, não podemos deixar passar a oportunidade de dizer MUCHAS GRACIAS, DE VERDAD, a todos aqueles que colaboram com nossa campanha no Apoia-se (você pode apoiar com qualquer valor clicando no banner no final deste post).

Essa confiança, esse suporte é fundamental e a verdadeira força que nos lança em ações desse tipo: concursos abertos. Vamos por más!

Ah, e lembrança: todos os textos estarão para sempre no nosso acervo. São oito publicações para os grupos da primeira fase, mais duas publicações com os quadrangulares semifinais, além, claro, da grande final.

Dicho eso, pois seguimos, então, a desfrutar uma vez mais o texto vencedor do nosso I Torneio de Contos de futebol — Mario Benedetti.

(e se há I é porque, claro, haverá II…)

El Potro del Faro

Os dias em Cabo Polônio passam de um jeito diferente. Não mais devagar: apenas diferente. Mesmo hoje, quando os turistas chegam com seus barulhos, seus vícios e suas virtudes, ainda se nota a paz que sempre rondou aquela ponta de terra.

Só há uma certeza em Polônio. Os 24 segundos que a luz do farol leva para fazer uma volta. A noite, estrelada em céu aberto, é uma tela em negativo, riscada por um pincel claro. O farol ainda desempenha um papel importante no vaivém dos navios que rondam aquele canto esquecido. Faz tempo, há gente que cuida dele, para que não se apague e para que mantenha as embarcações a uma distância segura. O seu papel é bonito: mostra que é preciso estar perto dele para compreender que é preciso estar longe.

A certeza do cabo passa pela certeza de que haverá quem o cuide. Quem são os faroleiros? Por que alguém romperia a lógica média de ter uma vida normal? Talvez se imagine que seja solidão. Mas tem algo mais. O mar chama algumas pessoas sem motivo. O rugido das ondas, o estalar da água nas pedras. Algo chama. E foi esse chamado que inundou a mente de Gonzalo, o velho faroleiro.

Ele sempre foi quieto. Atlético, poderia ter sido um ator, não fosse a timidez. Desde cedo, fez o que todo guri de Montevidéu faz: jogou bola. Na adolescência, se destacou como um meio campo nato, daqueles que regiam uma orquestra. No futebol platino, era muito mais um domador tocando uma tropilha de potros do que um maestro. Nascera em 1942 e lembrava vagamente da festa do Maracanazo.

Talvez essa mística tenha influenciado Gonzalo a pender para o futebol. As suas atuações na várzea não tardaram a chamar atenção de pessoas ligadas aos clubes da capital uruguaia. Foi numa manhã de sábado, num campo barreado, que um olheiro foi falar com Gonzalo. Ele jogou 90 minutos com pilchas de gala. Eduardo, o olheiro, já era tordilho e tinha olho bom para o futebol. Convenceu o rapaz a visitar as canchas de alguns clubes.

Juntos, visitaram vários. O Centenário já era um monumento ao futebol e impressionava. Mas foi num clube bem mais modesto que Gonzalo ouviu o chamado das águas. Pararam para almoçar na Cidade Velha depois de algumas visitas, quando Eduardo pediu que Gonzalo não se empolgasse muito com o clube que visitariam. Fora campeão nacional em 1927, mas já não era tão pujante. Terminadas as milanesas, fizeram a volta na Baía de Montevidéu e chegaram ao Cerro, bairro operário da capital.

Em frente ao portão do Estádio Olímpico de Montevidéu, Gonzalo sentiu algo estranho. Nenhuma epifania, nada abrupto. Mas, ao olhar para a cancha do Rampla Juniors, ele deixou de ser o Gonzalo de sempre. O estádio ficava na margem do Rio da Prata, e os anéis da arquibancada não faziam a volta completa. Jogava-se -e se torcia- com uma vista espetacular para a Baía. O meia estava decidido: jogaria ali. Não importava o salário, não importava nada.

O meia fez um teste e foi contratado. Era parte do escrete Friysis. Gonzalo se adaptou, fardou, virou titular. Recebeu ofertas para trocar de clube, mas algo fazia ele ficar: era aquele curso d’água, que assistia aos seus passes desconcertantes. De tanto ver o futebol pateado de Montevidéu, o Prata talvez já tivesse perdido as esperanças de testemunhar um jogador daquele nível. Ainda que forte e combativo, era limpo e elegante nas jogadas. Todos queriam ver Gonzalo marchar em campo com seu trote de cavalo andaluz. Não tardou a ser apelidado de el potro.

Tudo ia bem até que, no fútbol de potrero oriental, num clássico contra o Cerro, viu sua perna esquerda dobrar de uma maneira pouco usual. Um beque rival aplicou-lhe uma tesoura por trás, torcendo as pernas do meia. Hoje, saberíamos que se romperam os ligamentos. À época, ele só sabia que não jogaria mais profissionalmente.

Gonzalo não conseguiria jogar um jogo picado do campeonato nacional. O rapaz tímido, agora na casa dos vinte e poucos anos, teve sua única vocação esvaziada por uma entrada desleal. Seus pais haviam falecido poucos invernos antes, de modo que não lhe restava ninguém de amparo.

Tinha vigor para muitos anos de qualquer atividade. Menos para o futebol profissional. Em casa e sem muitas perspectivas, resolveu ir ao estádio que não encarava há meses. Das arquibancadas, mirava o rio. Pensou que deveria fazer algo que ainda o mantivesse próximo da água. Não podia nadar, não sabia pescar. Tampouco sabia navegar. Apenas ouvia aquele chamado.

Dali uns dias ou meses, ele nunca soube precisar, ouviu no rádio que estavam procurando um faroleiro novo para Cabo Polônio. Não entendia nada de faróis, tampouco sabia onde ficava o lugar. Mas foi à sede da Armada Nacional entender melhor. Era apto ao trabalho, e um total de três pessoas haviam se inscrito: ele, um idoso e um padre. Não tardou para ser avisado de que ganhara o emprego.

Depois de arrumar suas coisas, embarcou num ônibus para Rocha, capital da província onde ficava o farol e de lá, a cavalo, chegou ao povoado de pescadores. Se hoje o local parece inóspito, calcule nos anos 1960.

O antigo faroleiro precisava de um sucessor. Já não aguentava as lides diárias, que não eram muitas. Limpeza, manutenção do farol, tarefas de registro. Gonzalo daria conta tranquilamente. E mais: ficaria sozinho e próximo ao mar. Lembraria até o fim da vida a sensação de chegar próximo às pedras. Ver os leões marinhos -seus vizinhos-, sentir o cheiro do mar e ver aquele descampado. Ele sentiu a mesma coisa que sentira quando colocara os olhos pela primeira vez na cancha do Rampla Juniors. Era ali o seu lugar.

Chamou atenção um campo de futebol modesto, no gramado plano al rededor do farol. O antigo faroleiro, já com a pressa de quem quer regressar para sua casa, disse que os pescadores costumavam jogar ali às vezes. Gonzalo sentiu felicidade e pavor juntos. O futebol estava longe da sua realidade, mas logo abaixo dos seus olhos. Depois, quando subia para limpar os vidros do farol, via que era a mesma relação que os navios tinham com a luz que a construção emanava: chegavam perto para saber que deveriam ficar longe.

O farol era bonito. Caiado na base, subia alto e iluminava todo o vilarejo, indo até as pedras mais distantes no mar. A casa do faroleiro também era boa. Típica meia água uruguaia, simpática pela frugalidade. Gonzalo se adaptou rápido à rotina.

Um dia, no terraço, tomando mate aos pés do farol, viu os pescadores chegarem com uma bola. Vieram alguns marinheiros também. Enquanto um senhor barrigudo prendia fogo no parrillero, eles iam se dividindo em dois times. A bola rolaria sob os seus olhos, com o mar de testemunha.

Gonzalo assistiu a tudo lá de cima. Viu o jogo, o assado, o vinho. Era o mesmo fútbol de potrero que encontrara na capital. A cena passou a se repetir conforme o verão se aproximava. Os fins de tarde eram animados pelas partidas. Depois, juntavam tudo, davam tchau para ele e partiam.

Um dia, depois de uma semana de chuvas e de frio em pleno verão, Gonzalo acordou irritado. O barulho de gaivotas, os leões marinhos agitados, achou que estava cansado daquilo. Mateou em silêncio e viu o sol aparecer tímido pela primeira vez em dias.

Ao entardecer, mesmo com o campo encharcado, os jogadores apareceram. E pareciam estar ainda mais felizes, como que a comemorar a trégua da chuva. Jogavam descalços, de bombachas arremangadas. Alguns inclusive entravam em campo de boina. Uma confusão organizada.

Gonzalo entendeu que não tinha raiva do Farol, a quem já tinha se irmanado. Era só saudade da bola. Foi naquele dia que o seleto grupo de pescadores de Cabo Polônio conheceu El Potro del Faro. Tímido, apareceu em volta do campo, sendo cumprimentado por todos. Bartolomé, pescador de uns 30 e poucos anos que pareciam 60 de pele e 20 de energia, convidou o faroleiro para jogar. O homem que nunca havia ficado nervoso jogando partidas contra o Nacional tremeu diante de 12 pescadores destreinados.

Timidamente, arremangou as bombachas, tirou as alpargatas e entrou no time que jogava sem camisa. Há coisas na vida que não se desaprendem. Quem nasceu com a bola no corpo não perde. Gonzalo deu dois ou três passes para sentir o joelho e ganhar confiança, percebendo que estava tudo aparentemente bem.

Quando se deu por conta, estavam todos boquiabertos com o requinte das jogadas do faroleiro. Embora tivesse bom físico, nunca imaginaram que aquele homem de poucas palavras fosse um jogador daquele quilate.

Foi então, no assado depois do jogo, entre carne e copos de tannat, que Gonzalo contou sua história. Os pescadores queriam ouvir causos e saber mais sobre a vida em Montevidéu. O mais velho deles, Hernán, entre uma tragada e outra do seu palheiro, achou estranho um jogador tão bom estar naquele fim de mundo.

Gonzalo disse que a água o havia chamado. Quando soube do posto no Farol de Cabo Polônio, sabia que ali era seu lugar. Quando chegou, teve certeza. O pescador, coçando a barba amarelada pelo fumo, entendia. O campo e o mar, quando chamam, são irrecusáveis.

Assim Gonzalo passou os anos. Fez amizade com os pescadores, daquele seu jeito tímido. Jogou futebol, comeu assado, aprendeu a pescar. Cuidou do farol por quase quarenta anos. Levou uma vida monástica, sempre perto do mar. Manteve junto de si a bola, da mesma forma que aquela imensidão oceânica.

Quando a velhice o alcançou, trocou o farol pela casa de repouso em Rocha e as lides pelas memórias. O chamado das águas, que ouvira 60 anos atrás, era quase um susurro. Já há anos sem visitar Polônio, pediu aos cuidadores que arranjassem um meio de levá-lo ao Farol para uma despedida. Ele sentia que a luz do seu próprio farol se apagaria. Era como se ele estivesse vendo, da meia lua adversária, o juiz posicionar o apito entre os lábios para o silvo final.

O acesso ao vilarejo ficara mais fácil. Os 4x4 faziam a travessia em poucos minutos. Falaram com o novo faroleiro e pediram para Gonzalo passar a noite lá por uma última vez. El potro foi bem recebido por todos. Houve um grande assado, e, claro, uma partida de futebol entre pescadores, marinheiros e até alguns turistas que hoje são frequentes no povoado.

Finda a festa, já na escuridão, Gonzalo foi acomodado no seu antigo quarto, como se nunca tivesse deixado o aposento. Ficou lá, sentindo-se velho e fraco, como se aquele corpo não fosse seu. Lembrou o vigor dos tempos de Rampla Juniors, lembrou a imensidão da vida de faroleiro. Entendeu que os clarões que ele abria no campo eram iguais aos clarões que o farol abria no mar.

De madrugada, foi dar uma última olhada no campo. Aquele mesmo campo onde jogou pela maior parte da sua vida. Seu Centenário particular.

Parado, pouco depois da meia cancha parcamente desenhada, olhou para o gol, olhou para o farol e sabia que havia chegado a hora. O árbitro apitaria. E ali, esperou o farol lhe dar as costas, como que a poupá-lo desse momento triste. Naqueles segundos de escuridão -única certeza do cabo-, el potroencontrou a única certeza da vida. Ia para sua eterna noite entre cancha e mar. O velho faroleiro finalmente descalçava as chuteiras.

--

--