Torneio de Contos de Futebol — Mario Benedetti: FINAL [encerrado]

Puntero Izquierdo
Puntero Izquierdo
16 min readJun 8, 2020

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Resultado: Com 64,5% dos votos, o Deportivo Recoleta (El Potro del Faro) é o CAMPEÃO do Torneio de Contos!

Chegamos à grande final. Foram 246 inscritos, 40 selecionados, 8 grupos, depois dois quadrangulares semifinais. Agora o troféu da primeira edição do Torneio de Contos de Futebol — Mario Benedetti está entre Los Caimanes e Deportivo Recoleta: quem vota é você, leitor, até quarta-feira, 10 de junho, às 21h.

Los Caimanes (Noções de Elasticidade) venceu o Grupo C com 34,6% dos votos, e depois ganhou o Quadrangular 1 com 37,5%. A história viaja pela criação do elástico, drible eternizado por Rivellino.

O Deportivo Recoleta (El Potro del Faro) vem de vitória no Grupo H com 57,5%, antes de levar o Quadrangular 2 com 33,3%. É a história de um velho faroleiro em Cabo Polônio, no Uruguai.

Aqui estão os prêmios em disputa, e houve acréscimos: a revista Corner garantiu uma assinatura digital para os quatro primeiros, e o jornalista José Trajano nos enviou uma cópia de seu último livro, Os Beneditinos, para engordar a cesta do grande campeão. O Chavelines (Gol azul) terminou no terceiro lugar, enquanto o 3 de Febrero (O velho da casaca) ficou com o quarto posto.

Enfim, vamos à decisão. Leia, ou releia; compartilhe; e vote. Até quarta-feira, 10 de junho, às 21h.

Noções de elasticidade

Eu tinha quinze anos e um zero em redação quando cheguei em casa e, pelas matemáticas controversas da adolescência, o zero era muito mais relevante do que o quinze.

Naquele tempo, eu andava com o César para todos os lados, fazíamos tudo juntos, gostávamos dos mesmos filmes, líamos os mesmos livros e, muitas vezes, não sabíamos de onde surgiam algumas ideias que acabávamos discutindo por minutos ou por horas. Mas nunca pensaríamos que uma brincadeira de semanas antes pudesse se transformar naquela nota zero marcada em caneta vermelha e na chacota dos colegas. Não me lembro quem teve a ideia primeiro. O fato é que tínhamos imaginado algumas frases, cheias de advérbios e adjetivos, que poderiam ser inseridas em qualquer discurso ou texto quando quiséssemos dar a entender que falávamos de algo de que realmente entendíamos. Era um método grosseiro de esticar o texto até um ponto em que ele mesmo nos puxava de volta. Mas a ideia nunca mais tinha sido assunto e eu não imaginava que o César a pudesse usar na mesma redação que eu.

Tentamos argumentar, mas a professora não quis conversa. Na saída, eu perguntei o que iríamos fazer e ele respondeu que eu deveria me entregar. Mas se ele pensava que iria ficar com um dez e eu com zero, estava muito enganado.

– É o justo — ele disse — a ideia foi minha.

Eu tive vontade de dar um murro no meio da cara daquele desgraçado, mas me contentei em mandar ele tomar no cu. Voltei sozinho, esbravejando e tentando entender por que ele achava que a ideia era sua. Eu estava cada vez mais certo de que tinha sido eu a propor aquela brincadeira, semanas atrás. Pensei em ir até a casa dele e dizer tudo, pois naquele momento eu havia lembrado em detalhes do dia em que comentei sobre o método com ele. Mas como eu poderia provar? Era uma besteira, afinal. O pior de tudo, nesse caso, era o zero.

Só que o pior costuma durar pouco. E eu acabei me esquecendo da redação, do método e do zero quando cheguei em casa e recebi a notícia de que o vô Bigode tinha morrido.

Meu pai contou de uma maneira tão direta e eficaz quanto o infarto que meu avô teve ao sair do banho naquela manhã. Foi no início daquela Copa de 2010 e o vô estava muito ansioso: completariam 40 anos da conquista de 70.

O vô Bigode tinha seus 65 anos e quem o conheceu sabe que ele nutria alguns orgulhos esquisitos, dentre os quais, jamais ter falhado à promessa de manter o bigode até o final da vida. Não hesitava em contar a quem calhasse e ninguém sabe o quanto é verdade do que o vô Bigode falava (é preciso dizer que o seu dom de mentir era outro motivo de orgulho, e até havia os que brincavam que o bigode servia para esconder o nariz). De qualquer forma, ele dizia que o bigode tinha sido sua promessa caso a seleção ganhasse a copa de 70.

Ele me contou há alguns anos, numa tarde em que eu tentava sem sucesso driblar meu pai com uma bola de borracha no pátio de casa. Assim que eu cansei, ele me chamou para sentar ao seu lado.

– Você sabe quantos anos faz que eu tenho esse bigode? — passava o indicador e o polegar sobre os pelos, do centro para as beiradas. ­– Trinta e cinco!

Disse que a promessa se deu por causa do Rivellino, seu amigo de infância. Eu não fazia a menor ideia de quem era Rivellino e de quando essa infância havia sido, mas ele dizia que, todo final de semana, jogavam peladas pelas ruas e, em um desses jogos, meu avô inventou o elástico sem querer, quando errou a passada numa tentativa de drible e a bola acabou indo para o lado contrário. Todo mundo caiu na gargalhada e ele nunca mais conseguiu repetir a jogada. Tinha inclusive esquecido, até ver o Rivellino fazendo o elástico na televisão.

– Me senti plagiado quando vi — ele fingia rancor, balançando os braços. — Hoje ele diz que aprendeu do Sérgio Echigo. Mas o Sérgio Echigo foi justamente a vítima daquele primeiro elástico que eu criei.

Ele se divertia tanto que eu não conseguia levar aquilo a sério.

– O bigode é promessa ­– ele disse — mas é também uma forma de cobrar meus direitos autorais.

Não sei se ele o raspou alguma vez. Meu pai garante que não e, com exceção de algumas fotografias da juventude, eu nunca tinha visto o meu avô sem o bigode. O que não tinham me contado era o que ninguém, além da minha vó, dos médicos e de quem preparou o corpo, sabia. Pois ignoramos algumas coisas pela confiança no trabalho alheio. E nesse meio tempo, da casa para o hospital, para o necrotério, para o caixão, algo se perdia e ninguém pensou em promessas, se aquele corpo pertenceu ao inventor do elástico ou foi amigo de Rivellino. Pois, se havia uma coisa que eu não estava no lugar, além do corpo sem vida, era o bigode, totalmente raspado no rosto do meu avô.

Minha primeira reação foi de alívio. Eu tive certeza de que se tratava de um engano, de que aquele era o corpo de outra pessoa. Lembrei de um Natal da infância, quando ele apareceu vestido de Papai Noel, me encheu de presentes e, quando me pegou no colo, eu consegui ver o bigode negro e verdadeiro sob a barba postiça. Comecei a rir no velório e meu pai me reprimiu. Eu queria dizer que nós tínhamos sido enganados, que era uma brincadeira do meu avô. Mas todo mundo chorava e, instante a instante, eu reconheci as sobrancelhas, o cabelo e até pude encaixar o bigode ausente entre o nariz e os lábios colados. Senti o pescoço arder e as pálpebras tremerem. Se era mesmo o meu avô, e todos pareciam concordar, aquilo era um desrespeito completo. Fazia trinta e nove anos que o meu avô não tirava o bigode, quem tinha deixado aquilo acontecer? Meu pai quis me abraçar, mas eu corri para fora da capela. Não queria mais olhar para o caixão. Não conseguia aceitar que alguém tivesse raspado o bigode do meu avô, como se as promessas morressem junto com o corpo.

Estava escorado no muro do lado de fora quando vi César chegar. Ele me deu um abraço e disse que sentia muito. Contei sobre o bigode e ele começou a rir, o que me deixava mais nervoso.

– É só um bigode — ele disse, emendando outro assunto. — Depois me devolve o livro.

Eu não fazia a menor ideia do que ele falava, mas ele insistia naquela história, não podia ficar com uma nota zero, os pais o matariam. Os assuntos se misturavam tanto que eu não conseguia sequer formular um pensamento. E, sem perceber que eu não o compreendia, ele disse:

– Você não vai mesmo admitir, né?

Só lembro de ter dado um soco no nariz de César e de ser puxado por alguém que me levou novamente para dentro da capela.

Ficamos quase um mês sem conversar e ninguém admitiu a culpa, nem da briga, nem da redação. No fim, resolvemos esquecer e voltamos à amizade de antes, no ponto neutro de tensão de um elástico que retorna ao estado inicial.

Naqueles dias, visitei minha avó e ela me mostrou um álbum de folhas duras e rosadas, com fotografias da adolescência e juventude do meu avô. Nem sinal de bigode. Entre as fotografias, uma delas mostrava vários garotos enfileirados, como um time de futebol. Quase não o reconheci, mas ele estava lá, ao lado de um companheiro com traços orientais. Perguntei se eu poderia levar a foto comigo e a minha vó aceitou, muito satisfeita. Deixei o retrato alguns dias sobre minha escrivaninha e acabei guardando num álbum velho.

Anos depois, eu saí de casa e os álbuns ficaram por lá. Um mês atrás, voltei para comemorar meus vinte e cinco anos. Queria reunir alguns amigos e a minha mãe pediu para eu selecionar alguns retratos de infância para expor pela sala. Foi quando encontrei a fotografia do meu avô e a levei até o meu pai.

– Mas isso é uma relíquia! — ele disse. — Essa foto estava aqui o tempo todo? Acho que é a única do teu avô com o Rivellino — ele apontou para um garoto qualquer. Era verdade, então, que o vô Bigode conhecia o Rivellino?

Meu pai disse que ele mesmo havia encontrado com o Rivellino algumas vezes quando era menino. Depois, nunca mais. É quase impossível distinguir a verdade entre uma porção de mentiras. Durante muitos anos, achei que a história do Rivellino era inventada e que meu avô só havia encontrado uma forma de justificar o bigode.

Olhei outra vez para a fotografia. No canto esquerdo, estava Rivellino, agora eu sabia. Mas o que me chamou a atenção foi o menino japonês ao lado do meu avô. E eu percebi a verdade que ele sempre tinha escondido entre uma e outra mentira. Eu tinha nas mãos a única prova daquilo que nunca acreditamos. E ali quase pude ver meu avô em um domingo, as pernas pouco hábeis para driblar o marcador e, como o prenúncio de qualquer destino, conseguindo enganá-lo pelo próprio equívoco, vendo a bola ir e voltar, às gargalhadas de todos, como um grande zero em tinta vermelha.

Voltei quase eufórico para o quarto e comecei a revirar minhas antigas tralhas. Estojos, borrachas pela metade, apontadores ainda sujos. Em uma gaveta, encontrei um caderno. Dentro do caderno, uma folha solta: a redação que exibia a nota zero em letra de forma e tinta azul (é curioso como a memória nos engana: vermelho era apenas o círculo ao redor da nota). Era uma redação muito mal escrita e eu lembrei de César na hora. Guardei o papel para mostrar para ele na festa de aniversário no dia seguinte. Quando quis guardar o caderno, no entanto, notei um livro quase intacto, que eu não lembrava de ter lido. O título em dourado era muito chamativo: Frases flexíveis: como falar do que não se sabe. Tinha anotações por todos os cantos. E a letra, sem dúvidas, era de César.

El Potro del Faro

Os dias em Cabo Polônio passam de um jeito diferente. Não mais devagar: apenas diferente. Mesmo hoje, quando os turistas chegam com seus barulhos, seus vícios e suas virtudes, ainda se nota a paz que sempre rondou aquela ponta de terra.

Só há uma certeza em Polônio. Os 24 segundos que a luz do farol leva para fazer uma volta. A noite, estrelada em céu aberto, é uma tela em negativo, riscada por um pincel claro. O farol ainda desempenha um papel importante no vaivém dos navios que rondam aquele canto esquecido. Faz tempo, há gente que cuida dele, para que não se apague e para que mantenha as embarcações a uma distância segura. O seu papel é bonito: mostra que é preciso estar perto dele para compreender que é preciso estar longe.

A certeza do cabo passa pela certeza de que haverá quem o cuide. Quem são os faroleiros? Por que alguém romperia a lógica média de ter uma vida normal? Talvez se imagine que seja solidão. Mas tem algo mais. O mar chama algumas pessoas sem motivo. O rugido das ondas, o estalar da água nas pedras. Algo chama. E foi esse chamado que inundou a mente de Gonzalo, o velho faroleiro.

Ele sempre foi quieto. Atlético, poderia ter sido um ator, não fosse a timidez. Desde cedo, fez o que todo guri de Montevidéu faz: jogou bola. Na adolescência, se destacou como um meio campo nato, daqueles que regiam uma orquestra. No futebol platino, era muito mais um domador tocando uma tropilha de potros do que um maestro. Nascera em 1942 e lembrava vagamente da festa do Maracanazo.

Talvez essa mística tenha influenciado Gonzalo a pender para o futebol. As suas atuações na várzea não tardaram a chamar atenção de pessoas ligadas aos clubes da capital uruguaia. Foi numa manhã de sábado, num campo barreado, que um olheiro foi falar com Gonzalo. Ele jogou 90 minutos com pilchas de gala. Eduardo, o olheiro, já era tordilho e tinha olho bom para o futebol. Convenceu o rapaz a visitar as canchas de alguns clubes.

Juntos, visitaram vários. O Centenário já era um monumento ao futebol e impressionava. Mas foi num clube bem mais modesto que Gonzalo ouviu o chamado das águas. Pararam para almoçar na Cidade Velha depois de algumas visitas, quando Eduardo pediu que Gonzalo não se empolgasse muito com o clube que visitariam. Fora campeão nacional em 1927, mas já não era tão pujante. Terminadas as milanesas, fizeram a volta na Baía de Montevidéu e chegaram ao Cerro, bairro operário da capital.

Em frente ao portão do Estádio Olímpico de Montevidéu, Gonzalo sentiu algo estranho. Nenhuma epifania, nada abrupto. Mas, ao olhar para a cancha do Rampla Juniors, ele deixou de ser o Gonzalo de sempre. O estádio ficava na margem do Rio da Prata, e os anéis da arquibancada não faziam a volta completa. Jogava-se -e se torcia- com uma vista espetacular para a Baía. O meia estava decidido: jogaria ali. Não importava o salário, não importava nada.

O meia fez um teste e foi contratado. Era parte do escrete Friysis. Gonzalo se adaptou, fardou, virou titular. Recebeu ofertas para trocar de clube, mas algo fazia ele ficar: era aquele curso d’água, que assistia aos seus passes desconcertantes. De tanto ver o futebol pateado de Montevidéu, o Prata talvez já tivesse perdido as esperanças de testemunhar um jogador daquele nível. Ainda que forte e combativo, era limpo e elegante nas jogadas. Todos queriam ver Gonzalo marchar em campo com seu trote de cavalo andaluz. Não tardou a ser apelidado de el potro.

Tudo ia bem até que, no fútbol de potrero oriental, num clássico contra o Cerro, viu sua perna esquerda dobrar de uma maneira pouco usual. Um beque rival aplicou-lhe uma tesoura por trás, torcendo as pernas do meia. Hoje, saberíamos que se romperam os ligamentos. À época, ele só sabia que não jogaria mais profissionalmente.

Gonzalo não conseguiria jogar um jogo picado do campeonato nacional. O rapaz tímido, agora na casa dos vinte e poucos anos, teve sua única vocação esvaziada por uma entrada desleal. Seus pais haviam falecido poucos invernos antes, de modo que não lhe restava ninguém de amparo.

Tinha vigor para muitos anos de qualquer atividade. Menos para o futebol profissional. Em casa e sem muitas perspectivas, resolveu ir ao estádio que não encarava há meses. Das arquibancadas, mirava o rio. Pensou que deveria fazer algo que ainda o mantivesse próximo da água. Não podia nadar, não sabia pescar. Tampouco sabia navegar. Apenas ouvia aquele chamado.

Dali uns dias ou meses, ele nunca soube precisar, ouviu no rádio que estavam procurando um faroleiro novo para Cabo Polônio. Não entendia nada de faróis, tampouco sabia onde ficava o lugar. Mas foi à sede da Armada Nacional entender melhor. Era apto ao trabalho, e um total de três pessoas haviam se inscrito: ele, um idoso e um padre. Não tardou para ser avisado de que ganhara o emprego.

Depois de arrumar suas coisas, embarcou num ônibus para Rocha, capital da província onde ficava o farol e de lá, a cavalo, chegou ao povoado de pescadores. Se hoje o local parece inóspito, calcule nos anos 1960.

O antigo faroleiro precisava de um sucessor. Já não aguentava as lides diárias, que não eram muitas. Limpeza, manutenção do farol, tarefas de registro. Gonzalo daria conta tranquilamente. E mais: ficaria sozinho e próximo ao mar. Lembraria até o fim da vida a sensação de chegar próximo às pedras. Ver os leões marinhos -seus vizinhos-, sentir o cheiro do mar e ver aquele descampado. Ele sentiu a mesma coisa que sentira quando colocara os olhos pela primeira vez na cancha do Rampla Juniors. Era ali o seu lugar.

Chamou atenção um campo de futebol modesto, no gramado plano al rededor do farol. O antigo faroleiro, já com a pressa de quem quer regressar para sua casa, disse que os pescadores costumavam jogar ali às vezes. Gonzalo sentiu felicidade e pavor juntos. O futebol estava longe da sua realidade, mas logo abaixo dos seus olhos. Depois, quando subia para limpar os vidros do farol, via que era a mesma relação que os navios tinham com a luz que a construção emanava: chegavam perto para saber que deveriam ficar longe.

O farol era bonito. Caiado na base, subia alto e iluminava todo o vilarejo, indo até as pedras mais distantes no mar. A casa do faroleiro também era boa. Típica meia água uruguaia, simpática pela frugalidade. Gonzalo se adaptou rápido à rotina.

Um dia, no terraço, tomando mate aos pés do farol, viu os pescadores chegarem com uma bola. Vieram alguns marinheiros também. Enquanto um senhor barrigudo prendia fogo no parrillero, eles iam se dividindo em dois times. A bola rolaria sob os seus olhos, com o mar de testemunha.

Gonzalo assistiu a tudo lá de cima. Viu o jogo, o assado, o vinho. Era o mesmo fútbol de potrero que encontrara na capital. A cena passou a se repetir conforme o verão se aproximava. Os fins de tarde eram animados pelas partidas. Depois, juntavam tudo, davam tchau para ele e partiam.

Um dia, depois de uma semana de chuvas e de frio em pleno verão, Gonzalo acordou irritado. O barulho de gaivotas, os leões marinhos agitados, achou que estava cansado daquilo. Mateou em silêncio e viu o sol aparecer tímido pela primeira vez em dias.

Ao entardecer, mesmo com o campo encharcado, os jogadores apareceram. E pareciam estar ainda mais felizes, como que a comemorar a trégua da chuva. Jogavam descalços, de bombachas arremangadas. Alguns inclusive entravam em campo de boina. Uma confusão organizada.

Gonzalo entendeu que não tinha raiva do Farol, a quem já tinha se irmanado. Era só saudade da bola. Foi naquele dia que o seleto grupo de pescadores de Cabo Polônio conheceu El Potro del Faro. Tímido, apareceu em volta do campo, sendo cumprimentado por todos. Bartolomé, pescador de uns 30 e poucos anos que pareciam 60 de pele e 20 de energia, convidou o faroleiro para jogar. O homem que nunca havia ficado nervoso jogando partidas contra o Nacional tremeu diante de 12 pescadores destreinados.

Timidamente, arremangou as bombachas, tirou as alpargatas e entrou no time que jogava sem camisa. Há coisas na vida que não se desaprendem. Quem nasceu com a bola no corpo não perde. Gonzalo deu dois ou três passes para sentir o joelho e ganhar confiança, percebendo que estava tudo aparentemente bem.

Quando se deu por conta, estavam todos boquiabertos com o requinte das jogadas do faroleiro. Embora tivesse bom físico, nunca imaginaram que aquele homem de poucas palavras fosse um jogador daquele quilate.

Foi então, no assado depois do jogo, entre carne e copos de tannat, que Gonzalo contou sua história. Os pescadores queriam ouvir causos e saber mais sobre a vida em Montevidéu. O mais velho deles, Hernán, entre uma tragada e outra do seu palheiro, achou estranho um jogador tão bom estar naquele fim de mundo.

Gonzalo disse que a água o havia chamado. Quando soube do posto no Farol de Cabo Polônio, sabia que ali era seu lugar. Quando chegou, teve certeza. O pescador, coçando a barba amarelada pelo fumo, entendia. O campo e o mar, quando chamam, são irrecusáveis.

Assim Gonzalo passou os anos. Fez amizade com os pescadores, daquele seu jeito tímido. Jogou futebol, comeu assado, aprendeu a pescar. Cuidou do farol por quase quarenta anos. Levou uma vida monástica, sempre perto do mar. Manteve junto de si a bola, da mesma forma que aquela imensidão oceânica.

Quando a velhice o alcançou, trocou o farol pela casa de repouso em Rocha e as lides pelas memórias. O chamado das águas, que ouvira 60 anos atrás, era quase um susurro. Já há anos sem visitar Polônio, pediu aos cuidadores que arranjassem um meio de levá-lo ao Farol para uma despedida. Ele sentia que a luz do seu próprio farol se apagaria. Era como se ele estivesse vendo, da meia lua adversária, o juiz posicionar o apito entre os lábios para o silvo final.

O acesso ao vilarejo ficara mais fácil. Os 4x4 faziam a travessia em poucos minutos. Falaram com o novo faroleiro e pediram para Gonzalo passar a noite lá por uma última vez. El potro foi bem recebido por todos. Houve um grande assado, e, claro, uma partida de futebol entre pescadores, marinheiros e até alguns turistas que hoje são frequentes no povoado.

Finda a festa, já na escuridão, Gonzalo foi acomodado no seu antigo quarto, como se nunca tivesse deixado o aposento. Ficou lá, sentindo-se velho e fraco, como se aquele corpo não fosse seu. Lembrou o vigor dos tempos de Rampla Juniors, lembrou a imensidão da vida de faroleiro. Entendeu que os clarões que ele abria no campo eram iguais aos clarões que o farol abria no mar.

De madrugada, foi dar uma última olhada no campo. Aquele mesmo campo onde jogou pela maior parte da sua vida. Seu Centenário particular.

Parado, pouco depois da meia cancha parcamente desenhada, olhou para o gol, olhou para o farol e sabia que havia chegado a hora. O árbitro apitaria. E ali, esperou o farol lhe dar as costas, como que a poupá-lo desse momento triste. Naqueles segundos de escuridão -única certeza do cabo-, el potro encontrou a única certeza da vida. Ia para sua eterna noite entre cancha e mar. O velho faroleiro finalmente descalçava as chuteiras.

Resultado da final!

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