Torneio de contos de futebol — Mario Benedetti: GRUPO C [encerrado]

Puntero Izquierdo
Puntero Izquierdo
31 min readMay 12, 2020

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Resultado: Los Caimanes (Noções de Elasticidade) vence o grupo com 34,6% dos votos e está classificado à segunda fase. Votação atualizada e final no fim da página. Reforçamos para autores e autoras manterem o anonimato até o fim do torneio, mesmo que o texto tenha sido eliminado.

Quarentena, no te tenemos miedo! E por isso seguimos com este Torneio de Contos de futebol que já é todo um sucesso. Com o Grupo A e o Grupo B definidos, chegou o momento de decidirmos quem avança à fase final neste garboso "Cezão", com Clan Juvenil, Chaco For Ever, Palmaflor, Los Caimanes e Patria.

Tem contos para todos os gostos de leitura e humor. Lembre-se de ler os cinco e votar naquele que considera o melhor, o que mais lhe tocou o coração ou o rim (já que operamos sob todos os tipos de sentimentos).

A votação do Grupo C fica aberta até quinta-feira, 14 de maio, às 23h59. Leia os cinco textos e vote no campeão do grupo em enquete ao fim desta página (você precisará logar numa conta Google — também somos vítimas das grandes corporações). Somente o primeiro colocado da chave avança para a segunda fase.

O Grupo D está marcado para sexta-feira, 15 de maio. Regulamento e tabela completa aqui. Bom jogo!

ATENÇÃO: Reforçamos aos autores e autoras que não identifiquem (muito menos republiquem) seus textos nem seus grupos até o final da Copa.

Nota: nenhum conto sofreu qualquer tipo de edição por parte da equipe do Puntero Izquierdo.

Os donos da praça

Era uma praça onde desembocavam cinco ruas. E não era uma praça qualquer: havia nela um campinho.

Não se sabe por que, nem muito bem como, mas existia um título extraoficial de “donos da praça”. E todas as cinco ruas diziam que o simbólico troféu era seu.

O time mais velho era o da rua Benguela. Contavam que seus avós tinham criado a praça, e consequentemente o campinho, e que ninguém nunca havia ganhado mais jogos, feito mais gols e revelado mais craques do que eles. Usavam o argumento da ancestralidade: eram herdeiros dos fundadores e, portanto, carregavam consigo suas proezas e conquistas. Estava no sangue.

Os da rua Colombo não concordavam muito com isso. Desmentiam metade das histórias da rua Benguela, contavam por vezes as mesmas proezas, e afirmavam que tinham sido os primeiros a organizar os jogos na praça. Sua defesa era a da legalidade: escreveram as regras, distribuíram as fichas de inscrição, chancelaram os resultados, portanto, a praça e o direito de jogar na praça eram atributo deles.

O discurso do time da rua Cruzeiro do Sul ia por um terceiro caminho. De todos os times, era o único que havia ousado sair do bairro. E sair bem: jogavam todo ano um campeonato entre bairros e já tinham alcançado duas finais. Defendiam a ideia do mérito: eram os melhores, os maiores da praça (ainda que não vencessem um campeonato interno há anos) e por conta disso poderiam reservar o campo quando quisessem, para treinar ou jogar.

O maior desafio, entretanto, era o que enfrentava o time da rua Amazonas. Por um motivo que ia além do futebol: era um time feminino. O único naquela região da cidade, e que, por conta disso, muitas vezes se via obrigado a jogar misturado com os times masculinos do bairro, para treinar. Diziam que seu direito à praça era uma questão de justiça: não havia outro espaço permitido às mulheres para jogar futebol por ali e, com tantos espaços destinados aos homens, era justo que ao menos a praça do bairro onde moravam fosse delas quando quisessem.

A disputa pela posse do campinho só deixava de existir quando entrava em campo o time da rua Costa e Silva. Para eles, a praça era deles, e quem tivesse um problema com isso podia vir resolver no braço. Davam risada dos jogos da rua Amazonas, gritando insultos do lado de fora do campo; já haviam forçado o time da rua Cruzeiro do Sul a um W.O. por simplesmente se recusarem a sair do campo no dia do campeonato entre bairros. Não tinham argumento, mas tinham a força: o padrinho do time era delegado de polícia.

Toda essa tensão só ficava pior na época do campeonato interno. O time da rua Amazonas não participava — embora tentasse todo ano, e até tivesse o apoio do time da rua Cruzeiro do Sul. Disputado em pontos corridos, o “quadrangular da morte”, como brincavam as crianças, acontecia sempre no mês de agosto.

Chegava o fim de julho daquele ano quando aconteceu. Era um sábado de calor, e às 15h horas estava marcado um amistoso entre o time da rua Benguela e um visitante do bairro vizinho. Logo depois do almoço, quando os primeiros jogadores locais chegaram à praça, encontraram os times da rua Amazonas e da rua Colombo em campo, discutindo asperamente.

- Marcamos esse treino faz quase um mês. Vocês usam o campo todos os dias, é a primeira vez que a gente vem — dizia a goleira da rua Amazonas.
- Não importa. Vocês não colocaram o horário na tabela de jogos oficial da praça.
- Como vamos colocar se a tabela fica com vocês?
- Já ouviu falar em telefone?

O zagueiro da rua Benguela entrou na discussão.

- De que dia vocês estão falando? Hoje? Hoje temos jogo aqui, daqui a pouco.
- Também não está na tabela.
- Que mané tabela, tá vendo aquele gol ali? Meu pai quem fez ele lá em casa, meus tios instalaram. Todo mundo sabe que de sábado a gente joga.
- De sábado, de domingo, de segunda… vocês homens jogam sempre que querem. A gente nunca tem vez!

De repente, surgiu um juiz.

- Oi gente, tudo bem? Queria pedir pra vocês deixarem o campo, às 14h agora tem jogo do campeonato entre bairros.
- Que jogo?
- Rua Cruzeiro do Sul contra XI Garotos.
- Vocês não avisaram. Também não está na tabela.

A goleira da rua Amazonas perdeu a paciência.

- Dá aqui essa tabela, você vai ver onde eu vou enfiar — arrancou a folha A4 laminada e brilhante da mão do diretor-geral da rua Colombo e saiu caminhando em direção à lixeira que ficava ao lado do campo, enquanto a meia central, aproveitando o momento, roubava a chave do vestiário do bolso da calça do zelador do campo.

O diretor-geral nem se mexeu. Olhou pros seus jogadores do lado de fora do gramado e acenou com a cabeça. A goleira rapidamente foi cercada. A meia central se desvencilhou das tentativas de contenção do zagueiro da rua Benguela e chegou até o bolo, ameaçando atirar a chave no esgoto. Os velhos ao redor da praça gritavam:

- Deixa as meninas jogarem! Queremos ver as meninas!

A torcida organizada do time da rua Cruzeiro do Sul, com bumbos e bandeiras, cantava atrás de um dos gols.

- Se a gente não jogar, olê, olê, olá… o pau vai quebrar!

E quando as coisas já pareciam muito próximas de uma tragédia, surgiu o delegado, de arma em punho, camisa do time da rua Costa e Silva. Deu um tiro para o alto e gritou:

- Ninguém joga aqui hoje!

Enquanto uns corriam, outros se abaixavam, a bala traçou uma trajetória retilínea em direção ao maior pé de jaca da praça. Atingiu um dos frutos, que se soltou do galho e encontrou a cabeça de uma das crianças que, alheias à discussão, chutavam uma bola ali perto do gol.

No tumulto que se seguiu, a briga pela posse do campo acabou. O juiz meteu o menino no banco de trás do carro e arrancou para o hospital, enquanto a goleira do time da rua Amazonas e o diretor-geral da rua Colombo, que (ninguém sabia) tinham um caso, corriam para avisar a mãe da criança.

O menino morreu antes mesmo de chegar à emergência.

O delegado sumiu do bairro. Diziam que tinha fugido até da cidade. Era a lei, mas sabia que nenhuma lei o protegeria da turba depois daquilo.

Por três semanas, a comunidade esteve em luto. Nenhuma bola correu na praça. E os representantes dos outros quatro times, indignados com a gota d’água na costumeira violência do time da rua Costa e Silva, resolveram fazer um pacto: expulsariam de uma vez por todas aqueles trogloditas do bairro. Sem usar a força.

A ideia era simples: um jogo entre um combinado dos quatro, rua Amazonas inclusa, e a rua Costa e Silva. Quem ganhasse ficava com a praça — de uma vez por todas. O diretor do time da rua Costa e Silva, que não era policial mas se portava como, riu. Jogar contra um time misto? Só podia ser piada. Mas teve que engolir a proposta, já que sem a proteção do delegado as coisas não eram mais tão favoráveis para o lado dos brucutus.

O jogo foi marcado para dali duas semanas. Cada um dos quatro times ofereceu quatro jogadores, ou jogadoras, para a “seleção”. Os horários no campo foram divididos igualmente pelo pessoal da rua Colombo para treinos. De segunda, quarta e sexta, treinava a rua Costa e Silva. De terça, quinta e sábado, o combinado. De domingo, o campo era das crianças.

Pelo bairro, não se falava em outra coisa. O dono da lojinha de esportes ofereceu um troféu, que levou o nome do menino morto. As costureiras fizeram bandeiras. Os quatro times do combinado mandaram fazer um uniforme, todo branco. Na rua Costa e Silva, o clima era de soberba e medo. Tinham a certeza da vitória, se não na bola, na porrada, mas ao mesmo tempo sentiam calafrios ao imaginar a derrota.

O último treino do combinado parecia um piquenique. Quase todo mundo das quatro ruas foi assistir. Havia comida, e bebida, e a torcida organizada da rua Cruzeiro do Sul entoava cânticos de empatia e solidariedade. As quatro jogadoras da rua Amazonas foram ovacionadas ao entrar em campo. O pessoal da rua Colombo organizou uma vaquinha para o churrasco. A rua Benguela, conhecida pelas festas, encabeçou uma roda de samba depois do treino. Combinaram com a família do menino um minuto de silêncio e o pontapé inicial no dia seguinte. Já era quase madrugada quando as últimas pessoas foram pra casa, cheias de adrenalina.

A partida estava marcada para as 16h — dane-se o jogo da TV. Mas eram ainda 9h quando dois moleques da rua Benguela bateram esbaforidos na porta do diretor-geral do time da rua Colombo.

- Diretor! Diretor! Você viu o que aconteceu? O campinho sumiu!

O diretor, lutando para espantar as últimas notas de sono, arregalou os olhos. Calçou os chinelos e correu. Ao chegar, encontrou a praça cercada de tapumes, e boa parte dos moradores das cinco ruas em silêncio.

De frente para a rua Cruzeiro do Sul, uma placa grande dizia:

AQUI — EM BREVE — JACA’S VILLAGE TOWER

APARTAMENTOS PRIVATIVOS — 42m² — VARANDA GOURMET

SAUNA — ACADEMIA — PISCINA — QUADRA DE ESPORTES

DUAS VAGAS NA GARAGEM

CONSULTE NOSSOS CORRETORES

Daquele dia em diante, os últimos pés a pisarem no campinho não vestiam chuteira, e sim botas de construção civil. Para eles, não importavam ancestralidade, legalidade, mérito, justiça ou violência. Queriam saber mesmo é do descanso ao final do expediente — de preferência, com futebol na TV.

A trama encarnada

Eu atravessava a João Pessoa diante do parque (ou esperava para atravessar, pois aquela sinaleira é das mais demoradas e enervantes da cidade), há uns quantos dias, quando recebi a primeira chamada telefônica de Marcelo. Não o via há muito tempo, desde que deixamos de frequentar as mesmas rodas e as mesmas ruas, algo que não me surpreendia tanto assim; ele era uma daquelas pessoas com dificuldades para se fixar em um só eixo, seja no trabalho, no que diz respeito aos amigos ou aos lugares. Uma pessoa tão carinhosa como dispersiva, tão envolvida em seus temas como distraída dos mesmos assuntos que por semanas ou meses haviam tomado todo seu coração e interesse. Não houve ruptura, nem despedidas, tampouco poderia dizer que o que deixamos para trás foi uma grande amizade: apenas duas pessoas próximas que deixavam de se ver, natural e simplesmente, como acontece tantas vezes ao longo de uma vida, todo o tempo, mesmo agora, em outro lugar.

Eu esperava para atravessar a avenida, menos impaciente que de costume naquele trecho por conta do vento morno de outubro, e atendi o telefone enquanto cuidava a modificação da sinaleira e a velocidade dos carros que seguiam, velozes, em direção ao Centro. O número dele não constava na minha agenda, seja porque eu havia perdido também essa forma de contato ou porque ele havia trocado de telefone no passado recente. Apresentou-se tão logo eu recebi a chamada: ria, gracioso, dizia que pretendia pular a parte do “quanto tempo”, do “que foi da minha vida nos últimos meses”, que queria me encontrar para falar de um projeto, de uma ideia que o estava atormentando (no bom sentido, disse ele, num esclarecimento que me deixou mais confuso, a palavra atormentar sequer contempla essa possibilidade positiva) e que estaria disponível nos próximos dias para me ver, caso eu estivesse na cidade e contasse com algum tempo livre.

Estava, sim, tive que dizer, menos surpreso que curioso, e combinamos que no final da tarde seguinte nos encontraríamos e teríamos essa conversa. Ele estava morando para os lados do bairro Floresta, na rua Pelotas pelo que entendi enquanto o ouvia com alguma dificuldade e já pisava rápido o asfalto da avenida para ganhar em seguida a grama rala do parque. Amanhã, então, perto das sete, no bar Alfredo, na Cristóvão com a Ramiro, sim, eu lembrava bem, ainda que não me sentasse lá há algumas eternidades, e então desligamos. Muitos anos antes, sempre na mesma mesa junto à janela, estive algumas vezes no Alfredo com Marcelo, mais ao fundo do bar do que gostaria; saíamos juntos naquela época, eram encontros tardios, às vezes com amigos e amigas, outras vezes ao sair do Beira-Rio e entrar no carro dele, com os mesmos dois ou três destinos a despontar no baralho, embora mesmo naquelas curvas da juventude eu preferisse, por conforto ou preguiça, encontrar um balcão e uma cerveja no Menino Deus, perto do estádio e mais perto ainda da minha casa.

Lembro bem esse primeiro (novo) encontro porque a estranheza da conversação me fez, naquela noite, transpor para o papel algumas das frases que escutei de Marcelo no bar Alfredo. Não sentamos na mesma mesa, e isso que ela não estava ocupada àquela hora — era cedo demais para os frequentadores assíduos do bar que chegam quase sempre depois das dez, os estudantes com fome, policiais em ronda ou plantão, as prostitutas entediadas a matar o tempo, os taxistas, balconistas de farmácias e empacotadores de supermercados. Marcelo (que agora levava uma barba de algum volume no rosto) nos fez sentar em uma das primeiras mesas, também junto à janela, mas próxima ao caixa e à entrada. Falava rápido e ouvia muito pouco; contava de numerosas viagens, atualizava a vida bruscamente, perguntou por alguns nomes (mais por Alice, na verdade, com uma insistência ruim) e disse que naquele ano mal pôde ver o Internacional no Beira-Rio. Estava acompanhando o campeonato mais pelo rádio do carro, enquanto se deslocava, com pressa, pela cidade, do que da arquibancada superior, e disse isso mais com perceptível orgulho no tom da voz.

Entendi, ou comecei a entender, o que Marcelo queria de fato me contar quando passou a me falar das viagens a Rosario. Ia à Argentina duas vezes por mês, pelo menos. Tinha contatos por lá. Os negócios haviam surgido por acaso: começou a viajar para visitar uma mulher chamada Rebeca, alguém que havia passado por aqui, encontrado Marcelo e mencionado um negócio que envolvia arquivos, edição de imagem, modificação de dados, grandes quantias, negociações, alguma polêmica. Falsificação, eu pensei, e deixei escapar a palavra em voz baixa. Modificação, ele me corrigiu. Rebeca trabalhava com dois homens em uma oficina do norte de Rosario, perto de Arroyito. Um lugar discreto, disse Marcelo, nenhuma inscrição na fachada, telefones à mostra, nome comercial, nada. Discreto e seguro. Poucos conheciam o que três pessoas relativamente jovens (quatro, quando Marcelo viajava) faziam dentro da casa de dois pisos, de paredes brancas e portas pintadas de azul, razoavelmente elegante, típica da decadente burguesia local, bem situada, a trezentos metros do rio Paraná.

Rebeca e os dois homens queriam, foi o que ele disse, levar a cabo uma experiência. Modificar algum fato histórico abertamente conhecido pela comunidade local através da manipulação dos acervos e das imagens, da modificação do relato de testemunhas e, a partir daí, construir uma nova versão que se espalharia com o vento. Um revisionismo radical, eu disse a Marcelo, que se entretinha com os pastéis de carne do Alfredo e bebia Brahma a goles lerdos. Pode ser, ele concordou. Mas também um poderoso início de uma série de experimentos que poderiam culminar em algo maior. Explicou-me qual foi o primeiro trabalho que puderam realizar em Rosario. Conhece a história do gol de Aldo Pedro Poy no clássico entre Central e Newell’s que classificou o canalla para a final de 1971?, o gol de peixinho, que por lá chamam de palomita?, me perguntou, e eu não entendia onde poderia chegar com essa rememoração tão pontual. Eu sabia, sim, havia lido algumas das histórias do futebol argentino e rosarino em um livro do Negro Fontanarrosa, presente de um amigo em comum, inclusive.

Pois Rebeca e seus dois ajudantes, dissertou Marcelo, são todos fanáticos pelo Central e escolheram esse gol, um gol emblemático, que todos na cidade conhecem. Nós modificamos algo nesse gol. Nos reunimos com os editores de esporte de La Capital. Levamos dois funcionários do acervo público para beber conosco no bar El Cairo, e beber bem. Preparamos um churrasco, no caminho para Santa Fe, para alguns jogadores daquele time de 1971; estava presente o próprio Aldo Poy, mas com ele não nos acertamos. A questão era: modificar nos registros que aquele gol, na partida de desempate, que como todos sabem aconteceu em Buenos Aires, foi marcado no Monumental de Núñez, e não na Bombonera. Mas por quê?, eu perguntei, sem entender como alguém reuniria tantos esforços (e, estava claro, dinheiro em subornos) para revisar apenas um detalhe da história; um detalhe facilmente verificável, inclusive. Me respondeu Marcelo: para provar que é possível, que as pessoas aceitam a modificação, que podemos ir mais longe.

Marcelo bebeu mais um gole, afastou a bandeja dos pastéis, olhou com prudência ao redor (como se fosse possível encontrar torcedores do Rosario Central em pleno bar Alfredo, num começo de noite de quinta-feira) e passou a mexer numa pasta. Tirou dali páginas impressas da Wikipedia em inglês, da imprensa rosarina, de um caderno especial preparado pelo clube, de uma entrevista do lateral-esquerdo Fanesi para o La Nación. Todos os recortes, mais ou menos recentes, coincidiam que o gol de palomita havia sido marcado em Núñez, não em La Boca. E as imagens de televisão?, questionei, quase ofendido. Imagens velhas, disse Marcelo, de má resolução, fáceis de se editar. Rebeca resolveu isso em uma tarde, tomando mate. Deixou saturados os fundos, aumentou as faixas de cor cinza. Agora se parece com qualquer estádio, pode ser o Monumental ou a cancha do Atlanta, tanto faz. Estava feito. Marcelo, Rebeca e outros dois loucos haviam alterado, por motivos que ainda me soam obscuros, o endereço do histórico gol de Aldo Pedro Poy.

O assuntou terminou por me cansar, o sorriso persistente de Marcelo, vulgar e quase adolescente, me levava a beber rápido e eu precisava acordar cedo na manhã seguinte. Me despedi com algum cumprimento debochado, para não deixar passar que aquilo tudo me parecia sem sentido, outra aventura intranscendente do meu amigo. Dias depois, recebi uma foto de Marcelo. Estava em um bar de Rosario (Cocodrilo, podia-se ler num letreiro em néon que faiscava sobre o balcão) e me dizia por mensagem que voltaria em seguida, que queria me encontrar no fim de semana. Aceitei. Estaria sozinho na cidade, com pouco trabalho e muito tempo livre para deambular entre os vastos terrenos do ócio. Marcamos para o sábado, em um bar quase em frente à minha casa, na rua Botafogo. Dali quase se pode ver o estádio Olímpico, agora um elefante cercado de pasto, andarilhos, árvores sem podar. Sempre morei por ali, trocando de apartamento na mesma zona, entre Menino Deus, Azenha, Medianeira. Sempre perto do inimigo, que anos atrás se cansou do começo do sul e se mudou para longe; eu fiquei.

Marcelo, no sábado, não apareceu sozinho. Estava acompanhado de uma mulher alta, loira, o rosto bem argentino. Rebeca, pensei, e estava certo. Nos sentamos em uma mesa ao fundo, longe do ruído do bar, a pedido deles. Marcelo trazia papéis, Rebeca uma agenda abarrotada de colagens, avisos que escapavam das páginas. Pareciam menos contentes que apreensivos. Aconteceu algo em Rosario?, arrisquei perguntar. Ficou complicado permanecer por lá, me respondeu um moderado Marcelo, mas agora vamos fazer outra vez e melhor, vamos fazer por aqui. Queremos a tua ajuda, disse agora Rebeca, que deixava ver as iniciais C.A.R.C. nas proximidades do antebraço esquerdo, a pele muito branca. Queremos continuar trabalhando com os anos setenta, ela falou, já sabemos como fazer, que arquivos visitar, como pensar e modificar as cores da época. Vamos fazer algo com o teu Internacional, ela disse. O de vocês, corrigiu, veloz.

A ideia era ainda mais disparatada e parecia chegar sob encomenda. Rebeca e Marcelo queriam alterar um ou dois quadros da imagem, um mísero frame no gol de Paulo Roberto Falcão na semifinal de 1976, contra o Atlético Mineiro, no Beira-Rio. Não mudar o autor do gol, nem o cenário, nem a monumental troca de passes que antecede o chute, nem o calor de dezembro nas margens do Guaíba, nada. O que queriam, então?, quase gritei. Queremos modificar a queda do goleiro. Que depois do chute a bola não bata em Ortiz e entre, mas que o goleiro caia e a bola passe por baixo dele. Mas por que, se não foi assim?, eu perguntava, rancoroso, surpreso. Porque assim nos foi pedido, disse Marcelo, e assim precisamos fazer. Um cliente de Rosario, murmurou Rebeca.

O meu corpo

quase duas horas pra ir e quase três para voltar porque zzzzzzzzzzzzz a música a dança os copos as risadas pesavam sim nas pernas mas quando era a noite eu pelo menos não tinha pressa eu podia caminhar cantar no ritmo que eu quisesse ninguém para mandar ninguém pra obrigar dizendo não agora ou rápido caralho ou hoje não tem nada aqui pra você ou você não tá vendo que é pra parar mas e pelas madrugadas responder pra eles e mexer meu corpo e levantar meus braços e girar ao redor de meu eixo como um engenho inútil porque sim porra porque eu queria porque eu podia e porque se eles tavam na minha cabeça era só pra que eu desse uma resposta tão enorme e tão clara que eles não teriam o que fazer que eles teriam que ver que aguentar o meu corpo se jogando no espaço vazio caminhando e parando de caminhar e então correndo e então deixando de correr e como eu era feliz quando eu era feliz o pouco que eu era feliz meu deus eu daria tudo pra voltar praquelas luzes distantes das estrelas pro vento frio da noite pra quando eu podia ser tão só que dava até pra ser um pouco parte de mim ainda que não valesse o sol torrando no lombo a indiferença boba dos cavalos e aquela gente que via a gente como uns bichos uns fiapos de mato que crescem num piso sem que ninguém tivesse regado mas a sorte que deus me deu foi de nunca ter acreditado neles de ter seguido minhas pernas por aí por tantos caminhos campos becos vielas e quantos amigos ainda estão ouvindo as mesmas merdas da boca de outras pessoas sentindo sede e dor nas costas mentindo a idade pela cor dos seus cabelos e com a cara franzida de tentar ver onde é que tá cada coisa nos quintais do mundo e zzzzzz eu não sei se sou melhor do que eles por estar agora tão distante de suas vidas não sei mesmo quem ganhou ou quem perdeu ou se é mesmo possível ganhar ou perder no verdadeiro jogo eu estou aqui agora só porque tapei os ouvidos com toda a força um dia e escutei aquele chiado que vem de dentro da gente que vem sabe deus da onde esse barulho mesmo que são quarenta setenta mil pessoas juntas lado a lado e é por isso que eu sei que são as vozes das coisas que fazem questão de não deixar a gente escutar a multidão que paira no lado de dentro da gente e de aumentar sua música idiota suas ordens de filhos da puta pra que a gente não ouça nada não sinta nada além daquilo que parece ser o único corpo do mundo quando é só uma simples mentira canalha e zzzzzzzzzzzzzzzzz eu não sou melhor do que ninguém só porque eu me escuto e quem sabe se eles só não estejam aqui agora porque também ouviram seu lado de dentro um dia ou porque talvez o melhor mesmo seja se entregar já que é o outro jogo o que permite a derrota mas por deus pelo menos pelo menos saber contra o que você tá jogando ou qual a regra que tão despejando na sua cabeça ou debaixo quais olhos estão te olhando o paulinho a dedé a ana o jefferson o finado careca o marco antônio não podem estar errados mas eu também sei que não posso estar também fui eu que escolhi a escolha que eu fiz e eu sei que isso aqui é o mais perto que dá pra chegar de tomar a vida inteira como uma noite daquelas que acabam só pra que no fim da caminhada outra noite faça toda a vida começar outra vez nunca nunca chegar em casa deitar um pouco esperar o sol aparecer para nos obrigar a suar em bicas nunca nunca mais porque agora eu quero suar o meu próprio suor e talvez até mesmo seja feliz quando menos perceba mas o que isso significa para os olhos de paulinho dedé ana marco antônio que me procuram agora e zzzzzzzzz se eu não puder dar uma resposta ou se minha resposta desapontar por ser cara bela brilhante ou por ser frustrante podre real meu deus o que fazer com os sonhos dos outros quando temos as razões secretas do nosso próprio corpo viver para si é o bastante hein não é muito egoísmo ser feliz como dizia a mãe naqueles tempos hein meu deus como é difícil não saber o que você tem mesmo direito na vida pra além da vida mesmo eu me lembro de como ela me metia a mão e me cobria de chutes porque sabia que me amava e que não dava pra vencer as ruas só escutando sua própria voz no espelho e agora em todo canto do mundo estão lá as regras pra nos regrar mas em todo canto também tem algum ponto surdo mãe em que nós nos escutamos enganamos vivemos o lado de fora pro lado de dentro o aleatório pro que é preciso e o vazio pro corpo que insiste em seguir existindo e zzzzzzzzzzzzz o marco antônio lá deitado numa cama fria com a boca aberta olhando a televisão sem som e talvez se perguntando o que é verdade e o que é mentira nesta vida nunca mais trabalhar marco antônio nunca mais dançar nunca mais virar madrugadas com a gente marco antônio você que ao menos sobreviveu pra encarnar esta história meu deus como o dia de hoje é minúsculo perto de tudo mas como este momento é eterno por ser o único em que estamos vivendo e eu me lembro da lição do careca eu nunca nunca esqueci e talvez por isso tenha mesmo estas cores a noite de hoje zzzzzzz olhe aqui nada é mais fácil que assumir um time para si e saber quando você ganha e saber quando você perde então escuta que vou te falar a única verdade absoluta só se pode é torcer para o juiz ou para a bola porque o resto é se enganar é mentir é encenar e ora é claro que eu escolhi viver pela a bola e amar quando ela se desmente quando ela faz as vezes de um deus criando e destruindo escolhendo os escolhidos não perguntando por ninguém mas só com outros se pondo em movimento como você pôde morrer tão cedo meu amigo e que desperdício para um corpo se deixar morrer que nem um cavalo cansado como minha mãe ou que nem um bicho de abate como o careca e poxa vida deus porque nos amar e nos odiar tanto porque dar essa liberdade pra que as coisas nos odeiem sob a voz dos idiotas que gritam ordem são eles que eu sei que torcem pelo juizzzzzzzzz e inventam o lado de fora minhas pernas estão exaustas tortas mas esse cansaço não podia ser melhor agora essa dor de quem passa os dias correndo das leis dos soldadinhos da polícia só pra que quando nos cerquem eles vejam que a gente não fez nada de errado e que corremos só porque a gente quis mas pra quantas pessoas isso mesmo é possível hein porque aqui eles me perseguem primeiro mas lá fora eles primeiro atiram o paulinho o zé pedro o carlinhos eles bem sabem disso sabem que não é fácil meu deus não é mesmo fácil ser um pouco bom com o que você deseja se respeitar um pouco mais do que os outros te respeitam porque mudam as vidas e mudam os termos e esse barulho esse mundo respirante que me enche e que só eu escuto como eu escuto agora que eu tanto preciso não existe certeza que fique só entre as peles de um sujeito a gente constrói isso tudo juntos uns contra os outros uns pelos outros esse é o verdadeiro jogo e esse é o jogo que vive debaixo da casca do outro é ele que eu quero e é nele que eu acredito quando me lembro quando sinto dor quando deixo que alguém invada algum espaço vazio que se forma nas quinas do meu corpo esse é o verdadeiro jogo e zzzzzz enganar as formas ligar os pontos ser operário nessa fábrica de nada ou então colher o que surge nesta fazenda do vazio e sim os homens nos mandam levantar coisas mas imbecis babacas otários não sabem que é muito mais difícil erguer o nada dar contorno pro vazio é esse sim o jogo jefferson e eu sei que não tenho os seus olhos ou suas contas pra pagar mas é esse sim o jogo e aqui estão os meus dois pés esperando e nada nos resta além de

Soa o apito. O juiz autoriza.

Noções de elasticidade

Eu tinha quinze anos e um zero em redação quando cheguei em casa e, pelas matemáticas controversas da adolescência, o zero era muito mais relevante do que o quinze.

Naquele tempo, eu andava com o César para todos os lados, fazíamos tudo juntos, gostávamos dos mesmos filmes, líamos os mesmos livros e, muitas vezes, não sabíamos de onde surgiam algumas ideias que acabávamos discutindo por minutos ou por horas. Mas nunca pensaríamos que uma brincadeira de semanas antes pudesse se transformar naquela nota zero marcada em caneta vermelha e na chacota dos colegas. Não me lembro quem teve a ideia primeiro. O fato é que tínhamos imaginado algumas frases, cheias de advérbios e adjetivos, que poderiam ser inseridas em qualquer discurso ou texto quando quiséssemos dar a entender que falávamos de algo de que realmente entendíamos. Era um método grosseiro de esticar o texto até um ponto em que ele mesmo nos puxava de volta. Mas a ideia nunca mais tinha sido assunto e eu não imaginava que o César a pudesse usar na mesma redação que eu.

Tentamos argumentar, mas a professora não quis conversa. Na saída, eu perguntei o que iríamos fazer e ele respondeu que eu deveria me entregar. Mas se ele pensava que iria ficar com um dez e eu com zero, estava muito enganado.

– É o justo — ele disse — a ideia foi minha.

Eu tive vontade de dar um murro no meio da cara daquele desgraçado, mas me contentei em mandar ele tomar no cu. Voltei sozinho, esbravejando e tentando entender por que ele achava que a ideia era sua. Eu estava cada vez mais certo de que tinha sido eu a propor aquela brincadeira, semanas atrás. Pensei em ir até a casa dele e dizer tudo, pois naquele momento eu havia lembrado em detalhes do dia em que comentei sobre o método com ele. Mas como eu poderia provar? Era uma besteira, afinal. O pior de tudo, nesse caso, era o zero.

Só que o pior costuma durar pouco. E eu acabei me esquecendo da redação, do método e do zero quando cheguei em casa e recebi a notícia de que o vô Bigode tinha morrido.

Meu pai contou de uma maneira tão direta e eficaz quanto o infarto que meu avô teve ao sair do banho naquela manhã. Foi no início daquela Copa de 2010 e o vô estava muito ansioso: completariam 40 anos da conquista de 70.

O vô Bigode tinha seus 65 anos e quem o conheceu sabe que ele nutria alguns orgulhos esquisitos, dentre os quais, jamais ter falhado à promessa de manter o bigode até o final da vida. Não hesitava em contar a quem calhasse e ninguém sabe o quanto é verdade do que o vô Bigode falava (é preciso dizer que o seu dom de mentir era outro motivo de orgulho, e até havia os que brincavam que o bigode servia para esconder o nariz). De qualquer forma, ele dizia que o bigode tinha sido sua promessa caso a seleção ganhasse a copa de 70.

Ele me contou há alguns anos, numa tarde em que eu tentava sem sucesso driblar meu pai com uma bola de borracha no pátio de casa. Assim que eu cansei, ele me chamou para sentar ao seu lado.

– Você sabe quantos anos faz que eu tenho esse bigode? — passava o indicador e o polegar sobre os pelos, do centro para as beiradas. ­– Trinta e cinco!

Disse que a promessa se deu por causa do Rivellino, seu amigo de infância. Eu não fazia a menor ideia de quem era Rivellino e de quando essa infância havia sido, mas ele dizia que, todo final de semana, jogavam peladas pelas ruas e, em um desses jogos, meu avô inventou o elástico sem querer, quando errou a passada numa tentativa de drible e a bola acabou indo para o lado contrário. Todo mundo caiu na gargalhada e ele nunca mais conseguiu repetir a jogada. Tinha inclusive esquecido, até ver o Rivellino fazendo o elástico na televisão.

– Me senti plagiado quando vi — ele fingia rancor, balançando os braços. — Hoje ele diz que aprendeu do Sérgio Echigo. Mas o Sérgio Echigo foi justamente a vítima daquele primeiro elástico que eu criei.

Ele se divertia tanto que eu não conseguia levar aquilo a sério.

– O bigode é promessa ­– ele disse — mas é também uma forma de cobrar meus direitos autorais.

Não sei se ele o raspou alguma vez. Meu pai garante que não e, com exceção de algumas fotografias da juventude, eu nunca tinha visto o meu avô sem o bigode. O que não tinham me contado era o que ninguém, além da minha vó, dos médicos e de quem preparou o corpo, sabia. Pois ignoramos algumas coisas pela confiança no trabalho alheio. E nesse meio tempo, da casa para o hospital, para o necrotério, para o caixão, algo se perdia e ninguém pensou em promessas, se aquele corpo pertenceu ao inventor do elástico ou foi amigo de Rivellino. Pois, se havia uma coisa que eu não estava no lugar, além do corpo sem vida, era o bigode, totalmente raspado no rosto do meu avô.

Minha primeira reação foi de alívio. Eu tive certeza de que se tratava de um engano, de que aquele era o corpo de outra pessoa. Lembrei de um Natal da infância, quando ele apareceu vestido de Papai Noel, me encheu de presentes e, quando me pegou no colo, eu consegui ver o bigode negro e verdadeiro sob a barba postiça. Comecei a rir no velório e meu pai me reprimiu. Eu queria dizer que nós tínhamos sido enganados, que era uma brincadeira do meu avô. Mas todo mundo chorava e, instante a instante, eu reconheci as sobrancelhas, o cabelo e até pude encaixar o bigode ausente entre o nariz e os lábios colados. Senti o pescoço arder e as pálpebras tremerem. Se era mesmo o meu avô, e todos pareciam concordar, aquilo era um desrespeito completo. Fazia trinta e nove anos que o meu avô não tirava o bigode, quem tinha deixado aquilo acontecer? Meu pai quis me abraçar, mas eu corri para fora da capela. Não queria mais olhar para o caixão. Não conseguia aceitar que alguém tivesse raspado o bigode do meu avô, como se as promessas morressem junto com o corpo.

Estava escorado no muro do lado de fora quando vi César chegar. Ele me deu um abraço e disse que sentia muito. Contei sobre o bigode e ele começou a rir, o que me deixava mais nervoso.

– É só um bigode — ele disse, emendando outro assunto. — Depois me devolve o livro.

Eu não fazia a menor ideia do que ele falava, mas ele insistia naquela história, não podia ficar com uma nota zero, os pais o matariam. Os assuntos se misturavam tanto que eu não conseguia sequer formular um pensamento. E, sem perceber que eu não o compreendia, ele disse:

– Você não vai mesmo admitir, né?

Só lembro de ter dado um soco no nariz de César e de ser puxado por alguém que me levou novamente para dentro da capela.

Ficamos quase um mês sem conversar e ninguém admitiu a culpa, nem da briga, nem da redação. No fim, resolvemos esquecer e voltamos à amizade de antes, no ponto neutro de tensão de um elástico que retorna ao estado inicial.

Naqueles dias, visitei minha avó e ela me mostrou um álbum de folhas duras e rosadas, com fotografias da adolescência e juventude do meu avô. Nem sinal de bigode. Entre as fotografias, uma delas mostrava vários garotos enfileirados, como um time de futebol. Quase não o reconheci, mas ele estava lá, ao lado de um companheiro com traços orientais. Perguntei se eu poderia levar a foto comigo e a minha vó aceitou, muito satisfeita. Deixei o retrato alguns dias sobre minha escrivaninha e acabei guardando num álbum velho.

Anos depois, eu saí de casa e os álbuns ficaram por lá. Um mês atrás, voltei para comemorar meus vinte e cinco anos. Queria reunir alguns amigos e a minha mãe pediu para eu selecionar alguns retratos de infância para expor pela sala. Foi quando encontrei a fotografia do meu avô e a levei até o meu pai.

– Mas isso é uma relíquia! — ele disse. — Essa foto estava aqui o tempo todo? Acho que é a única do teu avô com o Rivellino — ele apontou para um garoto qualquer. Era verdade, então, que o vô Bigode conhecia o Rivellino?

Meu pai disse que ele mesmo havia encontrado com o Rivellino algumas vezes quando era menino. Depois, nunca mais. É quase impossível distinguir a verdade entre uma porção de mentiras. Durante muitos anos, achei que a história do Rivellino era inventada e que meu avô só havia encontrado uma forma de justificar o bigode.

Olhei outra vez para a fotografia. No canto esquerdo, estava Rivellino, agora eu sabia. Mas o que me chamou a atenção foi o menino japonês ao lado do meu avô. E eu percebi a verdade que ele sempre tinha escondido entre uma e outra mentira. Eu tinha nas mãos a única prova daquilo que nunca acreditamos. E ali quase pude ver meu avô em um domingo, as pernas pouco hábeis para driblar o marcador e, como o prenúncio de qualquer destino, conseguindo enganá-lo pelo próprio equívoco, vendo a bola ir e voltar, às gargalhadas de todos, como um grande zero em tinta vermelha.

Voltei quase eufórico para o quarto e comecei a revirar minhas antigas tralhas. Estojos, borrachas pela metade, apontadores ainda sujos. Em uma gaveta, encontrei um caderno. Dentro do caderno, uma folha solta: a redação que exibia a nota zero em letra de forma e tinta azul (é curioso como a memória nos engana: vermelho era apenas o círculo ao redor da nota). Era uma redação muito mal escrita e eu lembrei de César na hora. Guardei o papel para mostrar para ele na festa de aniversário no dia seguinte. Quando quis guardar o caderno, no entanto, notei um livro quase intacto, que eu não lembrava de ter lido. O título em dourado era muito chamativo: Frases flexíveis: como falar do que não se sabe. Tinha anotações por todos os cantos. E a letra, sem dúvidas, era de César.

Aquele gol

Te viene una cosa adentro y tenes que llevar la redonda” (Mario Benedetti)

Sei que vai parecer estranho, mas às vezes penso que era melhor não ter feito aquele gol. Só que eu não tive escolha. Repara. A bola veio forte, aparei com o lado de fora do pé e ela ficou bem na minha frente. Era só eu e o goleiro. Deu pra ver ele chegando com aqueles olhos esbugalhados, correndo como quem se caga, como se a história já não estivesse escrita. É claro que estava. Eu podia fazer diferente? Não podia.

Parece que vem uma coisa por dentro e o cara sabe que vai fazer o gol.

Só chutei. Os caras ainda vêm dizer que eu peguei mal na bola, que o goleiro quase defendeu. Jogaram onde? Claro, pra vocês é fácil ver as coisas da arquibancada. Quem jogou futebol sabe, assim é o futebol.

Eu vi tudo, estava olhando o lance. Focado, como o pessoal diz. Dei de chapa. Assim, pá! Garotinho, não pega essa bola. Não bati errado nunca, rapaz. O goleiro até ficou desempregado, mandaram embora depois. Eu bati bem, bati bem.

Não sei por que falam isso, ou até sei. Cheguei no clube com uma banca que eu vou te contar. Campeão, até pra seleção me chamaram. Ficaram anos tentando me contratar. Quando eu finalmente vesti a camiseta, não sei o que aconteceu. Pesar ela não pesava. Mas vai saber. Às vezes não acontece. Esse é o futebol.

Aquela coisa de ser o maestro, sabe? Fazer o time jogar e saber a hora de segurar. Fora o passe certo, o chute de fora da área. E a velocidade. Não acontecia nada disso. Futebol é assim, quando as coisas não dão certo é complicado. E aí quando começa o treinador a não te colocar mais no time titular, já era. Quando eu entrava, a torcida ainda pegava no pé. Se era coisa do apelido, da minha origem, eu já não sei. Mas o pessoal lá não gostava de mim.

Foi por isso tudo que nem eu esperava o treinador me chamar naquele jogo. Eu já não tinha entrado no primeiro, ia entrar logo na decisão? No lugar do capitão, ídolo deles, que tinha machucado. E aos 31 minutos do segundo tempo, fui saber depois. Na hora a gente nem pensa. O time estava acertado, fechadinho, mas não ameaçava mais. Acho que o treinador acreditou que dava pra ganhar e me chamou pra completar o serviço.

Eu vou mentir se contar que pensei em muita coisa quando vi aquela bola voando e parando na intermediária deles, três contra dois. Eu só corri. Mas corri sabendo o que tinha que fazer. Também não é assim. Pra jogar futebol tem que ter inteligência, talvez só não seja essa inteligência de vocês. Eu corri e corri para o lugar que eu sabia que tinha que correr.

Eu sabia que a bola ia vir em mim. E ela veio forte, dei com o lado de fora do pé. Não era o que o goleiro esperava, de repente ele achou que vinha por baixo, no cantinho. Chegou a tocar na bola, mas nunca que ia pegar, até perdeu o emprego depois disso. Eu bati bem, bati bem. Foi um golaço, o gol mais importante da história do clube e o maior gol da minha carreira. Pra errar, só se eu quisesse.

Às vezes eu queria ter errado.

Ou, sei lá, então que o passe viesse errado. Aí não seria culpa minha. Passar pro outro companheiro ele não ia. Eu já disse, aquela bola era pra mim. A gente treinava aquilo. É estranho, mas às vezes eu penso. Se tivesse mandado aquela bola por cima do gol, não ia ficar tão feio. Iam me avacalhar pelo resto da vida, me xingar, mas pelo menos seria pelas costas. Pelo menos iam me deixar quieto.

Mas não. Fiz o que tinha que fazer. Quem jogou, sabe. Ou somos amadores, ou somos profissionais.

Virei o cara de um gol. Aquele gol. A cidade parou pra nos ver, aquele mundaréu de gente nas ruas, vi um monte de cartaz me pedindo perdão. Vão tomar no cu, com todo respeito. Eu era bom de bola, maestro de time campeão. Achei que depois ia ganhar moral, quem sabe virar titular. Era o justo, não acha? Não acharam. Fui emprestado e nunca mais voltei.

A não ser para falar daquele gol. É isso que a galera quer, não é? Eu venho aqui, vocês me pagam uma cerveja e eu conto que a bola veio forte, eu dei de chapa, não bati errado não, foi um golaço que fez o goleiro perder o emprego.

Quê? Não conseguiu gravar?

Busca uma lá que eu conto de novo.

Resultado final do Grupo C

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