A(paris)ções #4: E o Jeitinho Brasileiro?

Entendendo as particularidades de nossa cultura pelo olhar de uma francesa em BH

Mariana Prates
QUARANTENADA
8 min readJul 29, 2020

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Vista do Edifício Niemeyer na Praça da Liberdade, em Belo Horizonte. Fonte: arquivo pessoal.

Até agora, este incrível relato enclausurado já passou por três A(paris)ções, no intuito de descobrir referências da terra dos Francos em um cotidiano belo-horizontino. Para quem não tem a memória muito boa, vamos cá para um rápido lembrete:

  1. A Cara da Riqueza: sobre o apreço brasileiro em colocar nomes francófonos nos estabelecimentos, porque temos em nosso imaginário que tudo que é francês é chique;
  2. Cara de Um, Focinho do Outro: sobre as inspirações parisienses (nomeadas por mim de Raio Afrancesador) adotadas pela Comissão Construtora de Belo Horizonte, que podemos encontrar até hoje pelos quatro cantos da cidade;
  3. Na Esquina do Paraíso: um paralelo entre a Campos Elíseos de Paris e a Campos Elíseos belo-horizontina, que apesar de bem diferentes, ainda possuem pontos curiosos em comum.
Localização de Toulouse, na França. Fonte: reprodução/Google Maps.

Depois de tanto escarafunchar a França no Brasil, fiquei curiosa sobre o contrário: e o que teria uma pessoa francesa a dizer sobre Belo Horizonte? Deve render reflexões interessantes. Sendo assim, decidi entrevistar minha professora de francês, Amandine, que mora na capital mineira mas vem lá de Toulouse, ao sul da França.

Antes de conhecer o Brasil, ela já cursava graduação em Letras/Português e fazia aulas de Capoeira em seu país natal, o que permitiu o contato com nossa cultura desde o solo europeu. Em 2012 , Amandine visitou o país pela primeira vez como intercambista, e em 2016, estando à época em um relacionamento com um de nossos conterrâneos, desceu no Aeroporto de Confins com ganas de fixar moradia por aqui.

Toulouse, cidade natal da Amandine. Foto: dicasparis.

Além de Belô, ela já morou pelos lados de Pernambuco, do Mato Grosso do Sul e até do Amazonas, o que lhe permitiu ter uma visão ampla das particularidades do país. Sendo assim, foi possível listar algumas características que podem surpreender (ou confundir) marinheiros de primeira viagem que decidam se aventurar pelas nuances culturais de um povo brasileiro.

Desconfiados, mas não tanto

Na visão da Amandine, uma diferença positiva que sentiu por aqui foi o fato de sermos pessoas falantes. E concordo: brasileiro gosta de conversar. Mesmo nós, mineiros, conhecidos nacionalmente por nossa discrição, temos nossos momentos tagarelas. No ônibus, no supermercado, no meio da rua; é tão comum puxarmos assunto despretensiosamente com desconhecidos, que é estranho pensar que a famosa conversa de elevador não é uma característica universal da humanidade.

Isso significa que será mais fácil para um estrangeiro se entrosar com um grupo de brasileiros do que com, digamos, um grupo de russos, que têm uma cultura muito mais fechada a desconhecidos. Porém, esse nosso lado extrovertido também pode confundir quem vem de fora, porque apesar de termos maior facilidade em nos aproximar dos outros, isso não significa que sejamos (ou queiramos ser) amigos de todas essas pessoas com as quais somos solícitos, falantes e sorridentes.

Por isso, um choque cultural sentido por minha prof foi no que diz respeito às relações interpessoais. “Aqui em Minas há uma cultura de desconfiança mais próxima da europeia, então as pessoas se abrem com menos facilidade. Mas ainda há essa simpatia de fachada, que eu acho um pouco superficial. Igual quando alguém fala ‘qualquer coisa vamos marcar’ e nem te dá um número de telefone! É impossível a gente marcar assim!”, ela afirma, dizendo que isso gerou certas crises existenciais em seus primeiros anos por aqui, na dúvida se teria amigos de verdade ou se as pessoas estavam apenas sendo simpáticas.

Admito que depois de ouvir o outro lado, comecei a reparar em todas as vezes que digo “qualquer coisa a gente combina”, sem realmente ter a intenção de combinar algo com meu interlocutor. Resultado: foram muitas!

Sem cerimônias, por favor

Para ilustrar o próximo tópico, preciso passar brevemente por uma dificuldade que tenho com a língua francesa: a formalidade. Ela é levada tão a sério, que eles têm duas formas de dizer você. A primeira, tu, é usada em situações informais, como entre jovens, familiares e amizades. Já a segunda, vous, é usada fora deste círculo de intimidade, no ambiente de trabalho ou com desconhecidos. Outros idiomas fazem a mesma separação, como em espanhol (tú / usted), alemão (du / Sie) e russo (ты / вы).

Apesar de existir no português maneiras formais de se dirigir a alguém (“o senhor” ou “a senhora”), no geral nós somos mais descontraídos. Chamamos a maioria das pessoas pelo prenome, sejam professores universitários, colegas de trabalho ou mesmo chefes de Estado. Como a Dilma! Independentemente se a pessoa aprova ou não sua figura política, todos a chamam assim: Dilma. Será que algum francês já pensou em chamar o Macron pelo primeiro nome? Algo como “ah, você viu o novo pronunciamento do Emmanuel?”. Eu acho que não.

Pois bem, enquanto eu peno diariamente para ser formal com as pessoas nas aulas de francês, descobri que nossa descontração também pode soar curiosa para quem vem do outro lado. Como professora em Belô, Amandine acredita que nós separamos diferente as vidas pessoal e profissional, impondo menos barreiras entre as relações hierárquicas do trabalho. “No Brasil nós podemos muito bem sair para beber com nossos estudantes, algo que na França seria super bizarro. Lá, se você fosse sair para um bar com sua professora, é porque de alguma forma ela se tornou sua amiga de verdade”, conta ela.

Café da… manhã?

Enquanto os ingleses são conhecidos pelo chá das cinco, nós temos o famoso cafezinho — seja da manhã, de depois do almoço, do lanche da tarde ou até da hora de dormir, para os corajosos muito bem adaptados aos efeitos da cafeína, como meus pais. Essa “bebeção” de café foi outra surpresa para Amandine, que também acha o costume do lanche da tarde interessante, algo como um “segundo café-da-manhã às seis da tarde”.

Ainda no tópico alimentação, ela diz que não foi difícil aderir aos costumes locais, feito ao arroz e feijão de cada dia. Apesar de bem diferentes dos franceses, a variedade de pratos típicos mineiros (e de outras regiões pelas quais passou) facilitaram bastante a adaptação. “Sinto falta de algumas comidas, como as tortas, queijos e croissant que não encontro por aqui. Mas eu adoro a culinária brasileira, então não sinto tanto assim”, conta.

Belo Horizonte Fashion Week

Outra surpresa, desta vez sobre o vestuário. Mas não pelos motivos que nós imaginaríamos. “Antes de vir para Minas eu me acostumei às cidades litorâneas, onde todo mundo anda de chinelo Havaianas e shorts. Mas em Belo Horizonte não é bem assim, ainda mais no ambiente de trabalho”, conta ela. Curiosamente, depois de uma temporada na região costeira, o código de vestimenta (mais) engessado dos belo-horizontinos foi quase um choque cultural reverso. “Essa liberdade para se vestir que havia nas outras cidades era algo do qual eu tinha gostado muito no Brasil. Chegando em BH me deparei com o mesmo que havia na Europa, onde as pessoas julgam mais pela aparência”.

Como belo-horizontina não posso julgar o nível de assiduidade vestimentária de meus próprios conterrâneos, mas já ouvi a mesma coisa de amigos que vieram do interior ou de outros estados. Além disso, segundo meu pai, que é representante comercial de uma empresa de cosméticos, o público de Belo Horizonte é considerado tradicional no que diz respeito à aparência. Certos tipos de tintura (verde, azul, roxo, laranja, rosa choque…) que sempre chegaram aos montes em salões de São Paulo, estão apenas agora ganhando espaço no mercado daqui.

Amandine diz ter descoberto “tarde demais” o quanto os belo-horizontinos levam a sério as arrumações para sair: “Eu até via que meus amigos estavam mais chiques que eu, mas pensava que era algo deles. Só depois percebi que era uma convenção daqui, de que para sair, mesmo que para comer em um rodízio, as pessoas usam roupas elegantes, se maquiam…”, conta.

Essa tal liberdade…

Uma surpresa triste dentre todas, foi com relação à segurança pública. No Índice Global da Paz de 2020, o Brasil é visto como pouco seguro, em 126º lugar dentre os 163 países analisados — uma queda de três posições desde o levantamento anterior. A piora no índice se dá pelo altos índices de encarceramento, altas taxas de homicídios e confrontos envolvendo o tráfico de drogas.

Apesar de o último Atlas da Violência (2019) colocar Belo Horizonte como a quinta capital com o menor índice de mortes violentas do país, sabemos que a insegurança ainda é uma preocupação recorrente para habitantes e autoridades locais. Não pude encontrar os custos atuais da criminalidade em BH, mas dados do Atlas indicam que a violência custou cerca de 297 bilhões de dólares (um trilhão, cento e cinquenta bilhões de reais no câmbio da época) para o Governo Brasileiro em 2018.

Sendo assim, a insegurança se tornou também uma questão no dia a dia de Amandine após decidir imigrar. “Não poder caminhar sozinha na rua à noite foi algo que me frustrou de início. Eu andava muito a pé ou de ônibus, então sempre precisava de alguém para me acompanhar ao voltar para casa tarde. Desde que descobri o Uber eu tenho muito mais liberdade, apesar de não ser cem por cento”, conta.

Mas ela lembra que também não haveria algum lugar totalmente seguro na França. “Em determinados bairros de Paris, também não seria nada aconselhável para uma mulher andar sozinha à noite ou de madrugada”, compara ela, quebrando a visão hiper-romanceada que alguns brasileiros têm da capital europeia.

Assim como o Brasil, o país de Amandine registrou queda de três posições no Índice Global de Paz, tendo saído de 63º em 2019 para 66º lugar em 2020.

Mas afinal, por que morar no Brasil?

Quando indagada sobre o motivo que a trouxe até aqui, minha prof respondeu que foi uma afinidade cultural. “Tudo começou com a Capoeira, depois veio a música e a literatura brasileira, e então os hábitos e a convivência das pessoas. Desde meu primeiro intercâmbio em 2012, me identifiquei com a cultura e quis vir morar aqui”, conta.

Sobre Belo Horizonte, ela cita dois aspectos que podem até parecer contraditórios, mas explicam bem a atmosfera da cidade: o aspecto urbano da cultura de rua, como o Circuito de Arte Urbana e o Duelo de MC’s do Viaduto Santa Tereza, considerado uma das principais batalhas de rap freestyle do Brasil; e o aspecto natural — BH pode não ser mais tão arborizada quanto nos tempos em que foi apelidada de Cidade Jardim, mas continua a poucas horas de distância de reservas naturais em Brumadinho, Nova Lima ou Serra do Cipó.

Pois bem, depois de tanto falar das diferenças, há alguma semelhança? “Dentre as cidades nas quais já morei no Brasil, BH é a que mais lembra a cultura francesa. Mas claro que, ainda assim, é diferente!”. Ou seja, até na hora de se parecer com alguém, o mineiro faz isso de seu próprio jeitinho especial.

Fontes

- Amandine Cholez, cidadã francesa e professora do idioma francês em Belo Horizonte. Entrevista realizada em 03/05/2020.

- Atlas da Violência 2019: Retratos dos Municípios Brasileiros, 07/2019. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Acesso em 18/07/2020.
- Índice Global da Paz 2020, 06/2020. Institute for Economics & Peace. Acesso em 19/07/2020.
- Estudo: custo da violência equivale a percentual do PIB gasto com educação, 10/06/2019. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Acesso em 19/06/2020.

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Mariana Prates
QUARANTENADA

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