Metacrônica #2
Ou “parece ironia… querer fazer intercâmbio no século da pandemia”
Escuta aqui, quando eu mencionei lá na Primeira Metacrônica (ou seja, a crônica sobre a crônica) que a incerteza do Tempo é um dos deuses mais bonitos, eu não esperava que o Tempo fosse me presentear com uma pandemia.
Lembro como se fosse hoje as menções iniciais ao novo Coronavírus, Covid-19, em janeiro de 2020. Uma doença até então misteriosa que causava sintomas comuns a outras gripes, mas que se alastrava rapidamente e podia ser mortal. Os jornais comentavam o surto em Wuhan, na China, cidade onde — imagine — o irmão de um amigo fazia intercâmbio. Foi o primeiro de nós a experienciar a quarentena, ainda em solo chinês.
Ao final de janeiro, um mês após a primeira morte em decorrência da doença na China, mais de trinta mil casos e oitocentas mortes haviam sido confirmadas no país. O surto foi tanto que, no início de fevereiro, o Governo Federal decidiu por meio de uma operação da Força Aérea Brasileira, repatriar nossos compatriotas presos na Ásia — inclusive o irmão desse colega em questão, que fez até ponta nas filmagens do Fantástico.
Quatro meses depois, aqui estamos, o segundo país do mundo em casos de Covid-19, atrás apenas dos Estados Unidos, segundo relatório diário da Organização Mundial da Saúde. Neste dia em que lhes escrevo, 03 de junho de 2020*, mais de 31 mil pessoas já faleceram de Coronavírus no Brasil. Para entender a dimensão deste número, fiz algumas pesquisas: 31 mil é o número aproximado de habitantes da cidade de Pompéu, região Central de Minas Gerais, onde meus avós moraram quando eu era criança. É também a quantidade de alunos de graduação da UFMG. Sempre que confiro as estatísticas, faço uso de comparações para tornar as informações mais palpáveis e evitar que as vítimas se tornem apenas números em um relatório.
Apesar da ironia em se escrever um relato sobre as maravilhas do imprevisível semanas antes da primeira (e única, espero) pandemia do século 21, preciso dizer que é um exemplo claro do quanto nós estamos à mercê do destino. Ninguém imaginava que um vírus iria surgir em pleno 2020 e travar o mundo inteiro em menos de três meses. Não é uma surpresa bonita, como eu esperava, mas continua sendo inacreditável.
Até início de março, quando surgi com a ideia para essas crônicas, o cotidiano fazia parte de um mundo completamente diferente. Eu estava alternando o período na faculdade com buscas frenéticas sobre como é a vida e os estudos em Paris. Meus amigos combinavam de se encontrar todo fim de semana, mas por algum motivo, estávamos todos sempre atarefados demais e os encontros nunca saiam. Meu irmão anunciou que iria trancar a graduação em Engenharia Elétrica e passar seis meses em São Paulo, desenvolvendo projetos pessoais em marketing digital. Uma decisão que muitas pessoas acharam perigosa, tendo em vista que ele já deveria ter se formado a uns três anos atrás. Mas ninguém sabia que o mundo estava no começo do fim, de forma que Felipe manteve seu posicionamento teimoso e embarcou para Sampa três dias antes de a Federal soltar o comunicado de suspensão das aulas por tempo indeterminado.
Da mesma forma, a Diretoria de Relações Internacionais da UFMG suspendeu as mobilidades internacionais e o envio de documentos para as universidades estrangeiras até segunda ordem, o que fez as buscas frenéticas perderem o sentido. A Prefeitura de Belo Horizonte decretou quarentena, e meus amigos sempre tão atarefados, não podem se encontrar mesmo não tendo mais tarefas para fazer. E Felipe ficou preso lá em São Paulo, coitado. Mande notícias, Ipe. Não se esqueça de nós.
Bom, isso modifica um bocado os meus processos. A ideia inicial destas crônicas era buscar referências sobre a França em Belo Horizonte, e depois, quem sabe, buscar alguma sobre BH lá na França também. Só que a única viagem possível agora é do quarto para a cozinha, o que torna toda a jornada da apuração bastante limitada. É um pouco frustrante, mas apesar de tudo, não vejo motivos para reclamar. Do jeito que as coisas andam no noticiário, o adiamento de um sonho não é um sofrimento tão insuportável quanto poderia parecer.
Até porque, quando a vida lhe dá limões, você faz caipirinha. Partindo do mesmo pressuposto de que tudo pode se tornar uma crônica, uma (nem tão pequena) mudança como essa não impede minha jornada. A imprevisibilidade do gênero permite isso. Ainda bem! Se isto daqui fosse um noticiário, já poderia aprontar um desespero porque a pauta caiu.
Pois é isto, amigos. Eu nem sei mais se vou para Paris. O que não significa que eu não possa descobrir Paris. Dá para desbravar um mundo inteiro de dentro de casa, e a melhor parte: eu nem vou precisar comer escargot.
Vivendo e se adaptando, é assim que deve ser.
* Data de atualização da crônica, postada originalmente em 19 de maio de 2020.
Fontes:
Estatísticas Covid-19
- Painel da OMS sobre o Novo Coronavírus, Organização Mundial da Saúde (de atualização diária). Acesso em 03/06/2020.
- Painel Coronavírus Brasil, Ministério da Saúde do Governo Federal. Acesso em 03/05/2020.Operação Regresso à Pátria Amada Brasil
- Página da oficial da Operação, Força Aérea Brasileira. Acesso em 02/06/2020.
- Operação Regresso: missão que fará repatriação de brasileiros já está na China, Agência Brasil (09/02/2020). Acesso em 02/06/2020.