A utopia por uma Internet de todos

A internet está se transformando numa floresta escura e silenciosa

Bruno Oliveira
Reflexões
6 min readMay 7, 2020

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Fermi com certeza foi um dos maiores físicos do século XX, além de importantes contribuições para as propriedades da matéria e da reação nuclear em cadeia, as suas ideias sobre a existência de vida em outras planetas geraram o que conhecemos por paradoxo de Fermi: considerando todo o tamanho do universo e considerando a existência de bilhões de outros planetas, estrelas e sistemas similares ao nosso em todo esse espaço, onde estão as outras vidas? Nessa linha, um dos argumentos probabilísticos mais utilizados é a equação de Drake [1], uma formulação que tenta estimar o número de comunidades como a nossa no universo. Entre previsões otimistas e pessimistas, há quem imagina que essa população está entre 1000 a 100.000.000 de planetas, ou em alguns estudos [2] apontam que cerca de 1% das estrelas do universo teriam condições de terem planetas similares a Terra em suas órbitas.

Quantas vidas existirão no Universo? — [extraído de Gizmodo]

Mas esse não é um artigo sobre astrofísica, o que nos interessa sobre o paradoxo de Fermi é a hipótese: se existe vida lá fora, porque ela ainda não apareceu? Para o chinês e escritor de ficção científica Liu Cixin [3], isso acontece porque o universo seria uma grande floresta negra, e quando entramos nela, encaramos um grande silêncio. Cada canto da floresta fica um bolsão de vida, cada um na sua, para se proteger dos predadores e manterem sua própria existência.

A escuridão da floresta é cheia de vida. Está quieta porque é durante a noite que os predadores saem. Para sobreviver, os animais permanecem em silêncio — Yancey Strickler

Ilustrações de Gustavo Doré para “A Divina Comédia” [extraído de GGN]

A metáfora da Floresta Negra na Internet

Da mesma forma que Liu Xiu, o americano Yanvey Strickler (um dos fundadores do KickStarter) também trouxe a ideia de floresta negra para outra realidade: a Internet [4]. Para ele, como a Internet se tornou um ambiente hostil, tanto para a manada de trolls quanto para a ditadura do politicamente correto, pequenos grupos (que logo podem se tornar gigante) se reúnem cada vez mais em canais privados: whatsapp, podcasts, grupos fechados, etc. Vivem suas vidas, positiva ou negativamente, sem estar em contato com a alta exposição e opressão do mainstream da Internet. Nessa reclusão, se aliam a grupos específicos, das mais diferentes ideologias, a ponto de serem influenciadores, mas principalmente, influenciados pelo comportamento de manada. Acabou o encantamento com a Internet, e isso ficou evidente a partir das eleições de 2018, a Internet não é um ambiente de felicidade, mas um campo de batalha em uma floresta escura, cheio de predadores, e muitas vidas espalhadas na escuridão.

Existem portanto muitas Internets, há muita vida além da nossa bolha e do que há no maintream da rede. Apenas nos canais mais restritos da Internet é onde pode ser possível encontrar a paz e aliviar os conflitos psicológicos, por isso eles estão crescendo cada vez mais — e decidindo eleições. Portanto, simplesmente se afastar do mainstream para encontrar um pouco de paz, pode ser benéfico a curto prazo, mas com o passar do tempo vai te tirando cada vez mais dos debates públicos (que por enquanto ainda ocorre no Mainstream) e nos colocando cada vez mais em bolhas.

A distinção política principal entre o senso comum e a lógica é que o senso comum pressupõe um mundo comum no qual todos cabemos e onde podemos viver juntos, por possuirmos um sentido que controla e ajusta todos os dados sensoriais estritamente particulares àqueles de todos os outros; ao passo que a lógica, e toda a auto-evidência de que procede o raciocínio lógico, pode reivindicar uma confiabilidade totalmente independente do mundo e da existência de outras pessoas — Arendt (A Dignidade da Política)

Nova Sociedade Virtual

Na economia, o mercado financeiro, entre outros, abraçou a virtualização — a moeda passou a ser virtual, e suas relações também. Em relação ao trabalho, dois caminhos se abrem aos investimentos para aumentar a sua eficácia: a reificação da força de trabalho pela automatização e a virtualização das competências por dispositivos que aumentem essa inteligência coletiva.

Promete-se a utopia da democracia eletrônica, do saber compartilhado e da inteligência coletiva. Mas nada será obtido além da dominação de uma nova “classe virtual”, composta pelos magnatas das indústrias do sonho (cinema, televisão, games), do software, da eletrônica e das telecomunicações, auxiliados pelos criadores, cientistas e engenheiros que dirigem o canteiro de obras do ciberespaço, sem esquecer dos ideólogos ultraliberais ou anarquizantes e os grandes pais do virtual, que justificam o poder dos precedentes — Kroker e Weinstein

Seria a visão do ciberespaço como um extensão de um império ciberfinanceiro (ou tecnofascista para alguns) — de uma ideia neoliberal capitalista, de uma sociedade que esta revolucionando seu modo de fazer economia, cultura, de relações sociais e até de fazer guerras. Essas ideias podem ser vistas em Raoul Vaneigem e Guy Debord na A Sociedade do Espetáculo, ou em Baudrillard na A Sociedade do Consumo, para eles há uma inversão de valores: a máquina representa o homem, e este passa a ser o elemento virtual do sistema (lembra Matrix, das irmãs Wachowski). Mas há quem pense nesse ciberespaço como um ambiente em construção, que é comunitário, transversal e recíproco — que não é apenas uma grande televisão virtual, pois não se trata apenas de conteúdos gerados de grandes centros, mas a difusão de informações e interações partem também das periferias e daqueles que estejam no seio de uma situação. Cabe a cada um decidir e entender o que há de positivo e negativo nessa nova realidade.

O filósofo Pierre Lévy e a ressignifcação da Internet

Ciberutopia

Em 2011, o livro Net Delusion (sem versão brasileira) criticava o que chamava de ciberutopia: uma crença utópica de que o acesso à Internet iria fortalecer a democracia — na verdade, o autor (Evgeny Morozov) entendia que a tecnologia poderia servir muito bem ao totalitarismo.Hoje, a comunicação não é como era antigamente, onde o ato de mandar uma carta continha o único objetivo de se comunicar. Hoje, o ato de comunicar tem valor econômico, as pessoas envolvidas na comunicação, o meio utilizado e o conteúdo da mensagem tornaram-se produtos. Morozov diz que a democracia está em perigo justamente por essa mudança radical na forma em que produzimos e consumimos informações — hoje, seguimos a lógica de negócios das empresas de tecnologia e comunicação: coletar dados. E isso muda tudo: os dados ajudam algoritmos extremamente sofisticados a tomar decisão e influenciar pessoas de forma mais efetiva — seja para te recomendar uma série no Netflix, recomendar páginas para seguir em redes sociais ou escolher seu novo presidente.

Se em algum momento pensamos que a Internet iria nos trazer um acesso infinito a informação, na prática nos apresentou um mar de ruídos e algumas iscas para sermos usados em massas de manobras e sermos dominados por nossos preconceitos.

É um equívoco dizer que hoje estamos mais conectados. O que existe hoje seria um capital global que se beneficia dessa troca de produtos mais baratos entre os países, entre outras vantagens econômicas. Um muçulmano na Arábia Saudita não está mais próximo de um brasileiro só porque ambos podem trocar e-mail entre eles de graça. Na prática, a Internet serve para tornar aparente aquilo que antes parecia ser invisível — como nossos preconceitos. Nunca fomos tão exposto a diversidade. Mas se por um lado isso pode dar a impressão de que isso seria suficiente para nos aproximar e ter empatia pelas outras pessoas, na prática se mostra o contrário. Robert Puttman, em estudo, apresenta que a vivência com a diferença, ao invés de nos unir, incentiva-nos ao isolamento, em um processo contínuo de tribalização da sociedade — e por conseguinte a ideia do eu contra eles. Pessoas em silos possuem idiossincrasias muito marcantes e fáceis de detectar na coleta de dados, o que torna alvos fáceis de manipulação.

O comportamento de manada e a derrubada do pensamento

Referências:

[1] Instituto SETI. Drake Equation Index.
[2] Erik A. Petigura, Andrew W. Howard, and Geoffrey W. Marcy. Prevalence of Earth-size planets orbiting Sun-like stars. PNAS. 2013.
[3] Liu Cixin. O problema dos três corpos. 2016.
[4] Yancey Strickler. The Dark Forest Theory of the Internet. 2019.

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Bruno Oliveira
Reflexões

Auditor, escritor, leitor e flanador. Mestrando em TI, tropecei na bolsa de valores. Acredito nas estrelas, não nos astros. Resenho pessoas e o tempo presente.