SUS: Até qual ponto vale mesmo a pena defender?

É imprescindível democratizar o conhecimento sobre o Sistema Único de Saúde para toda a população, a fim de entender e honrar a luta daqueles que tornaram a saúde um direito no Brasil

Isabela Siyao Chen
Revista Brado
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7 min readJul 24, 2020

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Logo da campanha para a valorização do SUS escrito “Orgulho SUS”
O Dia do Orgulho SUS é uma campanha que ocorre no dia 21 de março em prol da preservação do sistema. Imagem: CONASEMS

O conceito de saúde é algo em constante transformação e de difícil definição até para aqueles que trabalham em prol dela. Segundo Organização Mundial da Saúde (OMS), em uma publicação elaborada em 1947, a saúde é entendida como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”, contudo os fatores externos , como as relações com o meio ambiente e com os demais agentes, não são considerados, tornando abstrata o significado de saúde.

No início do século XX, como pode ser visto no filme documentário “Políticas de Saúde no Brasil: Um século de luta pelo direito à saúde”, o país foi assolado por diversas epidemias, a qual fez vítima a maior parte da população não elitizada, que só dispunha da filantropia, realizada pelas Santas Casas, como opção de acesso aos cuidados básicos de saúde. Tais crises tiveram consequências imediatas no país, por meio do declínio das exportações que se negavam a aceitar os produtos brasileiros, a exemplo do café, devido à baixa produção e à redução de mão de obra trabalhadora, vindo a afetar a economia com o aumento das taxas nacionais e redução da imigração. Além disso, o Brasil se via em uma instabilidade polícia e social causada, respectivamente, pela Coluna Prestes em 1924 e a Revolta da Vacina de 1904, as quais favoreceram a precarização do sistema de saúde da época.

Central de atendimento de uma unidade de saúde dentro do SUS com uma placa escrito SUS
Imagem: Arquivo/EBC

Em 1988, após inúmeras manifestações, o Sistema Único de Saúde foi criado pela Constituição Federal Brasileira e formalizado em 1990, com a Lei 8.080 ou Lei Orgânica da Saúde, na qual ficou determinado que é dever do Estado garantir a higidez para toda a população brasileira, regulando e estabelecendo princípios, diretrizes e objetivos do SUS, dando origem a um sistema de referência internacional no setor das políticas públicas, com estudos e modelos replicados em vários países. Além do SUS, outra referência mundial é o sistema de saúde britânico, o National Health Service, criado em 1948, cujos princípios contribuíram para a construção identitária do modelo brasileiro, sendo ambos aclamados por suas atuações em meio à pandemia causada pelo Covid-19.

Porém ainda há uma discrepância no reconhecimento da importância e necessidade de preservação do sistema de saúde entre ambos os países. No Brasil, apesar da notável e exemplar atuação dos profissionais da saúde durante a maior pandemia do século XXI, há um forte movimento político que aos poucos desmantela o direito que custou anos para alcançar o patamar atual, através de projetos como a Emenda Constitucional (EC) 95/2016, do Teto dos Gastos, apresentada como Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241 e PEC 55, aprovada em 2017 durante o governo Temer e endossada pela gestão Bolsonaro, que congela por 20 anos os investimentos nas áreas da saúde e educação, por exemplo, estimando uma perda de R$ 20 bilhões de orçamento destinado ao SUS, somente em 2019. Enquanto isso, o sistema britânico, que atua há 72 anos, apesar de seu sucateamento, é reconhecido e valorizado por seus governantes, como visto na declaração do primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, em 12 de abril de 2020, ao dizer que “o NHS é o coração pulsante de nosso país. É o melhor que esse país tem. É invencível. É potencializado pelo amor”, após receber alta do hospital em que foi internado devido ao novo coronavírus.

Ao comparar ambos os sistemas, o SUS fica em desvantagem por não ser o único sistema vigente no Brasil, tendo a presença do sistema de saúde suplementar, cuja modalidade se consiste na operação de planos e seguros privados de assistência médica à saúde, na qual sua existência dificulta os interesses e a luta por melhorias na manutenção do sistema público.

Manifestação diante da sede do governo inglês contra os cortes no Sistema Público de Saúde NHS.
Manifestação diante da sede do governo inglês contra os cortes no Sistema Público de Saúde NHS. Imagem: NHS-The Telegraph site

Mas, afinal, por que temos que defender o SUS?

O SUS é regido por 3 princípios: a universalidade, ao atender a todos, independente de sua raça, condição social, sexo, ocupação ou outras características sociais ou pessoais; a equidade, com o objetivo de diminuir as desigualdades, pois, apesar de todos possuírem o direito aos serviços, as pessoas não são iguais e, devido a isso, deve-se respeitar a distinção de suas necessidades, investindo onde a carência for maior; e, por fim, a integralidade, responsável por entender os indivíduos como um todo, atendendo a todas as suas necessidades. Com esses 3 princípios, o SUS é o único sistema de saúde público do mundo que atende um país com mais de 200 milhões de pessoas de forma gratuíta e universal, tendo cerca de 90 milhões de pessoas cadastradas nos serviços da atenção primária, em 2019.

Segundo o Mapa Assistencial, publicado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), foram realizados por meio do SUS cerca de 1,57 bilhões de procedimentos somente em 2018, nos quais constam consultas, exames e internações. Esse número representa uma crescente de 4,1% comparando-se à totalidade dos mesmos segmentos realizada em 2017 com 1,51 bilhões.

O SUS é o principal responsável pelo atendimento da população rural, tendo como exemplos as Equipes de Saúde Fluvial, as Unidades Básicas de Saúde Fluviais, os Subsistemas de Atenção à Saúde Indígena, garantida pela Lei nº 9.836/99, conhecida como Lei Arouca e as Unidades Básicas de Saúde Indígena, que atendem não só a população indígena, como também as populações ribeirinhas em regiões de ímprobo acesso e uma parcela da população que é negligenciada, não só pelo desazo governamental, como pela carência de preparo acerca de suas particularidades por parte dos profissionais da saúde.

UBS fluvial de Manicoré (AM) em pleno funcionamento
UBS fluvial de Manicoré (AM) . Foto: Ministério da Saúde e Coordenação de Atenção Básica de Manicoré (AM)

Além disso, o Programa Farmácia Popular, composto por uma rede própria de farmácias ademais da parceria com a rede privada, subsidia até 100% do valor de determinados medicamentos vendidos no varejo, com objetivo de oferecer à população o acesso aos fármacos considerados essenciais, como os destinado à hipertensão, diabetes, asma, AIDS, Alzheimer, entre outros.

Por meio do SUS, o Ministério da Saúde investe anualmente R$ 3,9 bilhões na compra de 300 milhões de doses de vacinas contra 20 tipos de doenças, fazendo do Brasil um dos países que oferece o maior número de vacinas de forma gratuita à população — fato que preconiza não só conscientizar a população de manter a caderneta de vacina atualizada, mas também na luta contra o anti-intelectualismo, precipuamente ao fanatismo e pestilência olavista e inépcia dos anti-vacina.

Além de tudo, o SUS é referência no que diz respeito ao alcance e multiplicidade de atuação em prol da saúde, sendo responsável pelas ações da Vigilância em Saúde, que são organizadas em 3 núcleos: Vigilância Epidemiológica, Vigilância Sanitária e Vigilância Ambiental. Sendo responsáveis, por exemplo, pela identificação dos fatores de riscos envolvidos na ocorrência de doenças, avaliação do controle da água, fiscalização de estabelecimentos e espaços públicos, controle de Zoonoses, imunização de animais, controle de pragas, prevenção e controle de doenças em animais, as quais sustentam a importância da consciência de que a crise ambiental é também um problema de saúde. Há também a Vigilância da Saúde do Trabalhador, que objetiva a recuperação e reabilitação da saúde dos funcionários acometidos por problemas advindos das condições de trabalho.

Soma-se a isso, ainda, há atuação dos agentes de saúde, que promovem, diversas vezes em conjunto com alunos da área, palestras e rodas de conversas, dentre outras ações, com objetivo de promover a prevenção e a percepção da saúde como direito através da educação, além de pesquisas de campo para entender as exiguidades da comunidade e posterior busca por medidas que possam auxiliar e metamorfosear uma conjuntura injustamente desfavorecida.

Palestra feita pelos alunos de medicina em conjunto com os agentes de saúde sobre câncer de mama
Esse texto é uma homenagem aos profissionais da saúde, em destaque aos agentes de saúde que trabalham no SUS. [Imagem: Palestra de conscientização do câncer da mama realizado pelos alunos de medicina preceptorados da Universidade Vila Velha, em conjunto com os agentes de saúde de Terra Vermelha/ES] Foto: Arquivo Pessoal.

Por fim, vale mesmo defender o SUS?

É incomensurável todas as razões para defender o SUS, uma vez que esse sistema não trata somente do acesso à saúde, mas principalmente do zelo pela vida de todas as pessoas, visto que, quando se luta por um sistema que promove a humanidade, também é ressignificada a luta pelo direito de minorias esquecidas e menosprezadas, inclusive na formação do profissional da saúde, cujo enforque acaba por negligenciar os pormenores que tornam o ser humano, em seu contexto particular, um sujeito espetacularmente singular e necessário ao corpo social.

Há de se refletir, respeitar e conhecer, como especialista em saúde e acadêmico em formação, as causas sociais, como as da população LGBTQI+, negra/preta, asiática, indígena, ribeirinha, privada de liberdade, em situação de rua, além de muitos outros grupos e comunidades, e se prontificar a ser melhor em prol da vida por trás dos rótulos, pois o SUS que estende a mão a quem necessita merece ter nele profissionais que saibam promover a universalidade, respeitar a equidade e tratar com integralidade a pessoa que busca por auxílio e não merece ser marginalizado e compelido pelo obscurantismo e insciência. Caso contrário, ainda é válido o juramento hipocrático?

E como População , é preciso que se compreenda como o Sistema Único de Saúde está presente em todas as instâncias, e como é dever de um todo preservar, estar atento e questionar medidas governamentais que o destrói e exaltar o modelo que, por idoneidade e savoir -faire , é responsável pela qualidade de vida de presentes e futuras gerações brasileiras.

Até porque o SUS não se trata de números, mas de pessoas, e a história é responsável por contar isso, uma vez que ela é eterna.

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Isabela Siyao Chen
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(爱)| Amarela | Paulista | Acadêmica de Medicina | Ambientalista | Voluntária | Colunista da Revista Brado | Um Mistério em Várias Línguas |