VI. Uma história de presidentes e vírus

Pedro Sousa
Revista Jabuticaba
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6 min readMay 14, 2020

Crises são o momento de provação dos líderes políticos e a pandemia de Covid-19 tem se mostrado um teste forte da capacidade de gestão de nossos governantes. No cargo de chefe do executivo nacional, Bolsonaro demonstra pouca preocupação com o número de mortos e faz inúmeras declarações irresponsáveis sobre a doença, o que tem fomentado um sentimento de insatisfação popular e aumentado a reprovação do governo, que chegou a 43% na última avaliação da Confederação Nacional do Transporte com o instituto MDA. Além disso, vive uma crise causada pelas acusações de Sérgio Moro quando deixou o cargo de ministro.

No passado já vivemos calamidades semelhantes, tanto de gestão quanto de saúde pública, e o último presidente paulista eleito antes de Bolsonaro reserva dilemas parecidos e um posicionamento distinto do que se vê na atualidade que permitem um viagem entre os paralelos destes momentos históricos.

Rodrigues Alves, 1902

Rodrigues Alves foi o quinto presidente do Brasil e teve sua gestão (1902–1906) marcada pelo combate às epidemias. Na época, o Rio de Janeiro abrigava a capital do país em uma estrutura urbanizada decadente, de muito lixo, ratos e insetos nas ruas, favorecendo a disseminação de doenças como febre-amarela, peste bubônica e varíola. Medidas sanitárias foram tomadas pelo governo federal, sob a liderança do médico sanitarista Oswaldo Cruz, em parceria com o prefeito da cidade, Pereira Passos, em prol de melhorar as condições da saúde pública.

A Lei da Vacina Obrigatória, promulgada em 1904, exigia que toda a população fosse vacinada e usava os esforços do poder público e a truculência de policiais e agentes de saúde para cumprir o decreto, efetuando demolições, desapropriações, ações de despejo e agressões contra as camadas mais pobres e prejudicadas pelas más condições de higiene. As ações promoviam o expurgo desses cidadãos para as margens da cidade que buscava se tornar maravilhosa a partir de um distanciamento social e isolamento da pobreza. O movimento causou insatisfação popular e levou cariocas às ruas para enfrentar o governo na Revolta da Vacina, primeira crise do primeiro mandato de Alves.

Assim como Alves, o governo de Bolsonaro também prometia um expurgo, o da velha classe política e das antigas práticas de governabilidade, mas as inúmeras crises de seus dois anos de mandato já desgastaram a figura política do governante e geraram turbulências que impedem a concretização das promessas de limpeza e combate à corrupção prometida em campanha. O capitão reformado é o 38º presidente do Brasil e teve sua plataforma marcada pelo medo do comunismo, do fantasma da velha política, medo do que é diferente.

Enquanto deputado, viveu a maior parte de sua vida com parasita na Câmara, aprovando apenas dois projetos em seus 27 anos de legislativo, mas prometeu ser a resposta imunológica que a nosso sistema político precisava, saneando o Palácio do Planalto e a sujeira da capital nacional, mas numa paisagem e arquitetura bem distinta do Rio de Janeiro de Alves. Se apropriou de uma crise institucional, viralizou nas redes sociais e atacou com fake news o cenário eleitoral de 2018. Quando eleito demonstrou seu suposto compromisso com o combate a corrupção nomeando Sérgio Moro, ex-juiz federal responsável por comandar os julgamentos em primeira instância da Operação Lava Jato.

Ambos os presidentes queriam desinfetar a capital, mas Alves era um político experiente e comprometido com a saúde pública, e mesmo que tenha adotado práticas muito questionáveis em suas tentativas iniciais, o político soube dosar o remédio e dialogar com a opinião pública. Na atualidade não há o mesmo exercício de temperança na presidência, que segue flertando com o extremismo e acirrando o clima de disputa entre os poderes.

Vítima da crise institucional da qual se apropriou durante as eleições, o atual presidente cambaleia entre a defesa da corrente ideológica liderada por Olavo de Carvalho, também seguida por seus filhos e por parte de seus ministros, e as práticas de governabilidade que pedem mais capacidade de diálogo e coalizões com as instituições e grupos políticos. Cedeu aos velhos hábitos e segue bradando seus insultos a tudo que lhe é alheio, insulando-se numa redoma de verdades fabricadas em redes sociais e atacando tudo aquilo que se opõe às máximas de sua narrativa retrógrada.

Agora segue com duas crises, uma causada pelas supostas tentativas de interferência na Polícia Federal e outra pelo Covid-19. Para enfrentar as duas, recorre às mesmas estratégias, minimiza o problema, chama às ruas seus grupo de apoiadores para legitimar seu discurso, imuniza-se ao colocar a culpa em terceiros e dá-lhe mais um brado de insultos e irresponsabilidades sendo tossidas na frente da opinião pública. Sem máscara mesmo. Bolsonaro não se responsabiliza e ignora a calamidade da saúde em prol de objetivos econômicos que ignoram as questões do curto prazo.

Em 1904, nosso o chefe de Estado se diferenciava do atual pela capacidade de lidar com crises, convertendo a transformação da cidade modernizada em capital político e diluindo a Revolta da Vacina no meio das conquistas que a higienização promoveu. Completou seu mandato com a solidificação de sua imagem como político atento às necessidades de saúde pública, mesmo com as devidas críticas que devem ser feitas aos efeitos e tipo de abordagem das ações do governo à época.

Jornal Gazeta de Notícias, 1904 (imagem: Biblioteca Nacional).

Em 1918, a gripe espanhola chega ao Brasil a bordo do navio Demerara, saído de Liverpool e trazendo pacientes infectados às terras cariocas, soteropolitanas e recifenses, e se espalha pelo território nacional que tem no horizonte Rodrigues Alves se anunciando como candidato à presidência. Sua campanha enfatizava seu compromisso de outrora com as políticas públicas sanitárias e utiliza a epidemia como mecanismo de engenharia política para atingir seus objetivos. Mais um vez é eleito ao cargo máximo do executivo, mas não chega a assumir.

A doença matou 35 mil brasileiros, entre eles o presidente eleito. O paulista foi eleito em março e a doença chegou ao Brasil em novembro, quando ia se dar a posse que fora impossibilitada pela saúde do criador do Instituto Butatan e da Faculdade de Medicina de São Paulo. Em janeiro do ano seguinte, morreu.

Ironicamente, um dos estadistas mais lembrados pela atenção que deu à saúde pública é morto em uma epidemia. E agora, novamente um vírus se impõe sobre o mundo promovendo uma batalha dura aos governantes em uma situação na qual os Estados precisam agir de forma rápida, eficaz e responsável para lidar com os desafios de saúde pública e socioeconômicos. Espero que a vida e morte de Rodrigues Alves, e de outros milhares de brasileiros que se foram na maior epidemia do século XX, possam servir como exemplo da gravidade da conjuntura atual. Pelo que se vê, a ignorância em relação ao coronavírus e a falta de habilidade de lidar com a fisiologia política brasileira podem trazer mais uma vítima fatal, a morte política da presidência.

Este texto faz parte do projeto Revista Jabuticaba e dá continuidade a uma série especial de textos relacionados à pandemia do coronavírus.

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