VIII. A Uberização do trabalho em tempos de pandemia

Daniel Guzzo Moratti
Revista Jabuticaba
Published in
6 min readJun 4, 2020

Uberização[1] é um dos termos mais recentes para representar, com características específicas sobre a nova configuração do mundo do trabalho, uma perspectiva diferente de o que realmente deveria ser a Economia do Compartilhamento (EC). O termo original (sharing economy) ainda é amplamente debatido, desde seu surgimento, no início dos anos 2010, mas, em geral, os defensores dessa nova área da economia a denominam como um novo tipo de negócio. Outros ainda a chamam de um movimento social.

Imagem: Lincon Zarbietti

Inicialmente, a origem do termo remetia a uma questão de generosidade e compartilhamento de itens entre indivíduos, sendo uma de suas promessas a ajuda prioritária a indivíduos mais vulneráveis, os quais poderiam tomar controle de suas vidas tornando-se microempresários e praticando a autogerência de si. Não somente, dentre as promessas da Economia do Compartilhamento, a mesma prometia ser uma alternativa sustentável para a circulação de mercadorias em ampla proporção, podendo ser reutilizadas, a partir da ideia de “o que é meu é seu”. Nela estava também contida o desejo de compartilhar bens e serviços conforme surgia plataformas que permitissem essas trocas.

A própria composição do termo coloca em xeque o que é prometido nesse novo tipo de organização. “Compartilhamento” significa troca entre iguais sem a presença do dinheiro — caráter comercial — ou por motivos de benevolência. Já “economia” sugere trocas mercantis, isto é, o dinheiro está mediando as trocas, por intermédio de interesses privados. Outros nomes que geralmente designam a Economia do Compartilhamento, são: consumo colaborativo; economia em rede; plataformas igual-para-igual; economia dos bicos (gig economy); economia da viração; e economia sob demanda.

A Uber se autodefine como uma empresa de tecnologia, não de transportes, sendo seu papel principal o de intermediar usuários e “parceiros” através de uma de plataforma, isto é, via aplicativo. Dessa maneira, a empresa também deixa claro o que ela faz e o que não faz, sendo o mais marcante a ausência de vínculo empregatício: “a Uber não emprega nenhum motorista e não é dona de nenhum carro”, além de não ser responsável por nada que acontece nas viagens (ex. casos de assalto, mortes, etc.).

A Uber tem ocupado um espaço no mundo dos negócios e no mercado que é paulatinamente mais inóspito e desregulado em nossas vidas, bem como tem desempenhado um papel cada vez mais invasivo no processo de trocas. Desse modo, ocorre a externalização dos custos, seguros e riscos para os “parceiros”, decorre também a ausência de garantias trabalhistas e sociais e reforça progressivamente a informalidade que já era crescente no Brasil. A maioria desses elementos contribuem para a consolidação da então denominada uberização do trabalho.

No que diz respeito aos custos, a empresa estabiliza cada vez mais seu sucesso em função de não cobrir custos com seguro, combustível, manutenção e depreciação dos veículos, além de não fornecer um serviço universalmente acessível. Assim, a capacidade de oferecer aos consumidores um serviço barato e eficiente vem da maestria de operar com prejuízo que financia seu crescimento. Sem contar que, quando a empresa começa a operar nas cidades pela primeira vez, ela oferece ofertas, prêmios, subsídios para motoristas e consumidores para que seu serviço espalhe positivamente. Após a efetivação da empresa no local novo, ela passa a apropriar de uma fatia maior de cada corrida, deixando os motoristas com rendimentos menores.

Esse elemento da precarização do trabalho e da gradativa informalidade no mercado de trabalho brasileiro decorre da consolidação do neoliberalismo, que teve seu início por volta da década de 1990, com o avanço da globalização, abertura econômica, desregulamentação dos mercados e da constituição da empresa moderna. Após um movimento global de anos de conquistas e direitos sociais, a retirada de direitos trabalhistas, do aumento da precarização e da jornada de trabalho já ocorre há pelo menos três décadas, de tal forma que a atuação do Estado corrobora com políticas de cunho desregulamentacionista que aprofundam a degradação do trabalho formal e reforça o informal.

Imagem: Vitor Teixeira

A chegada da pandemia não favoreceu nem um pouco o trabalho dos motoristas e dos entregadores de aplicativos. Aqueles que dirigem têm cada vez menos corridas, dado que a circulação de pessoas diminuiu drasticamente com o isolamento social; já para os entregadores, o número de pedidos aumentou rapidamente com a permanência das pessoas em casa para protegerem a si mesmas. E são esses “trabalhadores”, com exceção dos profissionais da saúde, que estão à frente do enfrentamento do vírus. Aqueles que já tinha esse trabalho antes da pandemia acabam tendo de permanecer sobre o dilema de cuidar da própria saúde e de buscar seus rendimentos para a própria subsistência e de sua família. Já os parceiros mais novos, que entraram após o início da pandemia, enfrentam o problema de ter perdido o trabalho que tinham, sendo agora o trabalho de aplicativo — precarizado e sem direitos — a saída para busca de renda e sobrevivência.

Entretanto, todos esses trabalhadores enfrentam o mesmo problema: a insuficiência por parte das empresas em ajudar na proteção da saúde dos colaboradores das empresas. A maioria deles relata que as empresas-aplicativo não têm feito o suficiente para garantir um trabalho minimamente seguro durante a pandemia. Algumas têm oferecido álcool em gel e a medição de temperatura para aqueles que trabalham. Já para os consumidores, a opção de pagamento via aplicativo foi uma das saídas para evitar o contato físico. A relação existente entre tais empresas e seus parceiros é tão problemática que essas políticas para a garantia da saúde não podem se manter permanentemente, visto que pode ferir o contrato utilizado, isto é, de as empresas não terem qualquer vínculo com os trabalhadores.

A crise deflagrada pela pandemia do novo coronavírus legitima ainda mais a face perversa das exigências do capitalismo contemporâneo na relação capital-trabalho. A precariedade desse trabalho de plataforma, sobretudo diante de um período de crise econômica, sacode o discurso empreendedor, de liberdade, autonomia e flexibilidade que as empresas em seus mais recentes modelos de negócios têm promovido.

NOTAS

[1] Grande parte das ideias aqui utilizadas foram absorvidas da obra de Tom Slee acerca da Economia do Compartilhamento. Mais precisamente, foram utilizados os capítulos 1, 2 e 4. Nessa obra, o autor expõe os mitos e as verdades desse novo ramo da economia, além das diversas plataformas de compartilhamento que a compõem, embora grande parte delas não existam no Brasil. Além do mais, no próprio livro, contém uma nota da edição que explica o fato de a Uberização compor o título da obra e ser um fenômeno típico do mercado de trabalho brasileiro. Ver: SLEE, Tom. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. São Paulo, Editora Elefante, 2017.

Este texto faz parte do projeto Revista Jabuticaba e dá continuidade a uma série especial de textos relacionados à pandemia do coronavírus.

--

--