O que “temer” hoje?

Gilberto Miranda Junior
Revista Krinos
Published in
7 min readMay 14, 2016
Michel Temer, presidente interino do Brasil, assinando a posse dos novos Ministros | Arquivo Correios do Brasil

Embora tenha mascarado as reais condições do Brasil diante da crise mundial em que o mundo vivia no final de 2014 e, logo que assumiu, tenha tentado implantar as mesmas medidas de austeridade que seu concorrente implantaria caso eleito, é inegável que até meados do início do ano do último pleito o Brasil viveu uma prosperidade e inclusão social dignos de nota e premiações na ONU. A conjuntura internacional favoreceu o período em que o capitalismo vivia o ápice da bolha que estourou em 2008, devastando várias economias mundiais. Mas foi a falta de uma visão mais ampla, típica de uma consciência imediatista formada pela mídia corporativa e a classe empresarial representada pela FIESP, que tratou de dar apoio a uma farsa política e institucional sem precedentes para destituir um governo eleito de forma democrática. Não que o governo fosse bom. Não que não errasse. Não, até, que não merecesse ser deposto. Mas sim da forma como o foi. Sim, em virtude do que se colocou no lugar e do que se acena no horizonte.

Ao que tudo indica o que temos para hoje é a prevalência capenga da ideia de que uma economia só se mantém ou cresça se a classe empresarial vislumbra lucro. Classe esta que esquece de forma incompreensível que lucro vem de vendas, vendas vêm de consumo e consumo vem de renda. Arrochar salários via terceirização e retirar benefício trabalhista significa queda na renda. Isso deixa empresários felizes porque seu custo diminui no imediato, mas estoura mais para frente porque não haverá renda disponível para a desova da produção. Ao aumentar artificialmente a renda via crédito, o que significa antecipação de consumo, aquece-se a economia no curto prazo e dá-se uma sensação de crescimento ou estabilidade. Mas logo a conta precisa ser paga: a crise volta com tudo, mais forte, mais devastadora, há demissões, desaquecimento e risco de volta da inflação (medida também imediatista de, na queda do volume, ganhar mais por venda).

Mas fosse ideológica a tomada do poder de forma tão artificial e torpe, ainda haveria críticas possíveis dentro de um rigor mínimo e argumentação. A tomada do poder pelas forças de coalizão que se formaram a partir da derrota no mais recente sufrágio majoritário e que conseguiram arregimentar o PMDB para se impetrar esse “golpe branco” no país ultrapassa em muito uma guinada ideológica nos rumos do Brasil. Essa guinada virá, com certeza, capitaneada pelo que há de mais torpe e atrasado no país por alinhar-se totalmente com as prioridades do grande capital e do interesse de países como os EUA, como bem disse em seu recente texto o colaborador da Revista Krinos, Waldisio Araujo:

Em meio a sua própria crise, os Estados Unidos mostram-se claramente interessados nos rumos do recente processo eleitoral brasileiro e nas decisões de governo. Atualmente, sua crise e a opinião pública mundial não lhes permitem interferir diretamente, mas sua atuação silenciosa é às vezes intercalada por vozes que gostariam de falar mais abertamente sobre a conveniência de um realinhamento brasileiro às ambições americanas e pró-americanas. (United Stats of Brazil)

Em recente publicação (dia 12/05/2016) o perfil oficial do Wikileaks no Twitter divulga documentos em que Michel Temer teria sido informante dos EUA em 2006, por ocasião da eleição de Lula para o segundo mandato como Presidente da República:

Print do perfil do Wikileaks em 13/05/2016

Soma-se a isso, antes mesmo dessa apertada vitória do PT em 2014, uma campanha sem precedentes contra tudo o que passou a representar a esquerda, numa clara distorção proposital, mas que se massificou por uma estratégia muito bem sucedida que culminou no total descrédito do governo do PT. Podemos entender melhor essa trajetória através das pesquisas feitas pela mídia independente acerca do financiamento e interesse de certas ONGs e fundações no país e em movimentos autointitulados libertários:

Matéria do site Outras Palavras de 11/05/2016

No entanto, quem conhece nossa República sabe que isso não é novidade. Sempre tivemos certa vocação, na visão de nossas elites, em ser um quintal estadunidense aguardando migalhas e ajuda na proporção em que nos exploravam sem a menor cerimônia — ao menos desde que nossas elites ficassem satisfeitas e com contas polpudas para aproveitar a vida em muitas gerações. Quem conhece nossa história sabe que desde sempre foi assim e não apenas no Brasil. A questão, penso, nesse momento, ultrapassa esse ponto. Mesmo que hoje não haja (e ainda bem que não) um rival à altura de um bloco à esquerda coeso e organizado como na Guerra Fria, lutar por democracia real com luta na rua, reivindicações, desobediência civil e ações efetivas de resistência, discordância e mudanças nas leis, já seriam atos e posturas suficientes para tentar reequilibrar o que vem pela frente. A questão passa longe disso. Assistimos estupefatos a muito mais do que mera adoção de um modelo liberal para nossa Economia e visões políticas. Assistimos o desmantelamento de um país que se iludiu que limparia suas feridas para tentar se reconstruir nos escombros da crise mundial e da crise ético-política interna.

O fato de um partido que nunca elegera diretamente um presidente emplacar pela terceira vez um ocupante do cargo majoritário de nossa república é sintomático. O fato de esse país ter engolido a retórica de que direitos humanos, democracia participativa ou direta, proteção às minorias sociais, luta contra o racismo, direito das mulheres e LGBT serem pautas de esquerda, já ultrapassa a simples sintomatologia e começa a preocupar. Há, ao que tudo indica, um projeto que, em seu bojo e na forma como está sendo feito, fere aos próprios princípios liberais. O fato de um possível candidato notoriamente fascista possuir mais de 20% das intenções de voto entre aqueles que ganham mais de 10 salários mínimos por mês é algo que estarrece. Como disse Vladimir Safatle, em sua coluna da Folha de São Paulo no dia 13/05/2016 (no artigo intitulado “Nós Acusamos”), aqueles que estão se alçando ao poder hoje no Brasil não são nem de longe a solução para a crise: eles são a própria crise política no poder. Tudo isso temperado com vários tipos de chacota e desdém sobre nós, outros, que estamos preocupados. Dizem que é porque perdemos. Dizem que é ‘mimimi’. Não. Todos nós perdemos e muito. Não tem a ver com Dilma ou com o PT. Há muito o que ‘temer’.

Em sua composição ministerial, formada em sua totalidade por homens brancos (cujo perfil, conforme aponta matéria da Revista Apuro, aponta para homem branco, 54 anos, patrimônio declarado de R$ 3 milhões — “Diga-me com quem andas”), o presidente interino de nossa República arregimentou o que há de mais distorcido e bizarro para que as ameaças de seu discurso de posse sejam levadas a cabo. Desde o ministro de esportes que é, ao mesmo tempo, fornecedor de itens à Olimpíadas, até acusados de estupro, assassinato e envolvimento na Lava-Jato, há de tudo. Extinguir a Controladoria Geral da União (responsável pelo combate à corrupção do Estado) é um mero detalhe. Juntar Cultura e Educação em um único ministério mostra, cabalmente, a cereja desse bolo-bomba que estamos sendo obrigados a degustar. O envolvimento do próprio presidente interino no recebimento de propina de Eduardo Cunha parece não fazer diferença alguma. Ao que tudo indica a cartilha de privatização massiva será acompanhada pelo número recorde de offshores em algum paraíso fiscal distante oriundo do nosso paraíso político do bandidismo institucionalizado. Para finalizar, o famoso juiz do STF, Gilmar Mendes, aceitou a denúncia contra Aécio Neves relativa à Lista de Furnas e já tratou de arquivar o processo.

A agora velha discussão sobre se foi golpe ou não deixou de fazer sentido. Alegam que tudo foi dentro da lei, claro. Não houve uso da força, decerto. Mas é emblemático que moralidade e luta contra a corrupção não parece ter sido motivo. Tanto quanto não foi motivo o mérito acerca de crime de responsabilidade contra Dilma Rousseff, que pode ser resumido na declaração abaixo de Rose de Freitas, do partido do atual governo:

Que os liberais, libertários e conservadores do país possam, sendo capazes, envergonhar-se muito do que ajudaram a fazer ao alimentarem a farsa e incentivar a impunidade do banditismo institucionalizado a favor de sua ideologia, como se ela já não fosse tão hegemônica quanto a bandeira do próprio PT em seus 13 anos no poder. Enquanto isso e desde antes do processo de Impeachment ser instaurado na Câmara dos Deputados, nosso parlamento já preparava o terreno para a ‘readequação’ dos rumos do país através de, pelo menos, 55 medidas já aprovadas ou em tramitação que funcionam como um golpe sujo e certeiro na venda de pessoas, direitos e patrimônio público, conforme Eduardo Sakamoto explica.

Temos muito o que ‘Temer’. Mas é o que temos para hoje. ‘Bora’ para a rua!

Gilberto Miranda Junior é licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano, estudou Ciências Econômicas na Universidade Guarulhos (UnG) e é membro pesquisador do Centro de Estudos em Filosofia (CEFIL), registrado no CNPQ e ligado à Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).

Participa do Círculo de Polinização do RAIZ Movimento Cidadanista, é editor do Zine Filosofando na Penumbra e Revista Krinos. Escreve para as revistas Maquiavel, TrendR e Portal Literativo.

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Gilberto Miranda Junior
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Licenciado em Filosofia, estudou Ciências Econômicas e participa como pesquisador do CEFIL (Centro de Estudos em Filosofia), registrado no CNPQ e ligado à UFVJM