A medida do possível

Gabriel Piazentin
Revista Subjetiva
Published in
5 min readOct 5, 2020
Imagem abstrata de rochedos que saem da água, sobre eles, portas que dão a ver, do outro lado, algo como um céu estrelado.
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- E aí, cê tá bem?

- Tô, na medida do possível…

Essa, aliás, parece que tem sido a única resposta. Possível.

Em um sem fim de impossibilidades, a vida continua a cobrar. Quem continua nela, segue desse jeito. Nem como era antes, nem como gostaria que fosse.

A “medida do possível” tornou-se um padrão que vai ao encontro do — mesmo que controverso — “novo normal”. Então, se o nosso sistema métrico, por exemplo, é decimal, a medida do possível é esse lugar em que as ações do novo normal são calculadas.

Ninguém instituiu esse padrão, que aliás nem é um padrão no sentido estrito da palavra. A medida do possível e o novo normal variam de pessoa para pessoa. E isso diz muito acerca de nós, dos sujeitos, das instituições. Enfim, da humanidade como um todo.

Mas o todo é apenas um efeito. Ele não existe de fato. A totalidade é um lugar impossível. E é nesse lugar, enquanto um efeito, nessa ideia de total, de completude, que se busca uma maneira de como lidar com a pandemia do novo coronavírus.

E o resultado está aí: dado o lugar do impossível, a dispersão de sentidos é a única saída possível. Isso se dá tanto em níveis institucionais, a exemplo de países que se fecharam mais ou se fecharam menos diante a necessidade de conter a circulação do vírus. Ou mesmo num nível menor, coletivo, de seu estado, de sua cidade, de sua família.

A dispersão de sentidos torna-se um problema quando ela mesma também pode ser a causa de danos a terceiros. Como são os casos em que governos deixam o vírus correr livremente por aí; e também aqueles (sentidos) nos quais as pessoas não se preocupam com a gravidade da situação. Aliás, para essas (pessoas e instituições) a gravidade também é mero lugar de interpretação, valendo-se, inclusive, o lugar de desacreditar que de fato o que ocorre é a maior crise sanitária dos últimos cem anos, desde a Gripe Espanhola.

Não se trata de apontar, apenas, o que é certo e errado. Quem pensa de um jeito X não vai mudar para outro jeito Y. São inscrições de sentidos próprias e características de difícil acesso ao se pensar um “por que se pensa assim?”. Tudo bem, existe um efeito pedagógico de alertar a população sobre o que se deve ou não fazer — e aí entra-se na dualidade certo/errado. Que por si só é heterogênea. Alguém pode acreditar ser importante permanecer em casa, mas tem a necessidade de sair para trabalhar. E agora, qual lado tem a razão? Logo, o que se destaca aqui não é o lugar do bem ou do mal, mas sim, esse mesmo da dispersão de sentidos possíveis.

Ninguém está feliz. Estamos cansados. O velho normal parece ser um fantasma, uma outra vida, mesmo que tenha sido há apenas alguns meses. Apenas essa sensação de deslocamento temporal já é suficiente para incomodar a vida das pessoas. O velho normal não é mais possível, pelo menos não por enquanto — e mesmo depois talvez não o seja nunca mais (mesmo que conhecidos nossos, nos stories de Instagram, queiram provar que o velho normal já retornou).

Entretanto, o velho normal não significa que ele funcionava corretamente. Um sem-número de defeitos atravessam sociedades e dizem respeito às condições que interferem hoje nos números da pandemia, tais como as desigualdades de moradia, de distribuição de renda e de saúde, que sempre foram presentes, mas isso fica para outro texto. Quem sabe alguém venha a comentar sobre isso na próxima pandemia. Mais urgente são as eleições daqui alguns meses.

Imagem abstrata de uma baleia saltando entre nuvens.
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Ainda, pode-se concluir que o que a pandemia fez, no final das contas, foi escancarar alguns desses defeitos latentes do velho normal. Daí que negar a pandemia e fingir que está tudo certo e que se deve sim voltar a como era antes, mesmo com “medidas de segurança necessárias”, é inscrever-se numa ilusão de retorno ao velho normal (ilusão, aliás, que as pessoas vão corroborar acreditando que haverá fiscalização… era essa a piada). Afinal, sempre foi assim, não? É a nossa referência, nosso lugar de conforto e de identificação, mesmo com todos os problemas que existiam. Por que não esquecer e voltar a ser como era? Queremos a vida que havia antes, com seus vícios e virtudes.

Talvez não seja mesmo possível. A dificuldade está, também, em aceitar que algo mudou (ou deveria. Ou poderia). A configuração de sociedade e as necessidades dela sofreram abalos em diversos segmentos. Mas ainda assim, a roda precisa girar, as pessoas precisam ganhar dinheiro. Não tem como escapar… Entretanto, essa rotina fazia parte do velho normal. Que também era contemplada com um estilo de vida condizente com uma certa “medida do possível”.

Por exemplo: era um problema acordar antes do amanhecer e pegar três conduções ao longo de horas para chegar ao trabalho às 09h, ficar 8h nele, pegar o mesmo tempo e as conduções na volta, dormir e repetir de novo no dia seguinte. Era algo que se fazia. Na medida do possível. Daquele possível. Para contemplar a vida no velho normal. Claro que esse é só um caso. Mas que normalidade é essa retratada aí, afinal?

No entanto, agora, algo mudou, nem que fosse apenas nos primeiros meses de quarentena. Nas primeiras semanas, somente? Minto, foi só nos primeiros dias. As conduções não devem ser lotadas. E os sistemas de ar condicionado, inclusive, são um prato cheio para um vírus que circula e “pega muito fácil”. As horas nas conduções não puderam mudar para muitas pessoas. Eis um choque do velho com o novo normal. Na medida do possível, as pessoas usam máscaras, álcool gel, lavam as mãos. Ou não fazem nada disso, por quaisquer razões. A totalidade de conscientização acerca do que acontece é impossível.

E assim voltamos à máxima: Tudo. É. Política.

Na medida do possível, a pandemia tem feito com que se continuasse a viver de um jeito esquisito, regido pela ainda estranheza imposta pelo novo normal. Escrever, produzir, abraçar. A insistência urge, a necessidade grita. De outro lado, festas e aglomerações que ocorriam clandestinamente, com pessoas ainda inseridas na ideia do velho normal, agora dão as caras sem vergonha alguma. Crime por crime, hoje um beijo pode ser muito mais perigoso para quem se preocupa consigo e com os outros.

A medida do possível é essa que temos, cada um com a sua. Fazendo o que dá. Vivendo como pode. Pode ser difícil sorrir, mas não deixa de ser necessário. São coisinhas aqui e ali que se tornaram tão difíceis, mas que teimamos nelas. Na medida do possível.

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