Poesia serve para muitas coisas — mas talvez vocês não estejam preparados para esta conversa

“A maior parte das pessoas ignora a maioria das poesias, porque a maior parte das poesias ignora a maioria das pessoas”

Bruno Oliveira
Revista Subjetiva
16 min readSep 29, 2021

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A arte tem o poder de ser o espelho da vida. Através da arte podemos entender melhor a vida. Até criá-la. Na minha infância, em São Paulo, lembro de várias vezes ir no Museu Paulista (também conhecido como Museu do Ipiranga) e me deparar com o famoso quadro do Pedro Américo. O quadro era grande. Tanto no tamanho, quanto na ode que ele contava. Quando criança me encantava toda vez que ia no museu, era a minha parte favorita da visita.

O quadro era cheio de fantasias e imprecisões históricas. Mas isso não tinha importância. A mensagem importa mais. Foi ainda pequeno, nestes momentos, que eu conheci uma das expressões que eu mais gosto: “licença poética”. A poesia aceita tudo, tal como a arte, e evoca sentimentos que as pessoas nem sabiam que existiam.

Aliás, a licença desse quadro é poderosa. Outra parte que gostava do Museu era a “Casa do Grito”. Ficava encantado por imaginar que Pedro Américo se preocupou em colocar aquela casa tão simples num quadro tão imponente. Quando adulto, percebi que aquele quadro era mais poderoso ainda. Descobri que a casa não existia antes dele. Criaram a casa por causa do quadro. A arte criou a realidade.

Independência ou Morte — de Pedro Américo

O poder da poesia de evocar

Uma vez, Robert Hunter (músico e compositor da banda Grateful Dead) foi questionado sobre o significado da expressão “You flew to me” (na música Attics of my life). Ele respondeu: “if I could say it in prose I wouldn’t need to write the song. Poetry is evocative — it’s meant to communicate to deeper levels and approach the levels of non-verbal experience”.

Se eu pudesse dizer esta expressão em forma de prosa, eu não escreveria esta canção. Poesia é evocativa — e isso significa se comunicar em níveis mais profundos e se aproximar de níveis de experiência não-verbal”

Evocar é diferente de explicar. Evocar tem menos a ver com a lógica, e mais a ver sobre o local onde estão as ideias: é onde os sentimentos e emoções se misturam. A palavra pode criar. A palavra pode evocar. É irrevogável o poder de “encantamento” da palavra: com pouco, poder dizer muito. A poesia é a fronteira final da linguagem, o poema tem a capacidade de condensar muitas imagens em pequenos versos.

A pomba branca costuma representar o símbolo da paz (ainda que seja um animal caótico). Podemos usá-la como símbolo, mas a paz nunca vai estar ali de forma concreta. É sempre uma evocação. A pomba evoca a paz para muitas pessoas. A evocação é poderosa, pois todos temos algum pedacinho de solidão incomunicável. A poesia pode tocar diretamente este pedacinho.

O carteiro e o poeta (fragmentos de solidão de cada um compõe uma experiência individual sobre a poesia)

Evocar é sentir. Sentir, mas só sentir não é poesia (Drummond). É preciso fazer as outras pessoas sentirem também. Uma poesia pode conter três visões diferentes sobre um mesmo assunto: (i) o sentimento que realmente é; (ii) o sentimento que o poeta escreve; e (iii) o sentimento que o leitor evoca. Como bem evoca, poeticamente, Fernando Pessoa no poema Autopsicografia:

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Diferente de uma receita de bolo, do manual de um eletrodoméstico, os textos literários, em especial da poesia, não possuem uma finalidade aparente. Como num lapso existencialista, cada um cria sua relação e finalidade da poesia. A poesia vira uma obra diferente dependendo de quem a consome.

A poesia como “inutensílio” e fruição

Pensar na utilidade das coisas é uma visão tipicamente burguesa de todos os recursos e influencia o pensamento contemporâneo: sempre precisamos estar medindo, quantificando e qualificando todas as coisas. Como se fosse proibido sentar e não fazer nada. Mas essa visão mesquinha não é capaz de “capitalizar” todas as coisas. Ao menos é assim que pensava o poeta curitibano Paulo Leminski: “querer que a poesia tenha um porquê, querer que a poesia esteja a serviço de alguma coisa é a mesma coisa que querer que o orgasmo tenha um porquê, que a amizade e o afeto tenham um porquê. A poesia faz parte daquelas coisas que não precisam de um porquê”. A poesia seria então um “inutensílio”.

Escrevo. E pronto. Escrevo porque preciso, preciso porque estou tonto. Ninguém tem nada com isso. Escrevo porque amanhece, e as estrelas lá no céu lembram letras no papel, quando o poema me anoitece. A aranha tece teias. o peixe beija e morde o que vê. Eu escrevo apenas. Tem que ter por quê? — Paulo Leminski

Os inutensílios seriam o que há de mais inútil do ser humano, mas nem por isso deixa de ser essencial. São os bastiões da guerrilha contra a ditadura da utilidade. A rebeldia está na essência de qualquer verso, mesmo os mais conservadores. A poesia não precisa de justificativa porque ela faz parte da própria razão de ser da vida.

Por que comemos um petit gateau ao invés de comer banana com mel? A banana com mel é mais barata, mas nutritiva, da menos trabalho de fazer. Esse é um pensamento bem utilitarista, é o famoso “ah vai tudo pro estômago mesmo e depois vai virar ‘cocô’, não vai fazer diferença”. Reduzir toda a discussão para o que é útil, é empobrecer o debate. Mas o que faz as pessoas preferirem o petit gateau em alguns momentos, além da possibilidade de virar stories no Instagram, é a fruição de comer uma sobremesa só por comê-la. Fruir sobre o sabor.

Santo Agostinho pregava duas formas principais do homem interagir com a natureza e com o divino: uti (usar) e frui (fruir). Usar seria aderir a algo pela essência dela, o objetivo da utilização já carregaria nele a motivação de utilizá-lo. Fruir estaria relacionado a desfrutar prazerosamente de algo. Uti estaria mais relacionado as experiências do cotidiano e mundanas. O fruir é algo mais transcendental e libertador, capaz de nos colocar mais próximo do divino.

Pensar a poesia através de sua função, através de seu uti, seria um esvaziamento do sentido da poesia. Ela acima de tudo frui. Poesia é um deleite da experiência, um fim nela mesmo. Obrigar pessoas a lerem poesias por que isso pode dar cultura para elas, é arruinar esta experiência. A pessoa vai se sentir obrigado a tentar aumentar a sua cultura na poesia, mas vai perder uma série de outras contribuições que aquilo poderia acometer. Mas, principalmente, vai perder o prazer da poesia. Ler poesia não precisa ter uma função específica. Quando tentamos atribuir uma função há o empobrecimento, o esvaziamento do sentido e da experiência de fruir os versos.

O essencial é invisível aos olhos
- O Pequeno Príncipe

Fruição é justamente a falta de finalidade. Só pelo prazer de fazer. Mesmo sem capital cultural, as pessoas podem ser tocadas, a arte é humana. A beleza é ao mesmo tempo a representação do perfeito e/ou também aquilo que nos deixa confortável, que nos é agradável. A poesia assume aqui um papel de alimento (para a alma).

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
- Carlos Drummond de Andrade

E não é porque a poesia não PRECISA ser útil, que ela não possa ter utilidade. Querer ler um poema de Carlos Drummond até ele mudar a sua vida não vai ser uma boa experiência, e provavelmente não vai ser útil também. Deve-se ler Drummond com o objetivo de fruir daquele poema, a mudança da sua vida, ou qualquer outro benefício dessa leitura, é marginal e algo que pode acontecer ou não.

A poesia como a fronteira entre o abstrato e o concreto

Para quem leu “O Pequeno Príncipe” vai entender a imagem a seguir. A imagem surge no começo da história, enquanto muitos pensavam que o desenho do menino seria apenas um chapéu, ele revelou que na verdade se tratava de uma jiboia que acabara de devorar um elefante. Existe um exercício de criatividade e imaginação. Mas o menino relata que “as pessoas grandes aconselharam-me a deixar de lado os desenhos de jiboias, abertas ou fechadas, e dedicar-me, de preferência, à geografia, à história, ao cálculo e à gramática”. As pessoas estão presas demais em serem produtivas e serem úteis, que esquecem do fazer poético e das contribuições que pode ter no imaginário popular e na construção da nossa própria realidade.

Tudo que é matéria agora, já foi imaginação algum dia. Basta pensarmos na invenção do avião — foi um esforço coletivo e imaginativo que perdurou por séculos (de Ícaro a Da Vinci e Santos Dumont), entre diferentes civilizações, baseado em diversas tentativas e erros, que permitiu que algum dia alguém pudesse materializar isso em uma invenção. Inclusive vem daí a inspiração para Antoine de Saint-Exupery, que foi piloto de avião, e inclusive adorava passar as férias no Brasil, na praia do Campeche, em Florianópolis-SC. Em outro de seus livros (Vento, Areia e Estrelas) ele conta um pouco sobre como foi cair de avião no deserto e afirma: “embora meu corpo esteja aqui, um pouco de mim é capaz de viajar por este céu, e levar-me a mundos desconhecidos. Então, vejo que meus sonhos são tão reais e concretos como estas dunas, esta lua, estas coisas que me cercam”.

Meus sonhos permitem que eu crie e habite num reino mais poderoso que este império francês. Eles vão me ajudar a construir o futuro, uma casa — porque a beleza das casas não reside no fato de que são feitas para abrigarem homens, mas na maneira em que são concebidas. — Exupery (Vento, Areia e Estrelas)

Os voos (inclusive os de Exupery) influenciaram outro grande artista dos nossos tempos: Hayao Miyazaki — um dos principais nomes do estúdio japonês de animação Ghibli (responsáveis por filmes como A Viagem de Chihiro e Meu Vizinho Totoro). Com um fazer poético e observador atento, trouxe esse imaginário coletivo de voar em cenas em suas animações — algo extremamente contemplativo. Mas ao mesmo tempo, deixa escancarado essa falta de função da arte: algo tão bonito quanto voar, pode ser usado para fins mais nefastos, como a guerra. E essa contradição ele transforma em fazer poético de uma forma muito especial, um ato altamente físico e concreto como voar, pode ser mostrado de forma prática em uma animação, e mesmo assim mostrar toda uma poesia que desnuda a sua essência (como as cenas do vídeo abaixo).

Miyazaki e a Essência do Vôo — A experiência abstrata do vôo em poucos minutos de animação

Observar é importante. E a observação deve preceder a criação.

A existência inteira, para um homem que se desviou do eterno, é tão somente um mimo desmensurado sob a máscara do absurdo. E esse grande mimo é a criação. O Mito de Sísifo, Albert Camus

A criação seria o emergente surgimento dos sentidos e afeitos, exponencialmente elevados por emoções acopladas da paixão de traduzir e influenciar o mundo. E paixão daquelas pueris, que vai das camadas de abstração em oligopólio com a introspecção. A criação clama pelo auto conhecimento e o o conhecimento do mundo. O interno e o externo, captados pela observação, e indo direto ao sumo:

Rumo ao Sumo — Paulo leminski (“a alma, esse conto de fada”)

A poesia como forma de expressão

A poesia pode ser o apuro dos nossos sentidos. A poesia é todos os cinco sentidos traduzidos. Por meio da palavra, em coisa mental, linguagem concentrada. Que no entanto pode estender-se e distender-se. A poesia tem o poder de reposicionar o olhar de cada individuo para o mundo em que vive, como um potencializador dos sentidos. E isso pode gerar uma utilidade real na vida e até mesmo no famigerado mercado de trabalho: novos olhares sobre problemas comuns pode trazer uma vantagem competitiva inovadora para sua carreira, para os negócios e até conseguir melhorar o mundo, de fato. A poesia é um dos artifícios para treinar o olhar e trabalhar melhor com o abstrato e com a própria realidade.

O que acontece da pele para dentro, é reflexo do que acontece da pele para fora

Potencial de emergir nossos sentimentos sem interesse particular em utilidades imediatas. Sempre em conformidade com o nosso sentimento do mundo e o contexto que nos envolve, a fim de compartilhar o que há de mais profundo e abstrato em nós, sem discriminar as expressões mais leves. A prática e/ou apreciação das artes hoje vem se mostrando cada vez mais importantes, podemos ver a expressão do outro com outros olhos, ao mesmo tempo em que podemos nos interiorizar um pouco mais também.

“Todo pensamento que renuncia à unidade exalta a diversidade, que é o lugar da arte. O único pensamento que liberta o espírito é aquele que o deixa só, certo de seus limites e de seu fim próximo.’’ — Albert Camus

A poesia exercita a criatividade, nos faz aprender coisas novas, para experimentar coisas diferentes, para praticar nossa empatia. A arte é aquilo que conecta todo mundo. A arte funciona quando atinge a todos. É o Van Gogh que pintava as paisagens e as estrelas a partir do manicômio. Todo olhar é válido.

A poesia como versos terapia

A poesia pode ter função terapêutica. Ao mesmo tempo que associá-la a uma terapia, é diminuir o seu potencial transformador. Mais importante do que saber o que está acontecendo, é preciso também saber se livrar do que está acontecendo — o papel da arte é fazer nos lembrar que ainda somos humanos. A poesia toma, sem pretensão, seu papel de remédio.

Claro que há o embate sobre a que se presta a poesia, e a arte por conseguinte. Picasso acreditava que a arte deveria denunciar a realidade, pintava sobre os horrores da guerra (vide Guernica). Matisse insistia em pintar coisas coloridas e alegres. Quando Picasso o questionou, Matisse disse que o mundo já estava cinza e chato o suficiente, não teria como ele ajudar o mundo apresentando mais horrores. A arte, e a poesia, podem ser as duas coisas. Até três ou quatro outras coisas também. Mas pode ser nada, na maioria das vezes. Por isso ela é tão poderosa.

Arte existe porque a vida não basta
- Ferreira Gullar

Ney Matogrosso — Poema (a poesia como método para curar nossas feridas)

A poesia como ferramenta política

Mas uma arte que também não compreende seu próprio fim, pode ser usada para os fins de outros. É, ao mesmo tempo, um mecanismo de coação ideológica e um mecanismo para fugir dessa coação.

E a poesia é muito poderoso como ferramenta política de denúncia por seu potencial responsivo. Pequenos textos rápidos que conseguem retratar bem aquilo que está acontecendo — o zeitgeist. Poesia é precisa, é crônica sem ser prosa.

Poema Coronavaucher, de Alex Zani

com o governo à deriva
a nau do desespero se atranca:

⠀ ⠀ ⠀ ⠀⠀gritam os economistas.

minha vó dizia
que entendia de economia
de acordo com o preço do feijão.

reajuste fiscal,
ano de eleição…
como fica a situação?

⠀ ⠀ ⠀ ⠀ ⠀⠀⠀⠀ u
⠀ ⠀ ⠀ ⠀ ⠀⠀⠀ i
⠀ ⠀ ⠀ ⠀⠀ ⠀ b
⠀ ⠀ ⠀⠀ ⠀ u
o dólar⠀s ⠀ ⠀ ⠀ ⠀, meu filho?
como você sabe, vó?
fui no mercado e comprei feijão
tá sendo vendido a 10 conto o quilo.

subiu sim, vó.
o dólar bateu 5,50;
o Dória bateu 60 (e dois);
o Guedes bateu também,
as botas.

o salário mínimo
não compra mais o mínimo
a cesta básica
não cumpre mais o básico
o auxílio emergencial
não faz nem cócegas
o coronavoucher
compra apenas
60 quilos
de feijão

eu não sei fazer feijão.
mas eu sei porque o dólar subiu.

A poesia é icônica. Não dá para lembrar do massacre do Carandiru, aqui em São Paulo, sem lembrar da música/poesia “Diário de um detento”, dos Racionais MCs. Como já diria Criolo, o relato não frio, histórico e real da mentalidade que massacra e exclui no Brasil. Não existe melhor registro histórico do que aconteceu (e do que acontece) do que está música e álbum. A poesia como dub poetry (poesia falada).

E a dub poetry ficou muito poderosa, principalmente, nas ex-colônias inglesas. Em especial na Jamaica. A população do país se sentia esmagada com o domínio cultural inglês, principalmente com a língua que foi imposta a eles. O dub poetry jamaicano era um ato de protesto: se eles fizeram a gente engolir a língua deles, vamos fazer eles engolirem a nossa.

A arte em geral é um dos caminhos para se apoderar da identidade nacional, e não à toa ela é tão atacada em governos autoritários — vide o que aconteceu com o nosso ex-secretário da cultura Roberto Alvim (aquele do discurso nazista), tanto no em sua nomeação quanto em sua exoneração. A arte pode ser instrumento de guerra.

A poesia na indústria cultural

A poesia entra na nossa vida de maneira intensa. Está nos nossos fones de ouvidos (a poesia em forma de música), nas séries que assistimos na TV (toda vez que assistia Breaking Bad lembrava de Walt Whitman — inclusive os grandes mistérios da série estão relacionados ao autor, as iniciais do protagonista são as mesmas do autor), nos filmes (adoro Sociedade dos Poetas Mortos) e até em propagandas publicitárias. O mercado já se apropriou da poesia e a produz em escala industrial.

Quando ouvi o astrônomo erudito,
Quando as provas, os números, foram listados em colunas diante de mim,
Quando me foram apresentados os mapas e diagramas, para somar, dividir e medi-los,
Quando eu, sentado, ouvi o astrônomo no auditório em que apresentava sua palestra com grande aplauso,
Bem cedo e sem conta me senti cansado e enojado,
Até que, levantando-me e saindo silenciosamente, fui perambular na solidão,
No místico ar úmido da noite e, de tempo em tempo,
Mirava no céu a perfeição silenciosa das estrelas.
- Walt Whitman

A série Breaking Bad utiliza diversas referências artísticas, incluindo esta sobre o poema Ozymandias

Ao mesmo tempo que esta indústria aumenta o contato com a poesia, ela esvazia um pouco essa apreciação/fruição da poesia. Até mesmo um grafite, por mais belo que ela seja, as pessoas simplesmente passam por ele como se fosse parte da paisagem. A indústria gerou uma certa indiferença para a arte.

Na indústria cultural, o espectador vai sempre (i) receber entretenimento; (ii) preencher o tempo livre (fora do trabalho) consumindo cultura industrial; (iii) descansar a cabeça para se preparar novamente para o trabalho, sem se ocupar com reflexões muito profundas. Tudo isso para que não sejamos capazes de pensar sobre a realidade. A indústria cultural tranquiliza as massas e vira o novo ópio do povo: a grande tática de anestesiar e desinformar.

A indústria cultural destrói a poesia aos poucos. Mas a poesia, a real poesia, há de estar sempre lá. O fazer poético exige a sutileza.

Se muita gente estiver gritando, pautas importantes podem se perder em meio a tanto ruído (é o famoso “fiz tal coisa e olha no que deu” do Youtube). Se muita gente está chamando atenção para coisas que não são tão importantes, o que vamos fazer quando algo realmente importante precisar ser comunicado? Além disso, o grito se retroalimenta, as pessoas passam a falar cada vez mais alto, não por que tem algo importante para ser dito, mas para que seja ouvido nesse espaço que passou a ser tão concorrido. A indústria nos força a falar cada vez mais alto, mas a poesia pode nos ajudar a recuperar essa sutileza. É a bossa nova de João Gilberto sussurrando sutilezas no ouvido das pessoas (a versão de Cordeiro de Nanã, de João Gilberto, é simples, mas ao mesmo tempo extremamente poética). A sutileza é puro encanto e fruição, nos faz parar e voltarmos a ser humanos.

É aí que a poesia se manifesta novamente. Não que a poesia não possa gritar, com certeza ela pode. E deve, quando necessário. Mas é na sutileza que, na humilde opinião daquele que vos escreve, é que o fazer poético se torna mais nítido.

Como recuperar a sutileza — O sutil é uma ferramenta sofisticada de fazer ouvir

A sutileza está no caminho do irracionalismo moderno, isto é, não precisamos de uma continuidade do avanço da razão sobre as nossas vidas, precisamos resgatar algo mais, algo que traga um equilíbrio para a nossa humanidade. E a uma primeira vista não trazer o racionalismo parece ser algo ruim, mas é que estamos tão mergulhado nesse esquema (quem menos sabe do mar é o peixe), que não conseguimos ver o quanto o lado fora do racionalismo também pode ser importante.

“Quem não conhece a depressão, quem nunca sentiu sua alma levada pelo corpo, invadida por sua fraqueza, é incapaz de perceber alguma verdade no homem; é preciso não poder mais mexer, ter esperança ou crença para constatar. Como distinguiremos nossos mecanismos intelectuais ou morais se deles não nos privarmos temporariamente? Essa é única consolação para aqueles que experimentam a morte em seus pequenos golpes: eles são os únicos que sabem um pouco como a vida é feita.’’ — Antonin Artaud

Filósofos como Nietzsche dizem que a racionalidade exagerada traz uma desconexão dos sentidos com o mundo e a incapacidade de se manter relação intersubjetivas — tudo passa a ficar cada vez mais mecânico, ou líquido como defende Zygmunt Bauman. Mas esse irracionalismo moderno não significa a extinção da lógica e da razão, mas do equilíbrio com as emoções e sentimentos, na formação de um pensamento crítico e humano. A poesia, por ser em essência essa grande representação dos sentidos e do abstrato, pode ser um dos caminhos para se equilibrar essa balança da vida.

“O cisco no olho é a melhor lente de aumento” — Theodor Adorno

A poesia como o “resto” humano

Os manuais apresentam tudo — a visão aérea do que se está acontecendo, mas há algumas coisas que se perdem nisso. Há quem espere que a poesia seja como os manuais. Tenham uma função explícita, esteja lá passo a passo. Sem contravenção, sem fruição, sem denúncia, sem terapia. Apenas um manual

Fora dos manuais, existe o que sobra: o resto humano. Aquilo que sobra dessas análises e visões técnicas da realidade: o medo, a convicção, o ódio, a paixão e o trauma. Uma excrescência de humanidade que fica para trás — e é disso que se alimenta a arte. Nenhum gráfico ou pesquisa consegue retratar toda a complexidade do ser humano, sempre sobra um resto que só pode ser endereçado pela arte, pela poesia.

Não é para compreender. Regulamento é regulamento.
- O acendedor, em O Pequeno Príncipe

As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei.
- Carlos Drummond de Andrade (em réplica)

Haverá poesia depois de Auschwitz?” O que sobrou de humano na humanidade depois de uma catástrofe deste tamanho, de uma barbárie?

Há quem ache que escrever poesia apenas por fruição depois do que ocorreu em Auschwitz seria uma continuação da barbárie. Na minha visão, a poesia é o puro sumo do resto humano. E é por ela, quase que exclusivamente por ela, que nos reergueremos de momentos como Auschwitz ou como os desta pandemia. Dar uma função para a poesia, por mais nobre que ela seja, por entretenimento, denúncia ou relato, é destruir o que a poesia é e reduzir o que ela pode ser.

E o que seria a poesia para você? Não é uma resposta fácil, mas o próprio ato de responder essa pergunta já é fazer poesia, não é?

O que é poesia para mim? — Toda Poesia

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Bruno Oliveira
Revista Subjetiva

Auditor, escritor, leitor e flanador. Mestrando em TI, tropecei na bolsa de valores. Acredito nas estrelas, não nos astros. Resenho pessoas e o tempo presente.