Twin Peaks: Destinos mortos continuam vivos

Todas as coisas que existem são possíveis apenas em função de uma série de ausências

Matheus Borges
Revista Subjetiva
13 min readSep 6, 2017

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O tempo está fora de seu eixo. Maldita sina,

Que me fez nascer um dia para consertá-lo!

Hamlet, Ato I, Cena V.

“Twin Peaks: The Return”, 2017.

Este artigo também está disponível em inglês: Dead destinies are still alive.

Em seu livro “Ghosts of my life” (Zero Books, 2014), o escritor Mark Fisher explora o termo “hauntology”, conceito filosófico criado por Jacques Derrida e que também é um trocadilho. O termo une as palavras “haunt” (assombração, assombrar) e “ontology” (ontologia, estudo filosófico do que pode ser dito que existe). Para Derrida, “assombrar não significa estar presente”. Fisher escreve: “Todas as coisas que existem são possíveis apenas em função de uma série de ausências, o que as precede e as envolve, permitindo a elas que possuam a consistência e a inteligibilidade que possuem”. “Hauntology”, portanto, é o estudo de ausências que existem — e assombram. É a observação da virtualidade agindo sobre a realidade. E nisso não há nada de inerentemente maligno ou sobrenatural. A assombração aqui surge como uma figura de linguagem, sinalizando algo que existe através de sua ausência evidente. Segundo Fisher, arte e cultura hauntológicas evocam as memórias de eras passadas. Diferentemente da nostalgia e do pastiche, no entanto, se recusam a abandonar um desejo intrínseco pelo futuro, ou por um futuro diferente. O livro de Fisher é um estudo cuidadoso de como isso se manifesta metodológica e formalmente na cultura popular, principalmente na música eletrônica.

Meu interesse aqui, ao contrário do que fiz anteriormente quando escrevi sobre a nostalgia como princípio estético em T2: Trainspotting, não é uma análise formal de Twin Peaks, mas elucidar alguns dos temas desenvolvidos nos dezoito episódios de Twin Peaks: The Return.

“Twin Peaks” (1990).

A primeira vez que vi Twin Peaks foi no verão de 2006. Eu tinha treze anos e morava com meus pais numa cidade pequena. Ela se chama Tapes, tem 17 mil habitantes e se localiza no litoral sul do Rio Grande do Sul. Na época eu era um adolescente idealista com inclinações artísticas — é difícil escrever isso sem soar um pouco pedante e/ou ingênuo — e eu detestava viver naquele lugar. Durante a infância, viver em Tapes era simplesmente viver em Tapes, era um fato da minha vida e da vida dos meus pais e de toda minha família. Quando cheguei à adolescência e comecei a descobrir quem eu era e o que eu poderia ser, motivado pela literatura e pelo cinema, viver em Tapes deixou de se tornar um fato e se transformou numa condição, num obstáculo a ser transposto. Eu já não me sentia em casa, já não sentia que meus colegas de escola eram verdadeiramente meus pares, já não enxergava os laços comunitários que me uniam àquele lugar. Foram muitas as emoções despertadas pelo primeiro contato com a obra de David Lynch e Mark Frost. Pavor, curiosidade, fascínio. Entretanto, a que me atingiu mais profundamente foi a de comunhão. O coração da série não estava em seu imaginário hipnagógico, na investigação de um assassinato brutal, nas xícaras de café ou nos pedaços de torta de cereja. O coração da série era sua atmosfera, uma atmosfera imaterial e verdadeira, a atmosfera que envolve as cidades pequenas, no sul do Brasil ou no noroeste dos Estados Unidos. Esse sentimento de comunhão era amplificado pela densa névoa que cobre a Lagoa dos Patos durante o inverno e obstrui a paisagem da floresta de araucárias que circunscreve o município, pelo artesanato indígena exposto no Pontal Tapes Hotel e no Clube Náutico Tapense. Figuras humanas e corujas de madeira que remetem a uma compreensão de universo mais antiga que a própria cidade, de quando não havia cidade e tudo era névoa, lagoa e floresta.

Numa cidade pequena, a dinâmica social é um misto de hospitalidade, desconfiança e desconforto. É difícil explicar para alguém que nunca viveu em uma dessas estranhas comunidades, mas pense que qualquer relação entre dois habitantes, por mínima que seja, guarda uma infinitude de relações anteriores. Seu pai e minha mãe foram colegas de escola. Seu pai e minha mãe quase se casaram. O que seria de mim se minha mãe se casasse com meu pai? Seu avô e meu avô se odiavam. Seu avô ficou bêbado uma noite e tentou matar meu avô. O que seria de mim se o seu avô tivesse matado meu avô? Quando você vive em uma cidade pequena, você tem consciência desses passados coletivos em que você não foi personagem, você tem consciência de que a cidade inteira é o que é agora porque aconteceu de não ter sido de outro jeito. Abundam futuros que nunca se concretizaram, esperanças assassinadas pela realidade. Cada habitante cultiva sua própria versão do mesmo sentimento, o de que tudo poderia ter sido diferente. Minha mãe ainda pensando no seu pai. No entanto, se abrimos a porta de casa e colocamos os pés na rua, somos confrontados com evidências materiais que nos convencem do contrário. Nada poderia ter sido diferente. É como se a cidade vivesse numa realidade particular, fabricada, de multiversos mentais. Se a realidade é definida por nossa experiência, puramente subjetiva, então o mundo físico é que se manifesta como uma anomalia, um rasgo no espaço-tempo processado como assombração. Minha mãe dirige ao supermercado e passa em frente à casa onde seu pai vive com sua mãe, uma casa que anteriormente pertencera à professora da turma de segunda série em que os dois se conheceram. Toda relação entre dois habitantes, mesmo a minha e a sua, mesmo que tenhamos quatro ou quatorze anos de idade e tenhamos nos encontrado apenas duas vezes, toda relação entre dois habitantes é naturalmente ancestral e complexa. A relação mais ancestral e complexa se dá entre qualquer habitante e a cidade em si, um oceano de memórias prazerosas ou traumáticas, de casas que guardam destinos que ficaram para trás.

Nada disso eu percebi através de Twin Peaks, nada disso eu percebi na adolescência. Encontrar essa relação ancestral e complexa foi um processo que demorou anos, um processo que necessitou que eu me afastasse da cidade por intervalos de tempo cada vez maiores. De modo que, a cada retorno, essa cidade se mostrava cada vez mais longínqua, cada vez mais vazia e misteriosa. Longínqua porque enxergava a paisagem de minha infância e adolescência. Vazia porque os cenários de outrora foram demolidos ou transformados em igrejas evangélicas, farmácias e salões de beleza. Misteriosa porque essa paisagem é agora ocupada por outros rostos, rostos muito parecidos com os rostos que conheci na infância. Rostos extremamente diferentes. Memórias desbotadas sobrepostas a uma paisagem corrompida e povoada por faces que eu não reconheço. A realidade se mostra dura, minha posição já não é mais de participante, mas de observador. Apesar disso, a atmosfera continua intacta e eu consigo senti-la, talvez até mesmo com uma intensidade maior. Pensei muito nisso ao ver os primeiros episódios de Twin Peaks: The Return, que retoma a história vinte e cinco anos depois da série original. Boa parte do que entendemos por “atmosfera” na Twin Peaks de 1990 fica a cargo da música extradiegética composta por Angelo Badalamenti, melancólica e misteriosa. Em Twin Peaks: The Return, entretanto, há apenas sugestões dessa música, outrora onipresente. Diálogos ocorrem em carros e salas e o único som que ouvimos é o da voz humana. Cenas enigmáticas são embaladas por zumbidos mecânicos e impulsos elétricos. E silêncio, muito silêncio. Para amplificar o silêncio, uma reverberação nula permanece em segundo plano durante quase todas as cenas. O silêncio faz com que você sinta a indiferença. A realidade se mostra dura, sua posição aqui já não é como participante, mas observador. Mas é claro que a cidade continuou a existir sem que você estivesse aqui. Quem você acha que você é? Para começo de conversa, foi você quem foi embora. Depois disso percebemos que não precisávamos de você. Aliás, quem é mesmo você? Quando você deixa a cidade pequena para trás, já não cabe a você decidir se vai voltar. Caberá a eles decidir se te aceitarão outra vez. E você agora é uma pessoa diferente.

A primeira Twin Peaks convidava o espectador a brincar de detetive e tentar desvendar seus mistérios. A nova enfileira enigmas e cenas do cotidiano, confiante de que damos igual atenção a todos esses instantes. Numa semana, o policial Hawke (Michael Horse) encontra páginas de um diário, consideradas perdidas há vinte e cinco anos. Na outra, Carl Rodd (Harry Dean Stanton) recomenda a um de seus inquilinos que pare de vender sangue para conseguir dinheiro e perdoa o aluguel atrasado. Apesar disso, a atmosfera continua intacta e é possível senti-la, talvez até mesmo com uma intensidade maior. Vez que outra somos relembrados de que, por trás da atmosfera, por trás da dureza dos fatos, há emoção. Há Bobby Briggs (Dana Ashbrook) diante de uma foto de Laura Palmer (Sheryl Lee), chorando pela morte da ex-namorada pela primeira vez em quase três décadas. E é nesse momento, quando o presente reconhece o passado, um passado que tanto você quanto o bom e velho Bobby se lembram vividamente, é nesse momento que é permitida a você a experiência de ouvir a música de Badalamenti mais uma vez.

“Twin Peaks: The Return” (2017).

A casa de minha avó Tereza é toda feita de madeira. Na mitologia de Twin Peaks, a madeira é um elemento associado a forças sobrenaturais que agem em benefício de nosso mundo. Afinal de contas, o símbolo do mal em “Twin Peaks” é a eletricidade e a madeira é um material de condutividade nula. A casa de minha avó Tereza é toda feita de madeira e do outro lado da rua há outra casa. Quando eu era pequeno, muito pequeno, havia uma senhora que morava nessa casa do outro lado da rua e ela se chamava Dona Luci. Era uma senhora simpática e muito magra, andava curvada por ter problemas de coluna. Dona Luci fazia questão de me acenar pela janela toda vez que me via passar ali na frente, eu me aproximava do portão e trocávamos algumas palavras. O tipo de diálogo que somente existe entre uma criança e uma senhora idosa. Houve uma vez em que eu voltava do supermercado com uma garrafa de xarope de groselha e a sacola arrebentou enquanto eu atravessava a calçada de Dona Luci. A garrafa, de plástico vagabundo, se arrebentou e cobriu o concreto de vermelho-vivo. Assustada, Dona Luci correu à janela para ver se eu estava bem. Achou que tudo aquilo fosse sangue e eu havia me machucado. No entanto, eu estava bem. Apenas um pouco constrangido por aquela imundície.

Dona Luci me veio à mente em algumas ocasiões durante Twin Peaks: The Return, nas cenas em que Margaret Lanterman (Catherine E. Coulson) telefona a Hawke para lhe falar sobre a iminente aproximação de forças misteriosas. Coulson filmou sua participação na série já muito adoentada, em seus últimos dias de vida. Aparece magra e abatida, todas as cenas enquadradas economicamente: Margaret segurando o tronco, sentada numa cadeira. Ao seu lado, a mesinha com o telefone. É quase como se assistíssemos a um plano contínuo, estendido através dos episódios. Em sua última cena, ela liga para Hawke e informa ao policial que morrerá naquela noite. Margaret fala devagar, hesitante, com a urgência de quem sabe que está à beira da morte. Hawke se despede, solenemente, sabendo que ela diz a verdade. Vemos a cabana de Margaret à noite, as luzes se apagam.

Em seus últimos anos de vida, Dona Luci também ficava encolhida em casa, sentada na mesma poltrona, ao lado de uma mesa não muito diferente daquela que suporta o telefone de Margaret. Aconteceu há cinco, talvez seis anos. Fazia algum tempo que minha tia vinha ajudando Dona Luci a manter a organização doméstica. Eu estava na casa de minha avó e minha tia apareceu na porta dizendo que Dona Luci gostaria de me ver. Fomos até sua casa e lá estava ela, sentada em sua poltrona, vestindo um suéter pesado de lã, enrolada em cobertores. Sentei-me ao lado dela, conversamos um pouco. Não lembro o que conversamos, mas lembro de ter sentido que aquilo era uma réplica de nossas conversas da minha infância. A criança e a senhora idosa. Quando me levantei para ir embora, Dona Luci se despediu de mim com um sorriso agridoce e disse: “Essa é a última vez que nós vamos nos ver, então adeus”. Eu não soube como reagir. Não soube como reagir porque de alguma maneira sabia que era verdade. Uma semana depois, ela morreu. Eu soube disso quando passei em frente à casa e a janela estava fechada.

Das últimas vezes que visitei minha avó Tereza, vi que a casa de Dona Luci foi reformada e pintada. Vi um carro estacionando na garagem e rostos estranhos descarregando sacolas de supermercado. Mais do que isso, vi a mim mesmo com uma sacola rasgada nas mãos, parado na calçada com um rio de groselha inundando meus tênis.

Catherine E. Coulson em “Twin Peaks: The Return” (2017).

Histórias fantásticas e de ficção científica apelam a nossa subjetividade, enquanto ficções realistas apelam a nossa objetividade. Parece algo óbvio de se dizer, mas não acho que o seja. O que nos comove em um drama realista — digamos The Straight Story, para permanecer em um terreno Lynchiano de representação — é sua capacidade de verossimilhança em representar uma situação possível. Coloque-se na posição de um homem idoso que se coloca numa longa viagem em cima de um cortador de grama para se reconciliar com o irmão. Numa narrativa fantasiosa, ou num recorte dessa fantasia, como é a cena final de Twin Peaks: The Return, o que nos comove é a verossimilhança com que expressa, ou sintetiza, uma emoção, ou um conjunto delas. Coloque-se na pele de um agente do FBI que se coloca numa longa viagem ao lado de uma mulher que pode ou não ser a vítima de um assassinato cometido vinte e cinco anos atrás. Coloque-se na pele dos dois e entenda o que está em jogo. A estabilidade do universo. Podemos dizer que a cena, dentro daquele contexto específico, serve aos propósitos de uma narrativa maior. E, no entanto, o que podemos afirmar a respeito da narrativa maior? A que serve essa narrativa? Ou, mais importante: a quem?

Em “Part 18”, Dale Cooper (Kyle MacLachlan) tenta restaurar a ordem do universo. Ao que tudo indicava, essa ordem já havia sido restaurada. Já haviam saído de cena os principais antagonistas da série, da original e da nova versão — BOB (Frank Silva) e o doppëlganger (também interpretado por MacLachlan). Cooper, no entanto, tal como Hamlet, acredita que o tempo ainda está fora de seu eixo e consertá-lo faz parte de seu destino. Ele decide voltar no tempo (ou algo assim), impedir o assassinato de Laura Palmer (ou algo assim) e colocá-la em segurança numa nova linha temporal (ou algo assim). Laura é sequestrada por uma entidade maligna chamada Judy que pode ou não ter possuído o corpo de sua mãe, Sarah (Grace Zabriskie). Depois de atravessar um portal interdimensional (ou algo assim) e ser abandonado por sua secretária/amante, Diane (Laura Dern), que não o reconhece mais e se refere aos dois por outros nomes, Cooper chega ao estado do Texas e encontra Laura, que diz se chamar Carrie Paige. Ela nunca ouviu falar em Laura, nunca ouviu falar na cidade de Twin Peaks. Carrie quer fugir dali, deixar para trás aquela vida e um homem morto sentado em sua sala (sim). Ela aceita o convite de Cooper e os dois partem em uma longa viagem de carro rumo à casa dela em Twin Peaks, dando início ao retorno que dá título à série. A viagem é uma sequência longa, sombria, silenciosa, cheia de imagens da estrada à noite, como é típico de David Lynch. O efeito que isso provoca no espectador é o de estar factualmente viajando à noite, rumo a uma cidade que nos é familiar. A sequência deixa a mente livre para flutuar, para antecipar o desfecho de tudo isso. Essa não é a primeira vez que isso acontece em Twin Peaks: The Return. A série inteira tem inúmeras sequências semelhantes, estradas escuras à noite que parecem levar a lugar nenhum. Todas elas nos proporcionam esse estado de especulação silenciosa quanto ao destino. Nenhuma das sequências anteriores, no entanto, é tão longa quanto essa.

“Twin Peaks: The Return”, 2017.

Ao chegar em Twin Peaks, estacionam em frente à residência dos Palmer. Quem abre a porta, para a surpresa de Cooper, não é Sarah. Na verdade, não há nenhuma Sarah ali. Nunca houve Sarah, nunca houve uma família Palmer naquela casa. Nunca houve Laura, pois Laura é Carrie. Não em Twin Peaks, mas em Odessa, Texas. Atordoado, Cooper se pergunta em que ano está. Carrie ouve o nome “Laura” e grita. É o grito de um passado coletivo de que você já não é personagem. A cidade inteira só é o que é agora porque aconteceu de não ter sido de outro jeito. Futuros que nunca se concretizaram, esperanças assassinadas pela realidade. Cada habitante cultiva sua própria versão do mesmo sentimento, o de que tudo poderia ter sido diferente. No entanto, a versão de Carrie é demais para qualquer um. Nada poderia ter sido diferente. A cidade vive numa realidade particular, fabricada, de multiversos mentais. Se a realidade é definida por nossa experiência, puramente subjetiva, então o mundo físico é que se manifesta como uma anomalia, um rasgo no espaço-tempo processado como assombração. A relação mais ancestral e complexa se dá entre qualquer habitante e a cidade em si, um oceano de memórias prazerosas ou traumáticas, de casas que guardam destinos que ficaram para trás. As luzes da casa se apagam, tudo fica preto. Eis outro destino que acaba de morrer.

“Twin Peaks: The Return”, 2017.

Leia também meu artigo sobre o episódio 8: “Twin Peaks”: O pecado original é atômico.

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