VERDINHA

LEGALIZOU. E AGORA?

Reflexões sobre a flexibilização da Cannabis no Brasil e o que poderia acontecer se ela fosse legalizada.

Revista Torta
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Por Arthur Almeida

Editado por Giovana Silvestri e João Vitor Custódio

As reflexões sobre legalização e descriminalização da planta estão cada vez mais presente no debate social e político no Brasil || Foto por Vinicios Rosa Modelo: Felipe Campos

Como discutido em Um tabu construído historicamente, texto inicial deste dossiê da Revista Torta, a relação dos seres humanos com a Cannabis não é de ontem. Mas isso não impede que o tema seja tratado como tabu. No Brasil, o uso recreativo da maconha é um crime federal e a sua plantação e comercialização expressamente proibidos.

De acordo com o levantamento Global Views on Vices 2019, o Brasil é mais conservador que a média global em relação à legalização da maconha. Dos brasileiros entrevistados, 54% acredita que a maconha medicinal deveria ser legalizada no país (a média global é de 57%), já para o uso recreativo, apenas 24%, contra 26% da média global.

A discussão sobre a utilização da maconha, porém, cresce cada vez mais, com mais países flexibilizando a sua legislação que diz respeito à droga, possibilitando explorar os seus benefícios sociais, políticos e econômicos.

Nesse sentido, surgem os termos “liberação”, “descriminalização” e “legalização”, que precisam ser conceitualizados para a compreensão de um debate ainda mais complexo sobre a situação jurídica que se encontra a planta e, por fim, as possibilidades que ela poderia trazer. E é esse caminho que este artigo pretende seguir.

As diferenças entre “liberação”, “descriminalização” e “legalização”

Para além das diferenciações semânticas, os termos carregam consigo também singularidade de consequências jurídicas.

A liberação retira qualquer tipo de normatização, penalização e controle do Estado, deixando totalmente livre o consumo e venda do produto em questão, sem a obrigação de realização de qualquer tipo de controle de qualidade. Nenhum país do mundo, até o momento, liberou a maconha.

Em síntese, a descriminalização é ato sinônimo à absolvição de crimes em determinadas situações. Isso quer dizer que o porte da droga para uso pessoal não será tido como crime. A venda ou o porte de grandes quantidades (o suficiente para ser enquadrado como um caso de tráfico), porém, ainda são considerados como infrações.

Segundo a revista ÉPOCA, especialistas negam que haja evidências científicas comprovadas da vinculação entre consumo de maconha e violência. || Foto Vinicios Rosa Modelo: Felipe Campos

Esse tipo de medida tem como princípio reduzir os danos provocados na vida dos usuários, deixando de tratá-los como criminosos — a questão assume caráter de saúde pública. Em Portugal, desde 2001, a maconha é descriminalizada.

Por fim, a legalização exige a participação do Estado na inserção do produto no espaço público. O uso da droga passa a ser legal, isso é, impassível de penalidade. Porém, passa por um processo de regularização, regras rígidas que controlam desde a produção até o transporte, o comércio e a utilização da Cannabis.

No Uruguai, por exemplo, onde a droga foi legalizada, o cultivo, o transporte, a distribuição e o preço de venda da maconha passam pelo controle do governo. Esse é também o caso de outras drogas no Brasil, como o álcool e o tabaco.

A situação da Cannabis no Brasil

Segundo um levantamento de 2019 do portal Sechat, de divulgação de conhecimento e informação sobre a maconha medicinal e o mercado da Cannabis no Brasil e no mundo, o Senado e Câmara (que compõem o Poder Legislativo Federal) possuem 21 projetos para a Cannabis, dentre eles, Sugestões Legislativas (SUGs) e Projetos de Lei (PLs) de deputados e senadores.

Um dos projetos citados no levantamento, inclusive, é a SUG 6/2016, aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no dia 03 de dezembro de 2019, melhor explicada no artigo A redescoberta do uso medicinal da Cannabis também da RT, texto parte deste dossiê, a ser publicado nos próximos dias.

Apesar de todos esses projetos, o debate acerca da descriminalização e legalização da maconha no Brasil ainda é bastante defasado e tratado como tabu. Enquanto isso, a guerra às drogas extermina populações.

“Em algum momento, veremos a globalização da maconha”, afirma Cat Packer, formada em direito em Ohio, comandante do Departamento de Regulação da Cannabis em Los Angeles || Foto Vinicios Rosa Modelo: Felipe Campos

Mesmo na ilegalidade, a maconha, como outras drogas ilícitas, é consumida. O Levantamento Nacional de 2019 sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) apontou que 7,7% dos brasileiros de 12 a 65 anos já utilizou Cannabis pelo menos uma vez.

Como não é possível adquirir a planta pelos meios comuns, por não ser um produto regularizado pelo Estado, abre-se espaço para o narcotráfico e para a atuação e o fortalecimento de Estados paralelos.

Com isso, ainda surgem, consequentemente, conflitos entre facções e com o Estado, representado pela Polícia Militar (PM). Na grande maioria das vezes, isso ocorre em regiões periféricas de população em estado de vulnerabilidade social — pessoas com poucos recursos financeiros e, majoritariamente, negras -, que são tragadas a essa guerra.

É, nesse contexto, que dados e relatos absurdos surgem e naturalizaram-se como parte da rotina brasileira: os 80 tiros por engano, o país que mais mata policiais, o assassinato de Ágatha Felix e a execução de Marielle Franco e Anderson Gomes.

Mas, e se…?

“Quem pode e quem não pode usar e vender droga? Ou ainda: quem pode ou não ter acesso à saúde? Quem se pode deixar morrer ou matar — de doença ou de tiro? Quem pode ser preso? De onde vêm essas leis e pra que elas servem? Acho que é por aí” afirma o Doutor em História, Júlio Delmanto, em entrevista ao Brasil de Fato || Foto Vinicios Rosa Modelo: Felipe Campos

É evidente que, por si só, a legalização da maconha não é uma solução completa para um problema tão complexo — que se combina a questões sociais estruturais — como é a guerra às drogas e as violências decorrentes dela. Mas, poderia ser a legalização da planta um passo em direção à superação de alguns conflitos e uma oportunidade para o Brasil?

No artigo “A legalização da maconha e os impactos na sociedade brasileira”, de Árlen Duarte de Sousa, Maria Toledo Roquette, Thaís Faria Baldo e Thiago Henrique Silva, os autores pontuam como benefícios da legalização a diminuição da violência, o enfraquecimento do tráfico e o avanço nas pesquisas acerca de suas propriedades medicinais.

A regularização da Cannabis possibilitaria criar regras — que passariam pelo controle do Estado — acerca das condições de cultivo, industrialização e venda legal da planta. Isso tem o potencial de enfraquecer ou desestabilizar as bases do funcionamento do tráfico de drogas na contemporaneidade.

“Com sua venda legal, os usuários não iriam correr o risco de envolver-se com traficantes e procurariam um jeito mais viável para comprá-la”

Vale a ressalva que o processo de normalização da planta determinaria padrões de apresentação do produto, isso é, ao contrário do que ocorre atualmente, no mercado ilegal, o comprador vai possuir um controle da qualidade daquilo que será consumido, desde o estado da planta — questionável na maconha vendida ilegalmente hoje, especialmente nos “prensados”, sua forma mais comum -, aos níveis presentes de tetrahidrocanabinol (THC) e de outros fitocanabinoides, substâncias psicoativas da Cannabis.

Além disso, como exposto em “A Legalização da Maconha: Uma Análise dos Impactos Econômicos e Sociais”, monografia de Lucas Marcomini, sob a orientação de Rogério Gomes, a legalização da planta abre margem para uma nova arrecadação de impostos sobre o produto.

O artigo, de 2015, desenvolve a estimativa do impacto financeiro da regularização da Cannabis a partir de pesquisas que contabilizam a quantidade aproximada de compradores da planta, a média de valores e as quantidades de compra e venda do produto no Uruguai (somadas aos impostos brasileiros). Pelos cálculos de Gomes e Marcomini, haveria um acréscimo de R$ 7 bilhões à receita anual dos cofres públicos brasileiros.

Assim, uma mudança na política em relação à maconha seria, do ponto de vista econômico, positiva. A regularização da planta aparece, nesse sentido, como uma oportunidade para o Brasil.

Um documentário para refletir mais a respeito da legalização das drogas, e não apenas da maconha, é o Quebrando Tabu, com direção de Fernando Grostein Andrade. A produção inspirou e originou a criação do portal de mesmo nome nas redes sociais || Foto Vinicios Rosa Modelo: Felipe Campos

Convite final

As discussões sobre a Cannabis estão apenas começando e ainda há bastante chão até que mudanças mais dramáticas ocorram, se um dia vierem a acontecer. Enquanto isso, apresentados dados e possibilidades, fica o convite, neste texto, à reflexão.

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