VERDINHA
LEGALIZOU. E AGORA?
Reflexões sobre a flexibilização da Cannabis no Brasil e o que poderia acontecer se ela fosse legalizada.
Por Arthur Almeida
Editado por Giovana Silvestri e João Vitor Custódio
Como discutido em Um tabu construído historicamente, texto inicial deste dossiê da Revista Torta, a relação dos seres humanos com a Cannabis não é de ontem. Mas isso não impede que o tema seja tratado como tabu. No Brasil, o uso recreativo da maconha é um crime federal e a sua plantação e comercialização expressamente proibidos.
De acordo com o levantamento Global Views on Vices 2019, o Brasil é mais conservador que a média global em relação à legalização da maconha. Dos brasileiros entrevistados, 54% acredita que a maconha medicinal deveria ser legalizada no país (a média global é de 57%), já para o uso recreativo, apenas 24%, contra 26% da média global.
A discussão sobre a utilização da maconha, porém, cresce cada vez mais, com mais países flexibilizando a sua legislação que diz respeito à droga, possibilitando explorar os seus benefícios sociais, políticos e econômicos.
Nesse sentido, surgem os termos “liberação”, “descriminalização” e “legalização”, que precisam ser conceitualizados para a compreensão de um debate ainda mais complexo sobre a situação jurídica que se encontra a planta e, por fim, as possibilidades que ela poderia trazer. E é esse caminho que este artigo pretende seguir.
As diferenças entre “liberação”, “descriminalização” e “legalização”
Para além das diferenciações semânticas, os termos carregam consigo também singularidade de consequências jurídicas.
A liberação retira qualquer tipo de normatização, penalização e controle do Estado, deixando totalmente livre o consumo e venda do produto em questão, sem a obrigação de realização de qualquer tipo de controle de qualidade. Nenhum país do mundo, até o momento, liberou a maconha.
Em síntese, a descriminalização é ato sinônimo à absolvição de crimes em determinadas situações. Isso quer dizer que o porte da droga para uso pessoal não será tido como crime. A venda ou o porte de grandes quantidades (o suficiente para ser enquadrado como um caso de tráfico), porém, ainda são considerados como infrações.
Esse tipo de medida tem como princípio reduzir os danos provocados na vida dos usuários, deixando de tratá-los como criminosos — a questão assume caráter de saúde pública. Em Portugal, desde 2001, a maconha é descriminalizada.
Por fim, a legalização exige a participação do Estado na inserção do produto no espaço público. O uso da droga passa a ser legal, isso é, impassível de penalidade. Porém, passa por um processo de regularização, regras rígidas que controlam desde a produção até o transporte, o comércio e a utilização da Cannabis.
No Uruguai, por exemplo, onde a droga foi legalizada, o cultivo, o transporte, a distribuição e o preço de venda da maconha passam pelo controle do governo. Esse é também o caso de outras drogas no Brasil, como o álcool e o tabaco.
A situação da Cannabis no Brasil
Segundo um levantamento de 2019 do portal Sechat, de divulgação de conhecimento e informação sobre a maconha medicinal e o mercado da Cannabis no Brasil e no mundo, o Senado e Câmara (que compõem o Poder Legislativo Federal) possuem 21 projetos para a Cannabis, dentre eles, Sugestões Legislativas (SUGs) e Projetos de Lei (PLs) de deputados e senadores.
Um dos projetos citados no levantamento, inclusive, é a SUG 6/2016, aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no dia 03 de dezembro de 2019, melhor explicada no artigo A redescoberta do uso medicinal da Cannabis também da RT, texto parte deste dossiê, a ser publicado nos próximos dias.
Apesar de todos esses projetos, o debate acerca da descriminalização e legalização da maconha no Brasil ainda é bastante defasado e tratado como tabu. Enquanto isso, a guerra às drogas extermina populações.
Mesmo na ilegalidade, a maconha, como outras drogas ilícitas, é consumida. O Levantamento Nacional de 2019 sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) apontou que 7,7% dos brasileiros de 12 a 65 anos já utilizou Cannabis pelo menos uma vez.
Como não é possível adquirir a planta pelos meios comuns, por não ser um produto regularizado pelo Estado, abre-se espaço para o narcotráfico e para a atuação e o fortalecimento de Estados paralelos.
Com isso, ainda surgem, consequentemente, conflitos entre facções e com o Estado, representado pela Polícia Militar (PM). Na grande maioria das vezes, isso ocorre em regiões periféricas de população em estado de vulnerabilidade social — pessoas com poucos recursos financeiros e, majoritariamente, negras -, que são tragadas a essa guerra.
É, nesse contexto, que dados e relatos absurdos surgem e naturalizaram-se como parte da rotina brasileira: os 80 tiros por engano, o país que mais mata policiais, o assassinato de Ágatha Felix e a execução de Marielle Franco e Anderson Gomes.
Mas, e se…?
É evidente que, por si só, a legalização da maconha não é uma solução completa para um problema tão complexo — que se combina a questões sociais estruturais — como é a guerra às drogas e as violências decorrentes dela. Mas, poderia ser a legalização da planta um passo em direção à superação de alguns conflitos e uma oportunidade para o Brasil?
No artigo “A legalização da maconha e os impactos na sociedade brasileira”, de Árlen Duarte de Sousa, Maria Toledo Roquette, Thaís Faria Baldo e Thiago Henrique Silva, os autores pontuam como benefícios da legalização a diminuição da violência, o enfraquecimento do tráfico e o avanço nas pesquisas acerca de suas propriedades medicinais.
A regularização da Cannabis possibilitaria criar regras — que passariam pelo controle do Estado — acerca das condições de cultivo, industrialização e venda legal da planta. Isso tem o potencial de enfraquecer ou desestabilizar as bases do funcionamento do tráfico de drogas na contemporaneidade.
“Com sua venda legal, os usuários não iriam correr o risco de envolver-se com traficantes e procurariam um jeito mais viável para comprá-la”
Vale a ressalva que o processo de normalização da planta determinaria padrões de apresentação do produto, isso é, ao contrário do que ocorre atualmente, no mercado ilegal, o comprador vai possuir um controle da qualidade daquilo que será consumido, desde o estado da planta — questionável na maconha vendida ilegalmente hoje, especialmente nos “prensados”, sua forma mais comum -, aos níveis presentes de tetrahidrocanabinol (THC) e de outros fitocanabinoides, substâncias psicoativas da Cannabis.
Além disso, como exposto em “A Legalização da Maconha: Uma Análise dos Impactos Econômicos e Sociais”, monografia de Lucas Marcomini, sob a orientação de Rogério Gomes, a legalização da planta abre margem para uma nova arrecadação de impostos sobre o produto.
O artigo, de 2015, desenvolve a estimativa do impacto financeiro da regularização da Cannabis a partir de pesquisas que contabilizam a quantidade aproximada de compradores da planta, a média de valores e as quantidades de compra e venda do produto no Uruguai (somadas aos impostos brasileiros). Pelos cálculos de Gomes e Marcomini, haveria um acréscimo de R$ 7 bilhões à receita anual dos cofres públicos brasileiros.
Assim, uma mudança na política em relação à maconha seria, do ponto de vista econômico, positiva. A regularização da planta aparece, nesse sentido, como uma oportunidade para o Brasil.
Convite final
As discussões sobre a Cannabis estão apenas começando e ainda há bastante chão até que mudanças mais dramáticas ocorram, se um dia vierem a acontecer. Enquanto isso, apresentados dados e possibilidades, fica o convite, neste texto, à reflexão.