Minuciosa Oração: Capítulo VI — Pão Nosso

Fellipe Fraga
Saber Teológico
Published in
7 min readMay 12, 2019

Nessa pequena série, vamos estudar os aspectos da “Oração do Pai Nosso”, que Jesus ensina aos discípulos como modelo, para que sirva como aprendizado sobre nossa forma de orar.

A série é dividida em dez capítulos, falando de cada trecho da oração e explorando a oração de forma cuidadosa.

Gruta do Pai Nosso — Jerusalém — Texto em língua luganda

Pão

O pão é um dos produtos mais conhecidos do mundo, nas suas diferentes formas e variações ao redor do mundo, acredita-se que surgiu há 6.000 anos, na região da Mesopotâmia, atual Iraque. O pão “fermentado” no Egito, e as primeiras padarias são de Jerusalém. É uma das bases da alimentação, fonte de carboidratos, e aqui no Brasil, na sua versão “pãozinho de sal”, é item quase obrigatório no desjejum.

A oração do Pai Nosso inicia com três petições: santificação do nome de Deus, vinda do Reino e o cumprimento da vontade do Eterno. Os pedidos iniciais, como falamos nessa série nas lições III, IV e V, falam diretamente a respeito de Deus, colocando-o em prioridade e regência sobre nossa vida. A segunda parte da oração passa a ser a respeito de um tratamento de nós, servos, em diversos aspectos da nossa vida.

O primeiro desses pedidos é o pão de cada dia.

“Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia.” — Mateus 6:11 (NVI)

Muito se discutia nos primórdios da igreja a respeito do que significaria o pedido ensinado por Jesus. Era, na mente dos pais da igreja, inconcebível que se “baixasse” os pedidos saindo de petições a respeito do Senhor e passassem a clamar pela atenção às necessidades “mundanas”. É assim o ensinamento de John Stott a respeito, em Contracultura Cristã¹:

Alguns comentaristas do passado não conseguiam crer que Jesus pretendesse que nosso primeiro pedido fosse literalmente o pão, pão para o corpo. Parecia-lhes impróprio, especialmente depois dos três nobres pedidos iniciais pela glória de Deus, que pudéssemos descer tão abruptamente a uma preocupação tão mundana e material. Por isso alegorizavam a petição. Diziam que o pão a que ele se referia devia ser espiritual. Os primitivos pais da Igreja, tais como Tertuliano, Cipriano e Agostinho, pensavam que a referência era ao “pão invisível da Palavra de Deus”ou à Ceia do Senhor. Jerônimo traduziu, na Vulgata, a palavra grega usada para “cada dia” com o monstruoso adjetivo “supersubstancial”; ele também se referia à Santa Comunhão. (STOTT, p. 68–69)

Na Reforma, o pensamento toma outra forma, com Lutero e Calvino, que reconhecem que o pedido para que Deus nos conceda o pão de cada dia é “somente” o pedido para que Deus nos conceda aquilo que precisamos no dia.

Devemos ser agradecidos pelo entendimento maior, equilibrado e bíblico dos reformadores. O comentário que Calvino fez sobre a espiritualização dos pais da igreja foi: “Isto é extremamente absurdo.” Lutero teve a sabedoria de ver que “pão” era um símbolo de “todas as coisas necessárias para a preservação desta vida, como o alimento, a saúde do corpo, o bom tempo, a casa, o lar, a esposa, os filhos, um bom governo e a paz” e, provavelmente, deveríamos acrescentar que com “pão” Jesus quis se referir às necessidades e não aos luxos da vida. (STOTT, idem).

O pedido ensinado por Jesus compõe aquilo que foi pregado por ele, expressado de forma sintética pouco após. Quando Cristo nos ensina a buscar primeiro o reino de Deus e a sua Justiça (Mt 6:33), o acréscimo que é falado se refere ao mais básico para a vida: o que comer, beber e vestir:

Em nenhum momento Jesus ensina a respeito do supérfluo, do desnecessário, do luxuoso, do demais. Somos o tempo todo na palavra de Deus apresentados sobre como o Eterno sustenta os seus na adversidade. Os hebreus recebiam o maná no deserto, que lhes supria a necessidade, uma chuva de pão do céu (Ex 16:04).

Quando analisamos o livro de Provérbios, encontramos um trecho que conecta-se à petição de Jesus:

“Duas coisas peço que me dês antes que eu morra: Mantém longe de mim a falsidade e a mentira; Não me dês nem pobreza nem riqueza; dá-me apenas o alimento necessário. Se não, tendo demais, eu te negaria e te deixaria, e diria: ‘Quem é o Senhor? ’ Se eu ficasse pobre, poderia vir a roubar, desonrando assim o nome do meu Deus.” Provérbios 30:7 a 9 — NVI

Clamar pelo pão de cada dia, assim, é primeiramente reconhecer de Deus a sua soberania e a nossa total dependência do Eterno, para que ele nos forneça o necessário, nos forneça o sustento.

Orar pelo pão de cada dia e consequentemente confiar de todo o coração que Deus atenderá ao pedido nos dá a tranquilidade de saber que teremos o necessário no dia seguinte.

O teólogo John Stott conclui sua abordagem sobre o tema:

O pedido para que Deus nos “dê” o nosso alimento não impede, é claro, que as pessoas ganhem a sua própria vida, que os agricultores tenham de arar, semear e colher a fim de fornecer os cereais básicos, nem nos isenta da ordem de nós mesmos alimentarmos os famintos.Pelo contrário, é uma expressão de dependência máxima de Deus, que normalmente usa meios humanos de produção e de distribuição através dos quais ele realiza os seus propósitos. Mais ainda, parece que Jesus queria que seus discípulos tomassem consciência de uma dependência diária. O adjetivo epiousios em “pão nosso de cada dia” era tão completamente desconhecido dos antigos que Orígenes pensava que os evangelistas o tivessem criado. Moulton e Milligan são da mesma opinião nesta nossa geração. Provavelmente deveria ser traduzido por “deste dia de hoje” ou “do dia seguinte”. Seja qual for a forma correta, é uma oração pelo imediato e não pelo futuro distante. Como A. M. Hunter comenta: “Feita de manhã, esta oração pede o pão para o dia que está começando. Feita à noite, pede o pão de amanhã.” Assim, devemos viver um dia de cada vez.

A oração é diária, constante, clamamos a Deus para que nos forneça o sustento hoje, na certeza de que providenciará no amanhã, quando clamaremos novamente.

Quando levamos nossas necessidades a Deus, com a humildade que reconheça nossa total dependência, devemos confiar plenamente na sua provisão. R. C. Sproul assim fala em The Prayer of the Lord²:

Essa petição da Oração do Senhor, assim, nos ensina a chegar a Deus com um espírito de humilde dependência, pedindo a Ele que nos proveja o que necessitamos e para que nos sustente dia após dia. Nós não temos licença para clamar por grandes fortunas, mas somos encorajados a tornar nossas necessidades conhecidas por Deus, confiando que ele proverá. (SPROUL, tradução livre nossa).

A confiança em Deus e a certeza de que sua vontade é superior mesmo na adversidade, reconhecendo Nele razão de gratidão por ser o Deus de nossa salvação.

Reflexão paralela — O pão do céu

Ainda que não seja o objeto do pedido, torna-se impossível não realizar as conexões simbólicas entre o pão e Cristo, sendo o próprio Jesus o Pão da Vida. O evangelho de João narra Cristo falando isso aos discípulos:

Declarou-lhes Jesus: “Digo-lhes a verdade: Não foi Moisés quem lhes deu pão do céu, mas é meu Pai quem lhes dá o verdadeiro pão do céu. Pois o pão de Deus é aquele que desceu do céu e dá vida ao mundo”. Disseram eles: “Senhor, dá-nos sempre desse pão! “Então Jesus declarou: “Eu sou o pão da vida. Aquele que vem a mim nunca terá fome; aquele que crê em mim nunca terá sede.

João 6:32–35

Pedir que Deus nos forneça o “pão de cada dia” nos leva a refletir no quanto do Pão da Vida nós temos nos alimentado. Qual a nossa busca diária para termos desse Pão para que não pereçamos; sendo Cristo o pão perfeito, com que “tipo de farinha” temos tentado sustentar nossa vida?

Conclusão

O que Jesus nos ensina na oração é clamar pelo sustento do dia sem nos preocuparmos com o amanhã, sabendo que Deus seguirá nos sustentando, encorajados a expressar para Ele, na sua soberana e santa vontade, as nossas necessidades básicas, para que recebamos do Eterno as provisões, ainda que imerecidas, para a vida física e a vida espiritual, confiando de tal forma nEle que vivamos em total relacionamento e sintonia, provando diariamente do amor do Pão da Vida.

John Piper, no sermão “Senhor, ensina-nos a orar”, assim fala: “Nós não pedimos riquezas, mas somente o suficiente para viver. Queremos ser saudáveis e queremos uma mente e um corpo que funcionam. Sustenta-nos para que sejamos capazes de cumprir o nosso chamado.”

O Senhor tem nos sustentado, dia após dia, e tudo para sua honra e glória.

Non nobis, Domine, sed nomini tuo ad gloriam.

Em Cristo,

Fellipe Fraga.

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Referências:

¹ STOTT, John. Contracultura cristã — A mensagem do Sermão do Monte. ABU Editora. São Paulo, 1981

² SPROUL, R.C. — “What Does Give Us this Day Our Daily Bread Mean?”, de The Prayer of The Lord. Ligonier Ministries. 2016. Disponível em: https://www.ligonier.org/blog/what-does-give-us-day-our-daily-bread-mean/

³ PIPER, John. “Senhor, Ensina-nos a Orar”. Desiring God Ministries. 2018. Disponível em: https://voltemosaoevangelho.com/blog/2018/08/senhor-ensina-nos-a-orar/

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