Tailândia-Brasil #07: Ainda existe vida aqui fora

Matheus de Souza
Expresso Tailândia-Brasil
4 min readJul 17, 2020
Com meus amigos Bruno, Sophia e Sam vivendo em nossa realidade alternativa na ilha de Pha Ngan.

Este texto faz parte de uma troca de correspondências entre os escritores Matheus de Souza e Murillo Leal. Durante a quarentena, toda sexta-feira, um dos autores escreve uma carta no Expresso Tailândia-Brasil.

Leia a carta anterior do Murillo aqui.

Murillo, seu palestrinha ululante,

Te escrevo também com duas semanas de atraso para que não te sintas mal por não estares dando conta de ti.

Em minha última carta te escrevi que (e aqui de forma totalmente narcisista me autoparafraseio) "a sensação deste lado do globo é que, fuso-horário à parte, o espaço-tempo se tornou um conceito obsoleto".

Teu sentimento descrito na última carta é o mesmo de quando tudo isso começou aqui na Tailândia enquanto vocês viviam normalmente no Brasil. A boa nova que te trago desta minha realidade alternativa em outro espaço-tempo é que tudo isso vai passar. E sem a necessidade do uso de hidroxicloroquina.

Te escrevo isso porque ainda existe vida aqui fora. Ainda sinto o vento na cara. Ainda sinto o cheiro agridoce da chuva. Ainda me emociono com cada pôr do sol.

Se me escrevestes dizendo que te sentes como um vulcão adormecido, te digo, Murillo, sem medo de parecer exagerado, que yo soy um vulcão em erupção.

Eu tinha esquecido como é bom viver.

Se quando começamos essa troca de cartas eu estava preso num apartamento cafona e minúsculo em Chiang Mai, hoje te escrevo num loft desses de Pinterest na beira da praia na paradisíaca Koh Pha Ngan (“koh” em tailandês significa ilha).

Dia desses até me peguei pensando se não estaria eu vivendo numa ilha tipo aquela de Lost.

Digo, será que eu e todos os amigos que fiz nesta ilha estamos vivos? Será que essa não é, de fato, uma realidade alternativa e estamos aqui tentando resolver nossas pendências com o universo?

A sensação é que os ocidentais presos na ilha estão tentando fugir de algo que ficou no passado. Pha Ngan soa como um recomeço. Todos estão inseridos em narrativas que envolvem yoga, meditação, veganismo, sexo tântrico e abraços em árvores. O exato contrário do teu parágrafo que contém a magnífica frase "pau no cu da Monja Cohen e toda aquela calmaria!".

Meu palpite para tanta calmaria é que todos estão lutando contra seus próprios demônios enquanto aplaudem o pôr do sol. No fim do dia, como diria Rogério Skylab, é dedo no cu e gritaria.

Mas, sem medo de soar tilelê, viver nessa ilha mudou o conceito que eu tinha de liberdade.

O jeito mais fácil de se locomover em Pha Ngan é alugando uma scooter. Eu jamais tinha pilotado uma moto na minha vida –– ou seja, nem habilitação para tal possuo ––, mas resolvi correr o risco.

Que bom que fiz isso, Murillo.

Liberdade pra mim hoje é sentir o vento na cara enquanto cruzo a selva tailandesa pilotando uma motoneta envenenada, sem capacete, sem camisa, sem sapato e, pasmem, na mão-inglesa.

O amigo sei que não me julgará pelo parágrafo acima, mas talvez aquele leitor torcendo pelo meu cancelamento questionará: "como assim sem capacete?". E aqui poderíamos facilmente entrar numa discussão entre o que é imoral e o que é ilegal.

Sei do perigo, mas sei também como funcionam as leis no país onde vivo. E, mais do que isso, sei do gosto da liberdade de sentir o vento na cara, os cachos nos olhos, os olhos no tempo, como cantam os caras do Terno Rei.

Adorei (e adotarei) teu conceito de fraldas sociais. No sul, mas não sei se no Paraná, costumamos usar a expressão "larguei de mão". Não sei se foi Pha Ngan, mas minha vibe agora é essa. Eu costumava entrar em debates fervorosos com pessoas que não estão dispostas a debater; querem apenas estar certas.

Seguindo esse teu raciocínio, alguém também do sul, que fala "tu" e não "você", me disse algo nessa linha otimista de que a pandemia vai ensinar algo grandioso para a humanidade.

Pessimista por natureza que sou te digo, Murillo, que vai o caralho!

Infelizmente, a história mostra que não. O holocausto da Segunda Guerra Mundial ainda não completou 100 anos e seguimos cometendo os mesmos erros. Como nossos pais, já diria o grande Belchior.

O que me faz refletir sobre essa morte sem velório, Murillo, é a capacidade do brasileiro de ter um complexo de vira-lata até na tragédia.

Quando a pandemia matou milhares na Itália o brasileiro se comoveu, fez posts nas redes sociais enviando apoio, mas agora que é com a gente, com o nosso povo, é só uma gripezinha. Como se o COVID-19 italiano fosse de uma melhor procedência, sabe? Ele mata de um jeito diferente, de um jeito de primeiro mundo, não é como o vírus brasileiro.

Para não acabar a carta nessa bad trip masturbatória pandêmica, queria dizer que Pha Ngan é também a ilha do poliamor. As línguas por aqui se misturam e não estou necessariamente falando sobre idiomas.

Se bem que por aqui sigo hablando espanõl.

Un abrazo,

Matheus

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Matheus de Souza
Expresso Tailândia-Brasil

Escritor, educador e palestrante. Autor de “Nômade Digital”, livro finalista do Prêmio Jabuti.