LIBERDADE DEMAIS, DIREITOS DE MENOS.

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
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5 min readMay 28, 2021
A Liberdade Guiando o Povo (1830), de Eugène Delacroix

“(…) Mentiras fascistas são enunciados ideológicos que distorcem o passado e o presente (…) separadas da ideologia dos líderes do culto, as palavras podem ter diferentes significados. Mas quando contextualizadas nos discursos trumpistas ou bolsonaristas, elas não refletem coisa alguma além das fantasias, do racismo e dos preconceitos de seus líderes. (…) Quando as palavras se tornam slogans, também se tornam afirmações de fé. (… substituindo) a razão de modo a negar, distorcer, reformular e, afinal, mudar a realidade.” — Federico Finchelstein, historiador, professor da New School for Social Research (Nova York) e autor de A Brief History of Fascist Lies.

“O povo trabalhador continua ao lado daquele que nunca o abandonou e sempre defendeu o direito ao trabalho. Essa é a mensagem das ruas nesse 1°de maio. As imagens de ontem dão forças para nosso PR continuar a incansável luta pelo Brasil e pela LIBERDADE (sic) dos brasileiros“ — General Luiz Eduardo Ramos, no Twitter.

“Não há cristianismo sem vida em comunidade, sem a casa de Deus e sem o ‘dia do Senhor’. Os verdadeiros cristãos não estão dispostos jamais a matar por sua fé, mas estão sempre dispostos a morrer para garantir a liberdade de religião e de culto” — André Mendonça, ministro-chefe da Advocacia Geral da União, ao defender a manutenção das atividades de igrejas durante a pandemia.

“Aos que teimam em desunir lembre-se (sic) que existe algo a perder mais importante que a própria vida: a liberdade” — Jair Bolsonaro, no Twitter.

Na noite de 27 de março de 2021, o governo Bolsonaro anunciou que apresentaria ao STF uma ação direta de inconstitucionalidade questionando medidas restritivas adotadas pelos estados do Paraná, do Rio Grande do Norte e de Pernambuco durante a pandemia. É público e notório o desagrado do presidente em relação às tentativas de reduzir a circulação de pessoas como modo de coibir a disseminação do coronavírus.

Na nota divulgada à imprensa pela Advocacia-Geral da União acerca da ação no STF, a palavra “liberdade(s)” aparece duas vezes.

Quantos anos você tinha quando notou que o termo “politicamente incorreto” é um sinônimo disfarçado para “intolerância”? E quando você percebeu que a defesa dos “valores da civilização ocidental” e a “beleza clássica” é apito de cachorro para conjurar racismo e xenofobia? E no momento em que “liberdade de expressão” e “discurso de ódio” passaram a ser sinônimos, você estava ligado?

Esses são exemplos de palavras e expressões capturadas pela retórica reacionária e que têm seu significado alterado para servir de slogans ideológicos. A conexão entre o totalitarismo e a corrupção da linguagem não é um conceito novo. George Orwell abordou o tema em 1984; Roland Barthes passeou por ali também; mais recentemente, Victor Klemperer estudou a fundo o assunto.

Em 2021, aumentou a frequência com que a palavra “liberdade” vem aparecendo nas falas dos bolsonaristas, refletindo a ressignificação do termo nos discursos dos conservadores norte-americanos e dos movimentos populistas de extrema-direita na Europa. De acordo com essas ideologias, a “liberdade” — um termo de conotação inquestionavelmente positiva — só é possível na direita; com suas utopias “socialistas” e igualitárias, a esquerda e o progressismo são seus inimigos. A liberdade dos indivíduos sempre deve prevalecer sobre essa ilusão conhecida como “bem comum”.

No contexto do populismo reacionário do século 21, uma mensagem implícita vem de bônus: um líder forte, centralizador e personalista, que governa desimpedido pelos freios e contrapesos da democracia representativa, é o exemplo perfeito da liberdade da qual todos os cidadãos deveriam gozar. (Todos? Não todos, só os cidadãos-de-bem.)

O sucesso de uma ideologia reacionária depende, em grande parte, da capacidade de seus seguidores de acreditarem em uma realidade alternativa. Esse universo paralelo é apresentado como uma revelação exclusiva ao fiéis: o que se vê nos jornais, na TV, na fala das autoridades e nos artigos dos cientistas deve ser desconsiderado, e apenas os fatos autorizados pelo líder do culto são válidos. E isso passa pela reconfiguração do sentido de palavras-chave, entre as quais “liberdade” parece ser a bola da vez.

Vejam vocês: apesar da incomensurável quantidade de evidências contrárias, o desempenho do atual governo brasileiro ainda é considerado por um entre cada quatro brasileiros como “bom ou ótimo”. Se isso não é sintoma de que um entre cada quatro brasileiros vive em uma realidade diferente do resto da população, nada mais é. Nesse sentido, o bolsonarismo é vitorioso na missão fundamental de recriar a realidade para fidelizar sua base de seguidores.

No peculiar universo paralelo que os bolsonaristas tentam criar com hashtags, lives e frases de efeito, “liberdade” vem tomando o lugar de um termo que todo reacionário abomina: “direitos”. O ethos bolsonarista considera a proteção de direitos — que igualam os cidadãos e devem ser garantidos pelo estado — como uma demonstração de fraqueza. Só os oprimidos, os inadequados, os marginais precisam reivindicar seus direitos, e esperar que o estado os proteja. A liberdade não é reivindicada: ela é exercida ativamente pelos cidadãos-de-bem, os ungidos, os fortes, os adequados ao modelo de sociedade proposta. Uma lógica perfeita para o darwinismo social imaginado pelos seguidores do mito.

Dessa forma, a iniciativa privada deve ter a “liberdade” de agir sem qualquer controle estatal. As empresas devem ter a “liberdade” de comprar e distribuir vacinas contra a Covid-19, passando a perna no SUS. A “liberdade” de frequentar igrejas evangélicas deve ser mantida mesmo diante de uma emergência de saúde pública. A “liberdade de opinião” é usada como salvo-conduto para defender o governo, contrariando o bom senso e mesmo a tão decantada ética jornalística. E, claro, o líder máximo deve ter a liberdade de falar qualquer disparate negacionista para justificar sua estratégia de (não) enfrentamento da pandemia. Aos cidadãos de segunda classe, uma única liberdade é reservada: a de trabalhar.

Em 2022, de acordo com o próprio Bolsonaro, testemunharemos uma tentativa de auto-golpe após a (cada vez mais inevitável) derrota do atual presidente nas eleições. Um auto-golpe que objetiva negar à maioria da população seu direito — não, sua liberdade — de escolher seus governantes pelo voto direto. Vamos dar a ele a liberdade de seguir adiante com seu plano?

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)