O bebê, a chupeta e o bilionário

Protestamos pelo direito (?!) de trabalhar de graça para um troll criptofascista, em nome da… liberdade de expressão?

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
6 min readSep 17, 2024

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Quando eu tinha um ano e alguns meses, pelos idos de mil-novecentos-e-TV-preto-&-branco, eu chupava chupeta 24h/7d. (É o que conta minha mãe. Tenho boa memória, mas nem tanto.) À certa altura, mamãe resolveu que não tinha cabimento: uma criança daquele tamanho, ainda com chupeta na boca. Então ela tomou o troço de mim. Conta ela que passei o resto do dia me esgoelando de tanto chorar. Chorei, chorei, chorei e, enfim, caí no sono. Na manhã seguinte, a pobre mulher me devolveu o mamilo de borracha. E — conta ela, conta ela — eu apenas olhei para a peça com indiferença. Nunca mais botei uma chupeta na boca. (Até hoje.)

Foto meramente ilustrativa. Não sou eu.

Lembrei dessa história na manhã de hoje (10/09), quando, inesperadamente, o app do Twitter voltou a funcionar no meu celular. (Você chama o Twitter de X? Alguém chama?) A plataforma foi bloqueada no dia 30 de agosto em todo o território nacional, por descumprir a determinação do Supremo Tribunal Federal de apontar um representante legal no país. E o negócio realmente parou: no app (ao menos no meu app), a timeline congelou e não era mais possível postar coisa alguma. Até hoje de manhã. Não durou muito (ao menos no meu app). Quando voltei da corridinha matinal, antes das 9h, a parada já havia recongelado.

Minha reação ao breve retorno da plataforma foi parecida com a que tive diante da chupeta, quase cinco décadas atrás. O Twitter é, há muitos anos, meu principal canal de mídia social. Praticamente não acesso mais o Facebook e uso o Instagram só para divulgar meu projeto musical, o Borealis. Sobre o LinkedIn, vocês podem clicar neste link para ler minhas considerações.

Desde 2008, gastei incontáveis horas, que poderiam ter sido usadas de modo mais produtivo, “criando conteúdo” para postar no Twitter, em busca de “engajamento” e de divulgação para minha “personal brand”. O acirramento dos debates políticos, acentuado desde o impeachment de Dilma Rousseff, aumentou ainda mais o tempo que eu gastava na gaiola do passarinho azul. Quando Elon Musk adquiriu o controle da companhia, em 2022, considerei seriamente saltar do barco. Não saltei. Fiquei lá, esbravejando, mas fiquei.

Esses dias passados sem o Twitter por cortesia do STF tiveram o mesmo efeito da chupeta sequestrada. Sofri os efeitos da abstinência num primeiro momento; o app da plataforma era o primeiro no qual clicava no celular logo pela manhã, para checar as tretas, memes e notícias. Ontem, no breve período em que o lance voltou à atividade, eu apenas fiquei ali olhando. Não tinha o que postar, não tinha vontade de verificar os trending topics. Tomaram-me a chupeta virtual, fiquei sem ela alguns dias, e o efeito cold turkey limpou meu organismo da dependência.

Nós, usuários do Twitter, vivemos hoje uma situação paradoxal. O homem mais rico do mundo quer que trabalhemos de graça para ele. (Porque — não se enganem — é isso que fazemos no Twitter, no Instagram, no Facebook e no TikTok. Trabalhamos de graça para os homens mais ricos do mundo.) E mesmo assim, o novo proprietário vem se empenhando, conscientemente, em piorar as, digamos, “condições de trabalho” de seus operários.

Se não, vejamos:

Este último tópico é o cerne do imbroglio que levou ao bloqueio do Twitter e no Brasil. E vai afinal causar meu afastamento da brincadeira. A deterioração promovida na plataforma tem, segundo Musk, o objetivo de proteger a liberdade de expressão. Mas não para todos, e sim apenas para quem defende crenças semelhantes às dele… que pendem, invariavelmente, ã direita. Do mesmo modo invariável, ao aproximar-se da política brasileira, Musk associou-se ao que há de pior no cenário local. Engajou-se na guerra golpista contra o STF, ofendendo a instituição e fazendo troça da soberania nacional.

O bilionário não apenas quer que trabalhemos de graça para ele, produzindo conteúdo sob condições cada vez mais insalubres. Também quer que, direta ou indiretamente, nos engajemos em sua cruzada de subversão e desestabilização. Postar no Twitter hoje é contribuir para o poder e a influência de Musk — não importa se o criticamos. Não existe o engajamento crítico na internet. Todo RT é positivo, mesmo se não concordamos com o que foi postado.

O que me impede de largar o Twitter como larguei a chupeta? O diabinho no meu ombro sussurra: “Ora, e meu engajamento? E a comunidade que construí desde 2008? Onde vou postar minhas opiniões, piadas, memes, tretas?” Bah, cara. Ninguém está vendo, ninguém engaja, ninguém se importa. O engajamento orgânico nas mídias sociais morreu em 2014, assassinado por Mark Zuckerberg. Sem uma estratégia de marketing para maximizar sua presença nas redes (leia-se: $), suas opiniões, piadas, memes e tretas serão vistos por… ninguém. A “comunidade” que construí? Pouco menos de 2 mil seguidores, em quase 16 anos trabalhando de graça. Se o Twitter não entrega mais resultados para titãs da mídia social como Mark Cuban (8 milhões de seguidores), não é pra mim que vai entregar. Continuar, pra quê? Para reforçar o poder de um troll que trabalha contra a democracia brasileira, e oferece um serviço que piora a cada dia em troca? Em nome da… liberdade de expressão?

Conforme escrevi no Medium, apesar de vislumbrar o fim da linha do Twitter, não pretendia aderir a outra plataforma. Mas já andei passeando pelo Threads (não gostei) e pelo Bluesky (um Twitter genérico e com menos recursos). Postei nada, ou quase nada, por enquanto. A ideia de voltar a trabalhar de graça — desculpe, recomeçar a construir uma nova “comunidade” do zero — me parece, hoje, meio besta. Amanhã, não sei.

Só sei que, após o detox forçado, desinstalei o app com a marca do “X” do celular. Chega de chupeta.

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)