O PREÇO DO PROGRESSISMO É A ETERNA PROBLEMATIZAÇÃO.

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
Published in
5 min readJun 12, 2020

Acontece todo dia em uma rede social perto de você. E não adianta alertar o pessoal. O ciclo é mais ou menos o seguinte:

  1. Reacionário posta algum conteúdo racista/misógino/machista/sociopático em geral.
  2. Progressistas se indignam com o conteúdo reaça e passam a “expô-lo”.
  3. O público reaça não se incomoda com a exposição, e outras pessoas “neutras” que nunca teriam tido contato com o tal conteúdo ofensivo passam a conhecê-lo.
  4. Reacionário: WIN!

Um ciclo similar, mas com um percurso diferente, também é fácil de identificar.

  1. Progressista posta algum conteúdo feminista/esquerdista/identitário/afirmativo em geral.
  2. O público reaça critica, e o público progressista se divide: alguns elogiam, outros debatem o lugar de fala, terceiros xingam e ofendem o postador, quartos dizem que o ponto levantado não é importante e por aí vai.
  3. As pessoas “neutras” também se dividem: alguns concordam, outros discordam, uns se assustam com os rumos do debate, outros rejeitam a ideia por causa do “radicalismo” de alguns argumentos.
  4. Reacionário: …WIN!

O primeiro ciclo tem uma explicação simples. Como já discutido em outro post neste blog, conteúdos que apelam à emoção têm um potencial de viralização muito maior que outros que busquem provocar reflexão ou burilar algum pensamento mais abstrato. Esse mecanismo de reação imediata favorece, claro, postagens reacionárias (reacionário = aquele que reage). E não adianta entendermos, no nível racional, que “expôr”conteúdos nocivos só ajuda a divulga-los. São postagens projetadas para inflamar os espíritos; se a inflamação é contra ou a favor, não importa para o postador. O objetivo foi atingido.

O segundo ciclo está relacionado à própria natureza do pensamento progressista. Não há progressismo sem problematização — de preconceitos, de comportamentos, de ideologias, de políticas, do mundo enfim. E esse método se estende às próprias ideias progressistas. Um exemplo recente ocorreu após a súbita notoriedade ganha pelo movimento antifa brasileiro, no embalo das manifestações pró-democracia estimuladas pelos protestos raciais nos EUA. De súbito, ~todo mundo~ vestiu a camisa do antifascismo, surgiram memes, slogans, camisetas e o escambau.

A confusão a respeito da história e da atuação dos antifas foi inevitável, assim como a problematização da nova popularidade das bandeirinhas preta & vermelha. Vimos antifas tentando preservar a essência de seu ideário. Vimos progressistas de outras vertentes “flexibilizando” o movimento, em busca de adesão na luta contra o bolsolavismo. Vimos isentões pegando o bonde andando e se declarando “antifascistas e anticomunistas” (?!?). E viu-se a problematização da problematização, com alguns questionando o legítimo direito dos próprios antifas se manifestarem.

Ou seja, na prática o pensamento progressista precisa vencer duas barreiras para atingir o público: o ataque dos reacionários e a autoproblematização defensiva dos próprios progressistas.

Visto aqui: https://twitter.com/brazilianboomer/status/1270831200920383489

Quando se questiona — isto é, se problematiza — a normalização de uma realidade nociva, humilhante ou perigosa para um determinado grupo social, isso é progressismo. O feminismo nasceu da problematização do patriarcado. Os direitos trabalhistas nasceram da problematização da desigualdade de condições na relação patrão-empregado. O abolicionismo nasceu da problematização da escravidão. O movimento sufragista nasceu da problematização da proibição do voto feminino. E por aí vai. (Imagine se Joaquim Nabuco desistisse de liderar a bancada abolicionista porque ouviu um “Descansa, militante!” direcionado a ele nas ruas da Corte?) O progressista é um chato porque sempre problematiza a realidade vigente; é muito mais simpático e menos problemático deixar as coisas “do jeito que sempre foram”.

E é aí que o suíno fêmea desendireita a própria cauda. O progressismo floresce na problematização… e, no afã de questionar cada vez mais (em busca de melhorias), acaba por questionar a si mesmo. Na verdade, eu diria que questiona a si mesmo com uma agudeza jacobiniana que não aplica a seus maiores opositores.

É por isso que a tal cultura do cancelamento é um fenômeno tipicamente progressista. A barra moral que o progressismo PRECISA impor a si mesmo é alta, muito alta. Isso é necessário quando seu objetivo final é convencer as pessoas da validade de ideias que, muitas vezes, contrariam o senso comum. Voltando ao Nabuco citado acima. O status quo no Brasil imperial incluía a normalização da escravidão. Aí o cidadão-de-bem da Corte ouvia a discurseira abolicionista e dizia a si mesmo: “Ora, mas o sujeito pra defender um absurdo desses só pode estar a soldo de algum subversivo iluminista…”

O esporte favorito do reacionário é pegar o progressista no flagra, qualquer flagra. É preciso que não paire dúvida alguma sobre a retidão, a coerência e o desapego de alguém que milita em prol de minorias, ou da proteção ao meio ambiente, ou pela igualdade de gênero. Adaptando a frase do Millôr: o idealista precisa estar acima de qualquer suspeita, a qualquer momento, porque em algum momento será cobrado. É por isso que nenhum vacilo passa impune, e é por isso que muitas vezes o alerta parte das próprias fileiras amigas. Daí a autoproblematização instintiva, que também alimenta os cancelamentos.

Chega a ser injusto: enquanto os reacionários não se importam em verem sua intolerância e seus preconceitos (suas imperfeições humanas, enfim) expostos, os progressistas precisam manter padrões ascéticos de pureza de atos e pensamentos. A mínima incoerência, o menor deslize, o ato falho mais insignificante faz com que o mundo desabe sobre a cabeça do progressista — uma avalanche muitas vezes iniciada pelos próprios aliados. Enquanto isso, os reaças nadam de braçada. Do que importa expor o machismo, a incitação ao ódio, a falta de empatia ou a mera crueldade deles, se eles enxergam essas falhas como virtudes?

A problematização sempre será parte da práxis progressista. Mas a eterna problematização pode ser um preço alto demais. Contestar é necessário. Contestar tudo, sempre e de forma instintiva, não é apenas contraproducente: é meio caminho andado para a negação da realidade. E pode aproximar até o mais bem intencionado progressista do modus operandi reacionário. O momento demanda clareza e assertividade, não divisão. Que tal mantermos o foco apenas nas batalhas que interessam… e a problematização apontada apenas para os reaças? Ao menos nas redes sociais? Vale a pena tentar.

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)