PRECISA ACABAR: o alfa-nerd

Eles* estão em todos os espaços virtuais, tornando a vida na internet insuportável

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
9 min readNov 29, 2023

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À esquerda: o arquétipo clássico do nerd. À direita: o nerd autoconfiante e extrovertido de 2023

*O gênero masculino será usado indiscriminadamente neste texto, refletindo a elevada porcentagem de homens nas fileiras alfa-nerd. Há mulheres na turma também, mas são minoria.

Seguidores de divas pop batendo boca. Youtubers dando palpites messiânicos sobre política, investimentos, carreira, masculinidade. Adolescentes escondidos atrás de avatares de anime, pregando o fim do estado. Fãs de bonecos, de filmes de bonecos, de videogames de bonecos, de revistinhas de bonecos, de séries de bonecos. Adoradores da Tesla e da Space X. Se você mantém presença nas mídias sociais — e quem não mantém? — você esbarra todo dia com um, mais de um ou todos esses tipinhos desagradáveis, e se vê arrastado, contra a vontade, para as ~polêmicas~ criadas por eles.

Independentemente do nicho de atuação, todas as pestes descritas acima pertencem a uma única categoria de persona virtual: o alfa-nerd. Dos trolls que fazem das mídias sociais esse inferno que conhecemos, é um dos mais irritantes e nocivos. Ao combinar a chatice monotemática à arrogância e ao exibicionismo crônico, o alfa-nerd se torna insuportável para todo mundo… exceto para seus milhares, às vezes milhões de seguidores.

Como se sabe, o nerd é uma pessoa obstinada e obcecada por algum tópico em particular a ponto dessa obsessão se tornar o ponto central de sua imagem social. Entretanto, o nerd ordinário tem como característica a inabilidade de se relacionar com outras pessoas. O alfa-nerd não enfrenta esse problema. Sua extroversão e a convicção de estar sempre certo o tornam um protagonista natural nas plataformas online. O tom de autoridade no discurso vem do excesso de tempo dedicado a estudar o objeto de sua paixão.

Enquanto o nerd 1.0 se contentava em compartilhar sua obstinação apenas com seu círculo de iniciados, o alfa-nerd — empoderado pelas mídias sociais — quer enfiar seu evangelho goela abaixo de todo mundo. O nerd costumava ser discreto a respeito de suas esquisitices, para melhorar as chances de interagir com os “normais”. O alfa-nerd as exibe orgulhosamente, como uma bandeira. Errados somos nós, que não acompanhamos sua paixão.

O alfa-nerdismo atingiu seu ápice em 2022, quando Elon Musk adquiriu o controle do Twitter, hoje X (sic). Musk é o santo padroeiro da categoria. Nerd de feitio clássico (programador de computador aos 10 anos, sofreu bullying na escola, fã de sci-fi, bacharel em física), reinventou-se como homem-mais-rico-do-mundo, megaempreendedor, palestrante e palpiteiro profissional em uma variedade de tópicos controversos.

Diferentemente dos nerds tradicionais, Musk sempre se caracterizou por elevados níveis de autoconfiança e impulsividade — expostas em uma torrente incessante de hot takes (quase sempre errados) sobre todo tipo de assunto, dos seriíssimos aos ultrabanais. Ao comprar a plataforma do passarinho azul, o empresário garantiu o maior megafone do mundo para divulgar suas trolladas. Todo alfa-nerd deseja ter a marra de Musk e, acima de tudo, seu alcance nas mídias sociais (mais de 150 milhões de seguidores no Twitter).

Um breve histórico da nerdice

Na era pré-cambriana (a década de 1980) a coisa era mais fácil de entender. Havia o playboy e havia o nerd.

O playboy era o cara que se definia por sua interação social com o mundo exterior. O que importava (importa) ao playboy era como as pessoas o viam; como ele poderia ganhar alguma vantagem a partir de sua rede de relacionamentos; como se divertir às custas dos outros. Etc.

O nerd, em contraposição, era voltado para seu próprio interior. Introspectivo, ele se definia por suas paixões e obsessões. O fracasso social do nerd era um círculo vicioso: tímido por natureza, ele dedicava seu tempo a si mesmo, o que atrofiava seu traquejo com o resto da humanidade… e retroalimentava a própria timidez. (Falo por experiência própria.)

O yin-yang entre playboys e nerds, claro, precede os anos 1980. A história da humanidade é feita de atritos entre os fazedores e os pensadores, entre os impetuosos e os sensíveis, entre os atletas e os CDFs. Todo Dean Martin precisa de um Jerry Lewis para encher seu saco; todo Lewis precisa de um Martin para se considerar (quietamente) superior e evoluído.

Na década de 1990, o cenário começou a mudar de figura. Em sua edição número 3 (janeiro de 1994), a revista General dedicou uma reportagem de capa a um novo perfil de nerd. A redefinição do termo tirava o estigma de segregação social e argumentava: o estereótipo do loser quatro-olhos era coisa do passado. Até Ayrton Senna (!) era citado como exemplo de nerd vitorioso e popular.

Luiz Thunderbird, então recém-saído da MTV, era um dos personagens da reportagem da General

Já no começo dos anos 2000, o saudoso portal Fraude.Org mantinha uma coluna dedicada ao mundo nerd, na qual uma teoria instigante era sustentada — qualquer um poderia ser nerd, mesmo que não parecesse ser (ou que negasse a condição). Quando a pessoa deixava o interesse por um assunto específico tornar-se o principal traço de sua personalidade, ela se tornava um nerd. Podia existir o nerd de carros tunados, de heavy metal, de mixologia, de telenovelas. Qual a diferença entre um sujeito fluente em klingon e outro capaz de citar de cor os 22 jogadores do ASA de Arapiraca no Campeonato Alagoano de 1973?

Pois bem. No começo dos anos 2000, a internet ainda era, bem, coisa de nerd. Mídia social era lista de e-mails. Em 2023, todo mundo tem acesso à web, e as portas de entrada são as megaplataformas online, nas quais todo mundo quer falar ao mesmo tempo. E os alfa-nerds querem falar mais alto que todo mundo.

Do ICQ ao TikTok, os alfa-nerds foram progressivamente favorecidos pelas mecânicas e algoritmos das plataformas. Elas recompensam quem grita mais alto e quem gosta de bater boca. A introspecção roots foi suprimida; a vertente dominante hoje não se importa em incomodar os outros ou em “parecer estranha” para os normais. Eles aprenderam que, na mídia social, gerar incômodo ou estranheza é o que vale cliques. Nesse sentido, tornaram-se indistinguíveis de sua antítese natural, os playboys.

As facções mais irritantes de alfa-nerds

Os alfa-nerds podem parecer irreconhecíveis para os acostumados ao arquétipo padrão nerd. Mas, não importa o quão populares e/ou desinibidos sejam, não se enganem: eles ainda são nerds.

O superstan

O tipo mais ubíquo de alfa-nerd. Há superstans de toda sorte de figuras da cultura pop, mas não para por aí. Inicialmente, a coisa abrangia apenas alvos previsíveis (cantoras, Marvel, DC, Star Wars, videogames etc.). Depois se alastrou para campos considerados “adultos” (livros, filmes) e/ou “másculos” (torcidas organizadas). E passou a incluir, pasmem, fãs-clubes de empresas, políticos, marcas em geral, influencers. Nem conflitos armados escapam: nas guerras ainda em curso, Ucrânia, Rússia, Israel e Hamas contam com seus próprios séquitos de superstans. Enfim, qualquer coisa com presença online que seja capaz de atrair a atenção. O tópico pode variar; o que não varia é o modus operandi.

Todo superstan é movido por uma paixão irracional. No entanto, nas mídias sociais, ele devota incontáveis horas tentando construir argumentos “racionais” para justificar sua paixão. Não basta falar o tempo todo da coisa amada, é preciso também convencer o resto da internet de que o amor pela coisa amada é a única atitude justa e correta. Toda sorte de “evidência” é usada pelos superstans para “provar” que eles estão do lado certo e os “inimigos” estão errados. Nesse sentido, não há diferença entre o tosco torcedor de futebol que saca estatísticas de scout para provar que seu time é o “melhor” e os melífluos swfities/anitters/cactos/sonsers que soltam fogos a cada “recorde” batido no Spotify por suas amadas.

O coach (de qualquer porra)

Esse alfa-nerd venceu na vida e quer provar que pode transformar qualquer um em um vencedor. O detalhe é que ele, previamente, fracassou em tudo o que tentou… e, inexplicavelmente, tornou-se especialista em sucesso. O coach baseia seus ensinamentos num arcabouço teórico (desdobrado em cursos, livros, vídeos e palestras), mas a real mercadoria que ele vende é a autoconfiança. Basta acreditar, superar seus limites, acordar cedo e encarar a escalada do Pico da Neblina ou uma maratonazinha. Morreu? Faltou resiliência.

O redpill palestrinha

O redpill básico já é chato pacaralho sozinho, quieto no seu canto. Ao mesclar suas paranoias sexistas com a eloquência vazia do coach, vira essa bosta aí. Os caras transformam suas inseguranças e inadequações em “guias de masculinidade”, mas não conseguem disfarçar o tremendo esforço que fazem pra gostar de mulher. Como derivado do coach, este alfa-nerd também busca descolar um troco falando bobagens na internet e em encontros presenciais. Às vezes dá merda.

O ancapinho juvenil

Ele sempre se esconde atrás de um avatar de anime. Gosta de se engajar em discussões sobre o tamanho do estado, privatizações, regulação do mercado financeiro, taxas e aduanas. E seu grito de guerra é sempre algo do tipo “IMPOSTO É ROUBO!”. O problema é que ele geralmente só tem 13 anos e nem sabe do que está falando. Um subgrupo especialmente irritante são os ancaps da TI — sim, o carinha do suporte, que viu episódios de Mr. Robot além da conta e acha que vai “derrubar o sistema por dentro” com arengas anarcocapitalistas nas mídias sociais.

O daytrader

Outro subtipo de coach, o daytrader se apresenta em vários sabores. Tem o formato padrão, aquele cara que passa o dia tuitando sobre cotações e tendências, mas não sobrevive dos investimentos — e sim de vender cursos etc. sobre investimentos. Tem o primo-rico, aquele que insiste ser possível atingir a independência financeira poupando R$ 0,10 por dia. Tem o blockchainer, que jura ter desbloqueado o segredo de como ficar bilionário com moedas virtuais. E o empreendedor serial, que diz estar sempre explorando oportunidades, acordando de madrugada, dando 120% de si (mas sempre tem tempo pra ficar de bobeira nas redes sociais). Em termos de mundo offline, esse é o tipo mais perigoso de alfa-nerd. Muitas de suas ideias para enriquecimento rápido são indistinguíveis de esquemas criminosos.

O youtuber polemista

“Polemista” sempre foi um termo controverso, mas ao menos antigamente era aplicado a pessoas com um mínimo de inteligência e cultura. A revolução da comunicação digital tornou o conceito completamente inútil, já que hoje qualquer ser de cognição limítrofe atrai centenas de milhares de seguidores com suas ~polêmicas~. Até aí tudo bem, as pessoas têm o direito de jogar seu tempo fora como bem entenderem. Problema é que esses caras, não raro, furam suas próprias bolhas de seguidores e se tornam pauta no mundo real, influenciando no debate político e repercutindo na mídia tradicional. Chegam mesmo a vencer eleições. Assim não dá.

Faça a sua parte!

Irredutíveis, extrovertidos e com MUITO tempo livre, os alfa-nerds são máquinas humanas de spam, a areia nas engrenagens das mídias sociais, o ruído que torna a comunicação na internet impossível. Ou nos livramos deles, ou a permanência nas plataformas se tornará inviável.

Lembre-se sempre de que o alfa-nerd é um troll. E com troll não tem conversa. Essas criaturas que rastejam na cloaca das mídias sociais só merecem o silêncio. Não se deixe envolver em suas discussões sem pé nem cabeça, não replique, não retuite, não dê atenção. Deixe-os se matando sozinhos, em suas discussões infindas sobre qual cantora chegou ao primeiro bilhão de streams, se devemos ter o direito de defender o nazismo, se filme da Marvel é arte ou não. O mute é seu amigo, o block é o companheiro de todas as horas.

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)