TODAS AS 73 MÚSICAS DOS (The) SMITHS, DA PIOR À MELHOR

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
Published in
34 min readOct 30, 2023
Stephen, John, Andrew & Michael

[Leia também: TODAS AS 254 MÚSICAS DE MORRISSEY (SOLO), DA PIOR À MELHOR]

“Com seu mistério, sublimidade, romance e intriga, a parceria Morrissey/Marr eclipsa não apenas todas as outras parcerias que o cantor manteve desde então — mas também todas as outras parcerias formadas na música pop no último quarto do século 20. Há Lennon/McCartney, há Jagger/Richards, e há Morrissey/Marr (…) Mas enquanto há certamente muito drama e tensão nas reviravoltas de sua narrativa, a história de Morrissey e Marr também envolve heroísmo épico, fuga e salvação, coragem e convicção, batalhas vencidas, destinos capturados e o absoluto triunfo da arte e da beleza sobre todo o resto.” — Simon Goddard, na Mozipedia (verbete “MARR, Johnny”)

Como os Beatles nos anos 1960 e os Sex Pistols nos 1970, os Smiths redefiniram os rumos do rock britânico na década de 1980. De forma similar aos Beatles (em 1963) e aos Pistols (1976), a aparição do grupo liderado por Steven Patrick Morrissey e Johnny Marr ( Maher), em 1983, resetou as expectativas de crítica, público e artistas contemporâneos. Mas é possível argumentar que o quarteto de Manchester é um case mais complexo que os garotos de Liverpool e os punks de Londres, considerando sua sonoridade absolutamente original e a variedade de reações que o grupo ainda provoca entre seguidores e detratores.

Em 1963 e 1976, era possível entender de onde vinham os Beatles e os Pistols, a despeito da novidade que ambas as bandas representavam. Os Smiths em 1983 eram uma esfinge, um bicho estranho que parecia desconectado da própria cena indie na qual surgiu. Quase que da noite para o dia, essa estranheza se tornou a própria razão do apelo da banda. A conjunção entre a voz, as letras e a personalidade de Morrissey e a exuberante musicalidade do guitarrista e compositor Marr era um pacote surpreendente, inesperado — e inesperadamente fascinante. O lançamento de “Hand in Glove”, o primeiro single (em maio de 1983), dividiu primeiro o indie rock, e depois toda a cena pop britânica, em antes e depois dos Smiths.

“Não dava para dizer imediatamente quais discos (os Smiths) tinham escutado. Isso é bastante incomum, muito raro na verdade… Foi isso o que mais me impressionou na banda.” — John Peel, o primeiro DJ a convidar os Smiths para uma sessão de gravação na BBC Radio 1, em 1983

As referências sonoras da dupla M&M são bem conhecidas. O que eles faziam a partir dessas referências, e como eles faziam, é uma história bem mais nebulosa. O glam rock de Marc Bolan e David Bowie e os cavalos-de-batalha do punk (Patti Smith, Ramones, Buzzcocks) eram paixões compartilhadas. Morrissey contribuiu com obsessões pessoais mais ou menos obscuras (New York Dolls, Jobriath, girl groups esquecidos). Stooges, Rolling Stones, Motown, rockabilly e Bert Jansch compunham o cânone de Marr, cujo estilo instrumental ecoava também Nile Rodgers, Rory Gallagher e John McLaughlin. No entanto, mesmo quando as influências eram expostas de forma mais óbvia, as composições da dupla sempre soaram intrigantes, indefiníveis.

A voz de Morrissey oscilava entre um barítono lamurioso e um falsete nada másculo. Ns primeiras resenhas, os críticos gastaram colunas e mais colunas de adjetivos para defini-la. “Afetada e onírica”, “grunhidos de veludo”, “sua voz estremece e sangra”, “finamente texturizada”, “de uma tristeza vacilante que faz lembrar Tim Buckley”. As melodias vocais encontraram um complemento perfeito nas complexas harmonias criadas por Marr, fundamentadas em dedilhados velozes, acordes dissonantes, afinações alternativas e um alto refinamento na superposição de overdubs. Tornou-se o mais improvável dos guitar heroes, ao evitar solos, progressões manjadas e timbres “modernos”. O som de JM remetia aos anos 60 (o “jingle-jangle” herdado dos Byrds), mas também ao punk (e ao proto-punk e ao pós-punk), ao folk e até mesmo ao progressivo. Reunidas, voz e guitarra eram a base para canções surpreendentes, tão misteriosas quanto encantadoras.

“Levaria umas oito páginas desta revista para explicar completamente (…a música dos Smiths) parece vir da beira de um abismo, é difícil de entender, requer muito trabalho, muita introspecção.” — Dave MacCullough, Sounds, maio de 1983

(Vale o parêntese para destacar a importância do baixista Andy Rourke e do baterista Mike Joyce. Rourke, falecido há pouco aos 59 anos, era amigo de longa data de Marr. Mesmo direto, seu estilo ia além da escola punk, e oferecia contrapontos melódicos e suingados às guitarras. Joyce fornecia uma base ultra-sólida, injetando agressividade na dose certa aos arranjos. Sem essa cozinha discreta mas contundente, os Smiths não chegariam tão longe.)

Esses elementos musicais já faziam dos Smiths uma banda única. Em 1983, as paradas britânicas estavam dominadas por sons sintetizados, figurinos coloridos e uma atitude de sofisticação cosmopolita. Diabo, até David Bowie botou um terno e fez o disco mais pop de sua carreira (até então)! O som guitarreiro e desglamourizado da banda de Manchester apresentava uma novidade aos ouvidos de quem já estava enjoado da onda new romantic e do emergente synthpop.

Mas o que fez do quarteto o grupo mais influente de sua era foram as letras e a persona pública de seu frontman. Eram componentes essenciais do apelo dos Smiths, despertando paixões e polêmicas a cada single, a cada entrevista. Morrissey elevou a barra da poesia rock britânica abusando de citações, lançando versos de amor inusitados e criando narrativas e personagens complicados como ele mesmo. Suas letras canalizavam sentimentos de inadequação, frustração (amorosa e sexual) e solidão cultivados desde a adolescência, alternando farsa, tragédia, comédia, malícia, autocomiseração e confissões nem sempre verdadeiras, mas sempre sinceras. O efeito de suas palavras sobre uma legião de jovens inadequados, frustrados e solitários, primeiro na Grã-Bretanha e depois mundo afora, foi incomensurável. Todos os desajustados tímidos, afinal, ganhavam um porta-voz para chamar de seu.

BÔNUS TOP 10: os melhores versos dos Smiths

“It’s so easy to love, it’s so easy to hate / It takes strength to be gentle and kind” (“I Know It’s Over”)

“For there are brighter sides of life and I should know / Because I’ve seen them / But not very often” (“Still Ill”)

“In my life / Why do I smile / At people that I’d much rather / Kick in the eye?” (“Heaven Knows I’m Miserable Now”)

“No I never had a job / Because I’m too shy / I’ve seen you smile / But I never really heard you laugh” (“You’ve Got Everything Now”)

“What she said / I smoke / ’Cause I’m hoping for an early death / And I need to cling to something” (“What She Said”)

“Anything is hard to find / When you will not open your eyes” (“Accept Yourself”)

I am the son and the heir / Of a shyness that is criminally vulgar” (“How Soon Is Now?”)

“So I broke into the Palace / With a sponge and a rusty spanner / She said: ‘Eh, I know and you cannot sing!’ / I said: ‘That’s nothing, you should hear me play piano!’ (“The Queen Is Dead”)

I could have been wild and I could have been free / But Nature played this trick on me / She wants it now / And she will not wait / But she’s too rough / And I’m too delicate” (“Pretty Girls Make Graves”)

I’m spellbound but a woman divides / And the hills are alive with celibate cries” (“These Things Take Time”)

Junte a isso a postura desorientadora do cantor sobre tudo: sexo & gênero, política, o estado da música pop contemporânea, a deterioração do English way of life. Popstars de sexualidade ambígua não eram novidade em 1983, mas o vocalista dos Smiths não se enquadrava em qualquer subversão apresentada até então. Ao cantar o desejo (geralmente frustrado) por homens e mulheres, subir ao palco adornado por flores e colares de contas e declarar seu celibato à imprensa, Mozz criou um novo paradigma de figura masculina para o picadeiro pop: definitivamente não-macho, mas cheio de amor (e de hormônios) para dar. Já as múltiplas polêmicas protagonizadas pelo cantor — algumas involuntárias, outras nem tanto — também se tornaram uma marca registrada. Infelizmente. A tal ponto que hoje, 40 anos depois do primeiro single dos Smiths e ainda em carreira solo, ele tem seu legado e obra questionados constantemente por conta de declarações que contrariam seu passado progressista. (Mais detalhes sobre essas polêmicas serão explorados em um próximo texto desta série…)

“(...) Talvez fosse porque ele (Morrissey) conjurava os fantasmas do passado de todos nós: o outsider, o Esquisitão, o pária que é posto bem no fundo da sala para não nos contaminar ninguém com sua lepra. (...) Ele apelava ao que havia de mais solitário em nós. Ele transformou o outsider em uma estrela” — Barney Hoskyns, 1984

Registro de uma das últimas sessões de fotos da banda, em 1987

Junte tudo isso — a poesia, as melodias, as guitarras, a cozinha, a timidez, a depressão, a voz, as polêmicas, o figurino, as ambiguidades — e temos um momento único. O indie rock como o conhecemos (para o bem e para o mal) começava ali. Qualquer banda formada desde 1983 que tente conciliar agressividade pós-punk, musicalidade elaborada e sensibilidade confessional deve algo aos Smiths. A Class of 86 é consequência direta dos Smiths. O britpop descende dos Smiths, assim como o Belle and Sebastian, os Libertines e os Arctic Monkeys. E a Legião Urbana também. A lista de artistas que já gravaram e/ou tocaram ao vivo músicas dos Smiths inclui nomes como 10,000 Maniacs, The Killers, Jeff Buckley, Death Cab for Cutie, Radiohead, Matthew Sweet, Placebo, J Mascis, Billy Bragg, Eddie Vedder, Miley Cyrus e Noel Gallagher. Além dos coisas-nossas Fernanda Takai e John Ulhoa. Rick Astley, sim, Rick FUCKING Astley, fez um show inteiro dedicado aos hits do grupo na mais recente edição do festival de Glastonbury.

Os Smiths também elevaram a ética de trabalho indie a um patamar mais alto. Das capas dos discos ao planejamento das turnês, cada passo era controlado integralmente por Morrissey e Marr. Essa autossuficiência radical foi um dos fatores que aceleraram a dissolução da banda, em 1987. A desconfiança do vocalista em relação a empresários e à própria gravadora Rough Trade acabou por sobrecarregar Marr de responsabilidades… que poderiam ter sido terceirizadas. O estresse foi demais para o guitarrista, que ainda precisava lidar com o ciúme de Morrissey; Marr desejava colaborar mais e mais com outros artistas e o cantor era contra. O fim repentino do grupo, após pouco mais de cinco anos de atividades, abalou a cena indie britânica e rendeu quilômetros de fofocas, insinuações e hipóteses nos semanários e nas revistas musicais. Afinal, o quarteto estava no auge da popularidade e se preparava para assinar com a major EMI, manobra crucial para consolidar a fama já conquistada.

Pouco mais de cinco anos, quatro álbuns, 16 singles lançados (outros cinco sairiam após o fim da banda). Este ranking passa a limpo a produção dos Smiths e também resume um pouco da minha longa história pessoal com o grupo. Sou fã desde 1985, quando ouvi “This Charming Man” em alguma rádio, aos 11 anos. O som pegou primeiro; depois, como bom jovem inadequado, frustrado e solitário, me apaixonei pelas letras. De lá pra cá, os Smiths (e a carreira solo de Morrissey) foram uma presença constante na minha vida.

Alguns dos itens do acervo pessoal. Nesta casa, The Smiths é assunto sério.

A evolução musical do quarteto desde os primeiros ensaios em 1982 fora muito veloz. Marr deixou os Smiths em julho de 1987. Quando o quarto álbum, Strangeways, Here We Come chegou às lojas, em setembro daquele ano, a banda não existia mais. O LP era uma obra de ruptura, que apontava caminhos novos. O guitarrista ansiava por rebater críticas a respeito da fórmula repetitiva de suas composições e de sua confiança excessiva nos clichês do jangle pop — acusações que faziam sentido, até certo ponto, em relação ao primeiro álbum (The Smiths, 1984) e aos singles e B-sides incluídos em Hatful of Hollow, do mesmo ano. Já no segundo LP de estúdio, Meat Is Murder, produzido pela própria banda, notava-se um grande avanço na variedade dos arranjos e na dinâmica das composições, com a voz de Morrissey servindo como uma constante. A progressão para The Queen Is Dead (1986), um tiquinho menos aventureiro, pareceu natural.

O quarto álbum, apontado várias vezes por Morrissey e Marr como a culminação da musicalidade da dupla, renegava quase todos os traços mais característicos dos trabalhos anteriores, investindo em pianos, sintetizadores e órgãos e uma inédita variação nos climas sugeridos em cada faixa. Um dos templates assumidos por Marr durante as gravações foi o White Album — o mais eclético dos discos dos Beatles. A dissolução abrupta da banda gerou um dos maiores “E se…” da história do rock. Para onde progrediriam os Smiths? Em direção ao refinado pop de guitarras dos primeiros discos solo de Morrissey? Ou rumo às variadas experiências que Marr testou no The The e no Electronic?

O ranking a seguir contém todas as faixas lançadas oficialmente pelos Smiths, de acordo com a relação constante em https://www.morrissey-solo.com/wiki/Category:The_Smiths_Songs. É improvável que a lista aumente daqui em diante, pois existem pouquíssimas gravações da banda engavetadas. Aqui há uma compilação desses títulos, a maior parte gravações ao vivo de baixa qualidade ou trechos de ensaios inacabados. Há, entretanto, duas candidatas que apresentam possibilidades instigantes. A primeira é um cover de “(Now and Then There’s) A Fool Such As I”, celebrizada por Elvis Presley e gravada pelo grupo em maio de 1987, mas nunca lançada. A outra — ainda mais instigante — é uma versão embrionária de “Bengali in Platforms”, gravada após a saída de Johnny Marr, com Rourke, Joyce e Ivor Perry (guitarrista da banda Easterhouse). Seria o único registro dos Smiths pós-Marr. Posteriormente, Morrissey reescreveu a canção em parceria com Stephen Street e a incluiu em seu primeiro disco solo.

73) “Work is a Four Letter Word” — Gravada na última sessão de estúdio da banda, esta música foi apontada como a gota d’água que levou Marr a abandonar os Smiths. Trata-se do cover de uma canção lançada por Cilla Black em 1968, mais uma das obsessões particulares de Morrissey. (Pense em uma versão britânica da nossa Wanderléa.) “Não montei os Smiths para tocar músicas de Cilla Black”, diria Marr mais tarde, “mas dizer que a banda se separou por causa dessa faixa é ridículo.” Além dessa controvérsia, o único ponto de interesse é a voz de Mike Joyce, fazendo backings pela primeira e única vez.

72) “What’s the World” — Contemporânea e conterrânea dos Smiths, a banda James foi uma das primeiras a exibir influências declaradas das composições de Morrissey & Marr. Os Smiths retribuíram tocando ao vivo, vez ou outra, este cover, extraído de um single de 1983. Gravada em 1985, a faixa foi lançada em 1987, como lado-B de “I Started Something I Couldn’t Finish”.

71) “Suffer Little Children” — A história real de Ian Brady e Myra Hindley inspirou a canção que fechava o álbum The Smiths. O casal assassinou, sem motivo aparente, cinco estudantes menores de idade entre 1963 e 1965, em Manchester. Morrissey, obcecado com a história desde criança, já tinha escrito a letra quando conheceu Marr. A mórbida ousadia do tema causou uma das primeiras polêmicas envolvendo o cantor, acusado de explorar os crimes e de desrespeitar as vítimas. Ouvir a faixa é uma experiência difícil, tanto pela letra pesada quanto pela toada morosa e repetitiva.

70) “Death at One’s Elbow” — Poderia ser mais um pseudo-rockabilly genérico, mas desafia as expectativas com um arranjo inusitado (bateria eletrônica + um piano meio blues). Ainda assim, é a faixa mais esquecível de Strangeways

69) “Miserable Lie” — “O amor é uma mentira desgraçada”, cantava Morrissey nesta estranha faixa do disco de estreia. Dividida em duas partes — uma introdução lesada e um punk rock frenético — é “dedicada” a Linder Sterling, amiga do cantor. Na letra, ela é a mulher a quem ele “seguiu até as profundezas do mundo do crime”. Histérica demais para o meu gosto, tem um bom par de versos (“I need advice, I need advice / Nobody ever looks at me twice”).

68) “Money Changes Everything” — Segunda faixa 100% instrumental lançada pela banda, é mais uma ideia em formação do que uma composição completa. A levada e os efeitos de guitarra são aparentados aos de “How Soon Is Now?”, sem toda a carga dramática. Morrissey não quis pôr letra, mas escolheu o título. No ano seguinte (1987), Marr reciclou a faixa em parceria com Bryan Ferry: virou “The Right Stuff”.

67) “Golden Lights” — Esta canção, cover de um sucesso da cantora Twinkle, é considerada por Simon Goddard “a pior coisa que os Smiths puseram em vinil (…) um horror intolerável”. Exagero? Eu acho bonitinha… apesar de ser um alienígena no repertório da banda. Sob ordens estritas do próprio Morrissey, seus vocais foram soterrados com efeitos até soarem irreconhecíveis. O cantor justificaria a decisão como um ato de “perversidade brincalhona”.

66) “Wonderful Woman” — B-side que permaneceu “perdido”, sem reedição em coletâneas posteriores, até 2008. Gravada em 1984, é similar demais a outras tantas do mesmo período para merecer maior atenção. A principal suspeita de ser a mulher do título (com “gelo nas veias e sem coração”) é, mais uma vez, Linder Sterling.

65) “Unhappy Birthday” — Depois do fim da banda, Johnny Marr declarou que esta música de 1987 dá uma boa ideia da direção que os Smiths tomariam depois de Strangeways…, se o grupo não tivesse acabado. Sempre a considerei uma canção menor, com uma letra em tom de autoparódia e uma melodia não muito inspirada.

64) “Paint a Vulgar Picture” — Strangeways, Here We Come deveria ser o último álbum que os Smiths entregariam ao selo Rough Trade. A negociação de um contrato com a EMI já era um segredo muito mal guardado. Botando lenha na fogueira, Morrissey resolveu incluir esta letra no álbum, um sarcástico retrato das maquinações da indústria fonográfica. A gravadora não gostou nem um pouco. Musicalmente, é um retorno à primeira fase: longa, um tanto monótona, com uma melodia indistinta e subordinada à letra quilométrica.

63) “Unloveable” — Melodia e letra preguiçosas nesta aqui, relegada corretamente ao status de lado-B. Pra aturar as lamentações morrisseynianas, precisamos de mais criatividade.

62) “Shakespeare’s Sister” — Público e crítica nem tinham acabado de digerir (perdão) a complexidade de Meat Is Murder quando — apenas um mês depois do lançamento do LP — os Smiths lançaram este single. Recebido com certo desdém pela crítica, não conseguiu chegar ao Top 20. Morrissey culpou a falta de empenho da gravadora… uma acusação que ele lançaria a todas as gravadoras com as quais trabalharia nos anos subsequentes. Fato é que a música, um rockabilly anfetaminado, era realmente inferior aos singles anteriores.

61) “This Night Has Opened My Eyes” — Esta é bem típica da primeiríssima fase da banda, quando a sinergia entre harmonia, letra e melodia ainda não estava 100% azeitada. Aqui, o conjunto final soa arrastado, sem brilho. A letra é, na admissão do próprio autor, uma tentativa de musicar os diálogos da peça Um Gosto de Mel, de Shelagh Delaney (AKA a moça na capa da coletânea Louder Than Bombs).

60) “I Don’t Owe You Anything” — Em 2005, referindo-se a esta canção do álbum de estreia, Morrissey declarou ser “a única música dos Smiths que eu renego”. Uma certa injustiça. Decerto, não é a melhor do disco, mas tem melodia agradável, apesar de repetitiva. O arranjo tem um quê de r’n’b sessentista, com a adição de um órgão tocado por Paul Carrack (Squeeze, Mike + The Mechanics).

59) “Sweet and Tender Hooligan” — Antecipando em quase duas décadas o universo de seu hit solo “First of the Gang to Die”, Morrissey presta tributo a um “doce e gentil arruaceiro”. Leia-se: um delinquente juvenil acusado de assassinato. A sonoridade apunkalhada é coerente com a letra. Marr criou a música como resposta aos críticos que ainda xingavam os Smiths de “frescos”.

58) “I Keep Mine Hidden” — De acordo com os registros históricos, esta foi a última música composta por M&M e a última gravação dos Smiths como quarteto. A melodia é literalmente assobiável; Morrissey abre a canção com um assobio meio desafinado, e a coisa progride de modo cativante, num estilo semelhante ao de “Sheila, Take a Bow”. Diante do iminente fim, a letra parece um pedido de desculpas pela má comunicação (“Eu mantenho minhas emoções escondidas / Mas é tão fácil para você / Porque você deixa as suas às vistas do público”).

57) “You Just Haven’t Earned It Yet, Baby” — A banda incluiu esta música, inédita à época, na coletânea de singles e B-sides The World Won’t Listen, em uma manobra para aumentar a atratividade do disco. É um roquinho meia-boca que deveria ter saído como single, mas foi descartado por Marr (“Depois de The Queen Is Dead, parecia fraquinha demais”).

56) “Frankly Mr. Shankly” — Uma das letras mais engraçadas e interessantes de The Queen Is Dead, foi interpretada em 1986 como uma carta de despedida da banda à gravadora Rough Trade e seu dono, Geoff Travis. Em 2020, Morrissey negou que a música fosse endereçada a Travis, apesar de versos como “Eu quero partir, você não vai sentir a minha falta” e “Eu preciso falar francamente, Sr. Shankly / Dê-nos o dinheiro”. Pena que a música fique abaixo da letra. Marr mirou num reggae estilizado e acertou num vaudeville desajeitado. “Não é um dos nossos melhores momentos”, admitiu o guitarrista.

55) “Asleep” — Uma das mais lúgubres canções da banda, que esconde um sentimento suicida por trás da suavidade do vocal e do arranjo. Morrissey entrega os pontos e anseia pelo sono eterno, que o levará para “um mundo melhor”. A sonoridade minimal — apenas um piano carregado de reverb — intensifica o clima fantasmagórico.

54) “Stretch Out and Wait” — Bonitinha, mas genérica. M&M devem ter testado e jogado fora dúzias de canções semelhantes. A sonoridade acústica e a levada a aproximam de uma versão menos sombria de “That Joke Isn’t Funny Anymore”.

53) “A Rush and a Push and the Land Is Ours” — Johnny Marr não estava brincando quando disse que queria expandir o som dos Smiths em Strangeways, Here We Come. “Eu queria me livrar de toda aquela pecha de banda jingle-jangle”, disse. Aqui ele foi longe: a faixa de abertura do disco sequer tinha guitarras. Levada ao piano, é também uma oportunidade para Morrissey espichar suas possibilidades vocais, esticando os “Rrrrrr” de forma inédita.

52) “Vicar in a Tutu” — Um dos momentos de alívio cômico em The Queen Is Dead, no qual o vocalista aborda mais uma vez a igreja, desta vez com ironia em vez de agressividade. O “vigário com um saiote de bailarina” dança ao som de mais um rockabilly/country criado por Marr em uma jam session com a banda.

51) “London” — Aos 17 anos, o jovem Stephen Patrick juntou seus livros e discos em um monte de caixas e deixou Manchester rumo a Londres. A tentativa de morar na capital durou menos de uma semana. Em 1986, a “experiência horrível” inspirou a letra desta canção e seria tema também de “Is It Really So Strange?” e “Half a Person”. Em sintonia com a época da viagem de Morrissey (1976), Marr compôs a faixa mais punk da carreira da banda.

50) “The Hand that Rocks the Cradle” — Esta é histórica: trata-se da primeira canção composta por Morrissey & Marr, completada em 1982 a partir de uma letra já existente. A bonita (porém simplória) melodia foi inspirada em “Kimberly”, de Patti Smith. A versão lançada no álbum de estreia mostra um vocalista ainda verde, buscando achar seu timbre ideal.

49) “Pretty Girls Make Graves” —A canção inspirou o nome de uma bandinha indie inexpressiva, formada em 2001. Com seu groove saltitante e uma letra tragicômica, trazia um pouco de leveza ao repertório do primeiro álbum. Os versos ilustram o mito do “Morrissey celibatário mas não assexuado”: um desastrado encontro íntimo à beira-mar o leva a perder a fé na feminilidade. Ainda existe uma versão alternativa, lançada no single de “I Started Something I Couldn’t Finish”.

48) “That Joke Isn’t Funny Anymore” — A última faixa do lado-A de Meat Is Murder foi lançada como single e chegou “apenas” ao 49º lugar da parada inglesa, para imensa decepção da dupla M&M. Com uma melodia tortuosa e sem refrão, foi uma escolha meio estranha; “The Headmaster Ritual” era um single mais óbvio. De qualquer modo, a alongada estrofe final (“I’ve seen this happen…”) é um grande momento.

47) “I Started Something I Couldn’t Finish” — Entre o glam rock e o r’n’b, esta canção de 1987 traz uma surpreendente e exasperada performance de Morrissey. Pode ter sido efeito da insatisfação do vocalista, já que há relatos de conflitos com Marr a respeito da composição. O naipe de metais sintetizados sempre me causou certa estranheza.

46) “Cemetry Gates” — Embalados por uma luminosa melodia de inspiração folk, aqui passeamos por um cemitério, acompanhados pelos espíritos de Oscar Wilde, John Keats e W.B. Yeats. A circularidade da harmonia permite que Morrissey estique bem a letra, filosofando sobre vida, morte e…plágios. “As palavras que você usa devem ser suas”, diz ele — logo ele, que sempre entupiu seus versos de citações e frases surrupiadas.

45) “Half a Person” — “Dezesseis, desajeitado e tímido / A história da minha vida”. Difícil ser mais autobiográfico que isso. A “meia-pessoa” é o próprio Morrissey, que retoma a história de suas tentativas de viver em Londres durante a adolescência. A narrativa é mais interessante que a música, uma composição um tanto repetitiva.

44) “Handsome Devil” — Uma das primeiríssimas parcerias de M&M, é bem mais agressiva que a média das canções daquela fase inicial. Soa como um pastiche do som da Motown feito por uma banda punk. A letra também causa certo espanto, com sua sexualidade feroz e alusões a glândulas mamárias e chicotadas. O verso “A boy in the bush is worth two in the hand” foi apontado, em determinados tabloides, como um elogio à pedofilia.

43) “Oscillate Wildly” — Lançada em fevereiro de 1985, foi a primeira gravação dos Smiths a trazer o piano em primeiro plano. Ao contrário dos outros instrumentais desta lista, a elaborada e melancólica melodia foi originalmente concebida para não ter letra. Marr aproveitou o espaço para experimentar com discretos sintetizadores, antecipando os avanços em The Queen Is Dead e Strangeways, Here We Come.

42) “Jeane” — Power pop de primeira, cuja energética execução fornece um contraste com a letra deprê. “Nós tentamos e nós falhamos”, canta Morrissey no ótimo refrão, referindo-se à amizade com a personagem-título. A despeito da precocidade da gravação, traz uma performance bastante segura. É uma das mais obscuras faixas desta lista, lançada originalmente na versão 7-polegadas de “This Charming Man”, em 1983. Só foi reeditada novamente em 2008, na coletânea The Sound of The Smiths.

41) “Rubber Ring” — Ao som de um quase-blues, Morrissey dirige-se à sua nação de solitários fãs, pedindo a eles que “não esqueçam as canções que salvaram sua vida”. E, no fim, suplica: “E quando você estiver dançando e rindo / E finalmente vivendo / Ouça minha voz em sua cabeça / E pense em mim com gentileza”. Um retrato da relação de co-dependência que o cantor nutre, desde sempre, com seus seguidores.

40) “The Draize Train” — Dos números instrumentais gravados pela banda, este é o melhor. Composta com a intenção de ganhar uma letra, foi rejeitada por Morrissey e acabou parando no lado-B de “Panic”. É uma espécie de evolução, mais fluida e complexa, do funk branco de “Barbarism Begins at Home”. Ao vivo, com a adição do quinto Smith Craig Gannon, ganhava muito mais peso. Portanto, ignore a versão de estúdio e ouça a de Rank.

39) “Is It Really So Strange?” — Simpático lado-B do single de “Sheila Take a Bow”, foi ouvida pelos brasileiros primeiro na versão ao vivo de Rank. A combinação entre o arranjo rockabilly e a letra tragicômica gera um efeito hilário.

38) “Stop Me If You Think You’ve Heard this One Before” — Para Morrissey, esta canção do derradeiro álbum representava “o som dos Smiths em seu nível mais elevado”. Despida dos penduricalhos sonoros que marcavam as demais faixas do disco, é curta, grossa e movida por um ritmo trovejante. Tem até um solo de Marr, que buscava soar “como um guitarrista punk que não sabe tocar direito”.

37) “Girlfriend in a Coma” — Em meio às faixas mais longas e contundentes de Strangeways, Here We Come, esta pequenina gema pop se destacava. Também era experimental, à sua maneira: o arranjo etéreo sustentava um vocal extra-suave, e a sonoridade delicada dava ares irônicos à letra dramática. É o mais curto dos singles da banda (2:02).

36) “Sheila Take a Bow” — Pop song exemplar, com levada glam e um refrão altamente cantarolável. A “Sheila” do título é uma referência à escritora Shelagh Delaney. Concebida desde o começo para ser um single, bateu no 10º lugar da parada inglesa em abril de 1987: o posto mais alto atingido pela banda enquanto ainda estavam reunidos. Poderia até ter chegado mais alto, mas Morrissey se recusou a gravar um videoclipe…

35) “Last Night I Dreamt that Somebody Loved Me” — Apontada por Simon Goddard como “a última obra-prima dos Smiths”, esta música nasceu do desejo do vocalista de criar baladas “muito intensas e com orquestrações pesadas” para o quarto álbum da banda. O resultado é o mais melodramático registro do quarteto, com uma longa introdução de piano e um bombástico arranjo de cordas (sintetizadas) na segunda parte. De acordo com o produtor Stephen Street, Morrissey acertou o vocal “muito intenso” no primeiro take.

34) “Never Had No One Ever” — A mais intrigante faixa de The Queen Is Dead tem origem em uma composição criada em 1984 por Marr, baseada em “I Need Somebody”, dos Stooges. A atmosfera sinistra sugerida pelos acordes inspirou versos que evocam “um sonho realmente ruim” e concluem com Morrissey à espreita, do lado de fora da casa de alguém… Amplificando o mistério, a capa do LP só trazia metade da letra, omitindo a segunda estrofe.

33) “Barbarism Begins at Home” — Antes de se reunirem nos Smiths, Johnny Marr e Andy Rourke tocaram em uma banda punk-funk chamada Freak Party, que nasceu e morreu em 1981 antes do primeiro show. A dupla sem dúvida buscou canalizar o espírito do FP nesta faixa, nascida de jam sessions que precederam as gravações do primeiro álbum. O groove quadradão emoldura uma letra sobre violência doméstica e castigos corporais impostos a crianças indisciplinadas. Morrissey aproveitou a duração (a mais longa da discografia da banda) para emendar um extenso improviso vocal. Algumas versões ao vivo chegavam a bater nos 15 minutos.

32) “Shoplifters of the World, Unite” — Um certo fascínio por crimes e criminosos sempre marcou a obra de Morrissey, aqui ganhando contornos de elogio à desobediência civil. O vocalista exorta os ladrões de loja a se rebelarem em um levante coletivo. Em entrevista da época, ele garantiu que era tudo metafórico, diante de um princípio de pânico moral alimentado por um parlamentar conservador. A sonoridade “pantanosa” remete à bruma de “How Soon Is Now?”, mas há espaço para um solinho de guitarra mais ortodoxo.

31) “Some Girls Are Bigger than Others” — Com harmonia similar à de “The Headmaster Ritual” mas num escopo mais contido, esta faixa encerrava The Queen Is Dead de maneira quase brincalhona. O fade in/out da introdução certamente surpreendeu muita gente na primeira audição. A letra traz mais pistas sobre a ambígua sexualidade de Morrissey, revelando seu espanto diante do fato de que “algumas garotas são maiores que as outras”.

30) “Hand in Glove” — Single inaugural da banda, nasceu a partir da fixação de Marr com “Gimme Danger”, dos Stooges — ainda que o resultado final oculte bem a influência. Ganhou letra em janeiro de 1983, quando a banda já ensaiava há uns seis meses, e imediatamente foi eleita como a música de trabalho ideal. Como carta de apresentação, funcionava bem, definindo traços fundamentais: o vocal lamurioso, a poesia prolixa, o som contundente mas elaborado.

29) “The Queen Is Dead” — Morrissey sabia que iria meter a mão em cumbuca quando, no auge do sucesso comercial dos Smiths, cismou de escrever uma música chamada “A Rainha está morta”. E resolveu batizar o aguardadíssimo terceiro LP com o mesmo título. (“A coisa toda parece uma piada, uma piada horrorosa”, disse o cantor, referindo-se à família real britânica. “Ninguém acredita em duendes, por que deveríamos acreditar na Rainha?”). Era o testemunho definitivo do credo anti-establishment de Morrissey, que marcou toda sua vida e lhe causou encrencas mis. Marr dobrou a aposta e concebeu um dos mais longos e viscerais rocks desta lista, completo com uma bateria cavalar, guitarras em wah-wah dobradas e samples de filmes antigos. A letra, classificada por Marr como a melhor da história dos Smiths, é repleta de achados hilários: o príncipe Charles vestido com o véu de noiva da mãe, o desejo de ver “Sua Baixeza com a cabeça em uma forca” e afinal o encontro com a própria monarca, que recebe Morrissey com a frase “Eu conheço você, e você não sabe cantar…”

28) “You’ve Got Everything Now” — Desde o primeiro álbum, a sinergia entre Marr, Rourke e Joyce era notável. A energia desta canção é a prova disso, com a força da cozinha sustentando sem tropeços as variações de dinâmica sugeridas pelas guitarras. Em uma de suas letras mais pessoais da primeira fase, Morrissey confessa a inveja dos colegas de escola mais bem-sucedidos e lamenta “a confusão” que sua própria vida se tornou. Também tem um dos mais memoráveis falsetes desta lista.

27) “These Things Take Time” — Está entre os melhores b-sides da fase inicial. Existem quatro versões por aí, duas das quais lançadas oficialmente, mas a boa mesmo é a disponível em Hatful of Hollow. A letra é um compêndio de citações, chupadas de poemas, romances e filmes. Morrissey soa resmungão E resoluto ao narrar mais um episódio de iniciação sexual, seguido pelo abandono — mas desta vez é uma mulher a deixa-lo na mão. A banda segue no mesmo passo petulante do vocal.

26) “Girl Afraid” — Uma performance fulgurante de Marr neste quase-instrumental. A harmonia foi concebida ao piano, tentando copiar o estilo de Little Richard. Transposta para a guitarra, ganhou arpejos, tremolos e dedilhados de precisão sobrenatural. A faixa fazia sucesso entre os surfistas niteroienses na década de 1980, quando tocava na Fluminense FM.

25) “Rusholme Ruffians” — O primeiro dos dois rockabillies de Meat Is Murder, quase escorregando para o lado do country. É tão abertamente inspirada nos acordes de “(Marie’s the Name of) His Latest Flame”, hit de Elvis Presley de 1961, que a banda costumava juntar as duas em um medley ao vivo, como pode ser ouvido em Rank. A letra alterna “violência, ódio, estresse e romance”, nas palavras de Morrissey. São as reminiscências de uma noite em um parque de diversões, entre juras de amor e a ameaça dos “rufiões de Rusholme” (subúrbio meio barra-pesada de Manchester).

24) “Death of a Disco Dancer” — O mais próximo que os Smiths chegaram de fazer um épico psicodélico, esta faixa é o epicentro sombrio de Strangeways, Here We Come. Para ilustrar a historinha da morte de um frequentador de discothéques — overdose? — , Marr criou um arranjo hipnótico e turbulento, com acordes inspirados em “Dear Prudence”, dos Beatles. Trivia: é a única gravação da banda na qual Morrissey toca um instrumento (o destrambelhado “solo” de piano que surge na seção instrumental).

23) “Please Please Please Let Me Get What I Want” — Melancólico mas conformado, Morrissey implora por tempos melhores, trazendo aquilo (aquele?) que ele deseja. A mais curtinha faixa da discografia da banda, foi descrita pelo cantor como “um soco na cara, mas um soco muito breve”. Ao ouvi-la pela primeira vez, Geoff Travis perguntou “Mas cadê o resto da música?” Além de ter sido a primeira música dos Smiths a ser regravada por outro grupo (The Dream Academy), a canção surge em um momento marcante do filme Curtindo a Vida Adoidado.

22) “Ask” — Lançada como single logo após “Panic”, era a tentativa da banda de criar uma canção pop despreocupada, distante de controvérsias. Ridiculamente grudenta, do dedilhado inicial ao refrão mântrico, é uma das mais populares entre os fãs brasileiros. O caráter esfuziante da melodia camufla um arranjo complexo, com pilhas de overdubs de guitarra que exigiram longas horas de mixagem.

21) “I Won’t Share You” — Difícil segurar as lágrimas ao reouvir essa, a faixa final de Strangeways, Here We Come, que acabou se tornando o delicado epitáfio de facto dos Smiths. Ainda que não haja confirmação do próprio Morrissey, parece óbvio que a letra se dirige a Marr, confrontando o desejo do guitarrista de colaborar com outros artistas. O arranjo de singela beleza foi criado em menos de 20 minutos, com Marr tocando uma auto-harpa — e uma gaitinha, que, como notou Simon Goddard, faz a ponte com o primeiro lançamento da banda, “Hand in Glove”.

20) “What Difference Does It Make” — Um riff clássico de Marr conduz a composição e a cozinha responde à altura, em uma performance poderosa. A canção remonta aos tempos dos primeiros ensaios da banda e era candidata a ser o single de estreia. Lançada apenas depois de “Hand in Glove” e “This Charming Man”, fez muito mais sucesso comercial que as antecessoras. O fato desagradou Morrissey, que renegaria a faixa classificando-a de “juvenil”.

19) “Accept Yourself” — A autoaceitação é um dilema eterno na vida e na obra de Morrissey, e o tema aqui é tratado de forma positiva. É um chamado direto aos ouvintes: aceitem a si mesmos, do jeito que vocês são. A letra foi inspirada por cartas de fãs em busca de apoio. Marr providenciou uma composição dinâmica, coerente com os versos… mas percebam o acorde menor no final, dando um tom ambiguamente sombrio à conclusão.

18) “Nowhere Fast” — Uma crônica sobre alienação, insensibilidade e, claro, depressão, passada em alguma cidadezinha pobre. Morrissey anseia por escapar, mas o som do trem passando lá longe — seu único meio de fuga — só lhe causa tristeza. Entretanto, a música é animada, trazendo uma precoce influência de rockabilly que afloraria de modo definitivo na carreira solo do cantor. O afrontoso verso “I’d like to drop my trousers to the Queen” já prenunciava o ataque frontal de “The Queen Is Dead”.

17) “Reel Around the Fountain” — A primeira grande balada da banda. Na mente de Marr, nasceu como um número de R&B, transformado em picadeiro para as confissões de Morrissey sobre sua iniciação sexual. Os versos “How you took a child and you made him old” referem-se, segundo o cantor, à sua crença de que “todo mundo tem uma alma infantil até o primeiro compromisso carnal”. Já a clássica estrofe “I dreamt about you last night / And I fell off the bed twice” veio direto da peça Um Gosto de Mel. Escalada como faixa de abertura do primeiro álbum, tem sua versão definitiva em Hatful of Hollow.

16) “William, It Was Really Nothing” — Dura apenas 2:09, mas abriga um pequeno universo de complexidades. Musicalmente, mostra Marr alçando voos ambiciosos, ao trançar guitarras e violões em uma harmonia intrincada. A estrutura da composição é complexa, com versos que não se repetem e um refrão que se “desintegra” em seu terceiro retorno. A letra, que aborda a perspectiva do casamento do ponto de vista masculino, propiciou um momento histórico em agosto de 1984, na aparição da banda no Top of the Pops da TV britânica: Morrissey abrindo a camisa e revelando a frase “MARRY ME” escrita em seu peito.

15) “Back to the Old House” — Agridoce memória de mais um amor perdido antes mesmo de ser achado. Composta por Marr como uma balada em homenagem a Angie, sua eterna namorada, ganhou letra e vocal serenos e melancólicos. As imagens dos versos são muito vívidas. Quase é possível ver o objeto do desejo de Morrissey passeando de bicicleta (“A coisa mais triste que já vi”), alheio ao olhar pidão do solitário… A versão acústica de Hatful of Hollow é a única possível; ignore a gravação com a banda completa, lançada em Louder than Bombs.

14) “What She Said” — A faixa mais furiosa de Meat Is Murder traz Marr, Rourke e (em especial) Joyce se estapeando sob um Morrissey particularmente enfezado, a ponto de quase perder o fôlego. A letra faz referências explícitas aos escritos da autora canadense Elizabeth Smart, obsessão do cantor naquela época. Os versos cruciais (“What she said / ‘I smoke / Cause I’m hoping for an early death / And I need to cling to something!’”) foram tirados quase ipsis literis de Smart.

13) “The Boy with the Thorn in His Side” — Um dos grandes momentos pop da banda, tornado um merecido hit em setembro de 1985. Fez sucesso até no Brasil, tendo sido incluída na LENDÁRIA coletânea Hit Parade 86 e editada em single 12 polegadas pela gravadora WEA. Junto a “Panic”, foram os únicos compactos dos Smiths a ganharem lançamento nacional. A leve e cativante melodia apareceu “do nada” na mente de Marr, em uma viagem entre um show e outro. Já “o garoto” do título era o próprio Morrissey, e o “espinho em seu flanco” era a indústria musical. Quando ele diz “Eles não querem acreditar em nós”, se refere à falta de fé da gravadora e da imprensa na banda. Mimimi, né, mas encantador.

12) “Panic” —A história virou lenda: em abril de 1986, Morrissey e Marr estavam escutando a BBC Radio 1 e o DJ noticiou o desastre nuclear de Chernobyl… e, na sequência, meteu a saltitante “I’m Your Man”, do Wham! A incongruência foi tão chocante que o cantor começou a imaginar, no ato, um levante popular contra a emissora (e contra todo o estado de coisas na música pop britânica da época). Por ironia, acabou se transformando num maiores sucessos comerciais da banda. Na letra, a coisa vai escalando e culmina com a turba enforcando o DJ sem noção. Marr chupou a levada de “Metal Guru”, do T-Rex, para compor a melodia, e nunca fez questão de esconder o plágio.

11) “Well I Wonder” — A face mais evocativa e etérea da banda sobressaia nesta balada acústica de Meat Is Murder, nunca executada ao vivo. Na opinião de Marr, “seria impossível recuperar sua magia em show”. Carregada pelos acordes dissonantes ao violão e um baixo em primeiro plano, é uma das mais belas melodias escritas pelo guitarrista. A letra, curtinha, mostra Morrissey mais uma vez de coração partido, mas dessa vez o drama (“Engasgando, morrendo, mas ainda vivo, de alguma maneira”) parece mais sincero que de costume.

10) “Bigmouth Strikes Again” — Composta por Morrissey como resposta à encheção de saco da imprensa, mostra a face mais vitriólica do letrista; os versos foram escritos antes de Marr compor a música, uma raridade na parceria. Mozz decerto se arrependeu de ter criado o título, até hoje usado em manchetes nos jornais britânicos cada vez que ele apronta alguma. Uma das performances mais agressivas da banda, com direito a uma intro inesquecível, um solinho de guitarra antes do refrão — outra raridade — e Mike Joyce espancando as peles.

9) “Meat Is Murder” — Nenhuma causa política é tão importante para Morrissey quanto a defesa dos animais. A decisão de nomear o segundo álbum da banda com o título desta canção reflete isso, bem como a impressionante sonoridade construída na faixa, estrategicamente posta na conclusão do lado-B. Entre samples de urros bovinos e sons de serras elétricas (vindos direto de um matadouro), surge uma valsinha fantasmagórica tocada ao piano por Johnny Marr. O som abre o caminho para um vocal desapaixonado, que espelha a crueldade das imagens da letra — “sangue chiando”, “fedor profano”, “morte sem razão”. Das músicas dos Smiths, até hoje é uma das mais recorrentes nos shows solo do cantor, apresentada com o acompanhamento de vídeos pavorosos de animais morrendo.

8) “How Soon Is Now?” — Uma piada que circulava entre os haters nos anos 1980: “Os Smiths só têm duas músicas: ‘How Soon Is Now?’… e a outra.” A inferência era que “HSIN?” soava TÃO diferente, que deixava o resto do repertório da banda parecendo todo igual. E isso é uma verdade evidente. É espantoso que um dos momentos mais experimentais dos Smiths — longa, sem um riff ou um refrão reconhecíveis, com uma sonoridade dissonante — tenha se tornado também uma de suas músicas mais populares. Johnny Marr partiu de uma levada à la Bo Diddley e, com a ajuda do produtor John Porter, desmantelou o som de sua guitarra empilhando efeitos de reverb e tremolo manipulados em tempo real no estúdio. Como o guitarrista não conseguiu mais reproduzir aquela exata sonoridade, os Smiths nunca chegaram a apresentar a canção ao vivo (mas Morrissey e Marr já a tocaram em suas carreiras solo). Por cima da maçaroca sonora, o cantor soltou um de seus vocais mais inspirados, implorando por amor e terminando mais uma noitada sozinho. Geoff Travis, diretor da Rough Trade, não gostou da gravação e relegou a música ao lado-B de “William, It Was Really Nothing”. Ao constatar que a faixa era mais popular que o lado-A, a gravadora relançou-a como single seis meses depois. Seymour Stein, responsável pelo lançamento dos Smiths nos EUA, chamou a canção de “a ‘Stairway to Heaven’ dos anos 80.” Será?!

7) “There’s a Light that Never Goes Out” — Apenas os Smiths conseguiriam transformar um acidente rodoviário em uma declaração de amor. A mais desbragadamente romântica canção da banda é também a mais amada pelos fãs casuais. É inexplicável que não tenha sido lançada como single na época de The Queen Is Dead, preterida (por insistência de Marr) em favor de “Bigmouth Strikes Again”. Ao ser apresentada a Morrissey, deixou o cantor sem palavras. Já Marr, ao ouvir a primeira demo com vocal, afirmou que era a melhor música que já ouvira. Em 1986, Mozz disse que evitava reouvir a canção, pois o trecho “And in the darkened underpass, I thought / Oh, God, my chance has come at last / But then a strange fear gripped me
And I just couldn’t ask” era “muito íntimo” para ele.

6) “Still Ill” — Uma das canções que ajudaram a codificar a primeira fase da banda, com seus intrincados dedilhados, uma letra de fino humor e um vocal lamentoso e tragicômico. Para Simon Goddard, é “a definição de princípios” dos Smiths: “enfermidade como arte, a rejeição do trabalho mundano, a luta entre biologia e mentalidade”. Escrita ainda no comecinho da Smithsmania, carrega em sua frase-chave (“England is mine and it owes me a living”) toda a ambição do cantor em relação a seu futuro como popstar. Há três versões diferentes disponíveis, e a minha favorita é a registrada no ao vivo Rank, com um Morrissey exultante e enfezado.

5) “I Know It’s Over” — A balada definitiva no repertório de Morrissey & Marr. Em uma interpretação que começa sutil e segue num crescendo de dramaticidade, o cantor bota as tripas (emocionais) para fora ao lamentar um romance que acabou antes mesmo de acabar. A conclusão é uma só: natural e real para todo mundo, o amor simplesmente não está ao “nosso” alcance. Segundo Marr, a ideia era criar um “baladão melancólico mas que ainda soasse pós-punk… era algo que só os Smiths conseguiriam fazer”. Conforme registrado no álbum ao vivo Rank, costumava ser o ápice dramático dos shows da última turnê da banda.

4) “I Want the One I Can’t Have” — A mais desesperada das canções de amor da banda. Morrissey começa provocando um crush indeciso a deixar “a biologia” falar mais alto que a “mentalidade”, e vai progressivamente perdendo a linha; ele quer alguém que não pode ter, e isso o enlouquece. A performance é tão urgente que, anos depois, o cantor a classificaria como “rascante e desafinada — os piores vocais em toda a discografia dos Smiths”. Mas é justamente isso que engrandece a canção, ao lado das entortantes harmonias tramadas por Marr e a vigorosa perfomance da banda, típica de Meat Is Murder.

3) “Heaven Knows I’m Miserable Now” — “Miserabilismo”: um termo associado desde sempre à trajetória dos Smiths. Claro que o título desta música contribuiu. Quarto single da banda, lançado em maio de 1984, é a canção que melhor resume, em som e em poesia, a personalidade da banda em sua fase inicial. A inadequação crônica a uma vida profissional “normal” é explanada de forma tragicômica, em versos que consolidaram a imagem lamurienta do vocalista. Marr sustenta a narrativa com uma melodia resplandecente, composta em menos de uma hora, num quarto de hotel, durante a primeira visita dos Smiths aos EUA.

2) “The Headmaster Ritual” — Peça de resistência no repertório de Meat Is Murder, anunciava já na abertura do álbum que o som da banda mudara, tornando-se mais encorpado e (ainda mais) elaborado. É uma tour de force de Marr, que se desdobra em acordes complexos, seções instrumentais alongadas, afinações alternativas e overdubs. Rourke e Joyce seguram a levada com firmeza. De acordo com o guitarrista, ele gastou mais de um ano burilando a composição antes de apresenta-la ao vocalista. Morrissey aproveitou o punch da música para exorcizar os demônios remanescentes dos cinco anos que passou na St. Mary Secondary Modern, uma escola católica comandada por “zumbis beligerantes” e “porcos covardes de mentes cimentadas”.

1)“This Charming Man” — Paul McCartney disse certa vez que, para ele, “antes de Elvis Presley, o mundo era preto & branco.” Eu sinto a mesma coisa em relação aos Smiths, e mais especificamente, a esta música. Lembro com total clareza da primeira vez que a ouvi e do impacto que senti, em algum momento de 1985. Mesmo sem entender a letra, nem saber quem cantava. Só fui descobrir meses depois, num processo de tentativa e erro. Pior, havia três versões distintas da bendita: a do Hatful of Hollow, a do single (editada no Brasil como faixa-bônus do primeiro LP) e a “New York Version”, a minha favorita. Como explicar o fascínio tão instantâneo? O riff soava como um Big Bang, separando o nada e a criação do universo. A levada à la Motown, óbvio, tem apelo para qualquer interessado em música pop. E a voz… nunca existira um vocalista como aquele, com aquele timbre bizarro — um real gosto a se adquirir — e aqueles berros afeminados. Mais tarde, ouvindo e reouvindo e re-reouvindo, ficaram mais claras as filigranas sonoras e poéticas. As cascatas de guitarras e violões gravadas por Marr, inspiradas (de forma inconsciente) na sonoridade africana do highlife. Os trava-línguas e os subtextos da letra; o que diabo era “a jumped-up pantry boy”? Mais: como fizeram todo aquele mundão caber em uma canção pop perfeita de 2:43? Mal sabia eu que, na Inglaterra, toda uma geração de moleques mais ou menos da minha idade também caíram de quatro pela música, alguns anos antes. Nenhuma outra banda na história do rock britânico chegara tão bem-acabada aos ouvidos do público, nenhuma outra soava tão original e surpreendente, nenhuma outra redefiniria toda uma sub-cultura (o indie rock) como os Smiths. E tudo começou aqui.

E olha a playlist aê, glr, completaça. Em breve, a longa carreira solo de um dos membros dos Smiths merecerá o mesmo tratamento. Fiquem ligados…

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)