O Dia da Visibilidade Bissexual é necessário e te dizemos por quê

Diêgo Lôbo
TODXS
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8 min readSep 23, 2019

Olhei para o prato e aguardei as reações dos colegas com quem almoçava. “Gosto de pessoas, não importa o sexo” - tinha acabado de revelar. A mentira saiu sem pensar. Sabia bem que não era bi, pois só sentia atração por outros homens. Mas, ainda amadurecendo o processo de me assumir, senti que dizer isso poderia causar menos estranheza ou preconceito. Se o bi fosse bem recebido, com o passar do tempo poderia dizer que foi uma fase de transição entre os namoros hétero e gay. Meus amigos não ligaram, mas sem me dar conta, contribuí para o apagamento da bissexualidade como uma orientação sexual única.

É por associações como essa que, em 23 de setembro de 1999, ativistas dos EUA decidiram criar o Dia da Visibilidade Bissexual, como passou a ser conhecido no Brasil. A data é uma oportunidade para visibilizar e celebrar a diversidade bissexual, além de combater todas as formas de bifobia — na sociedade e dentro da própria comunidade LGBTI+.

Exatos 20 anos depois, será que avançamos em fazer jus ao nome da data? Conversamos com seis mulheres e um homem bi, cujas experiências e relatos aparecem nas próximas seções.

As pessoas não entendem a bissexualidade

A sociedade não entende a bissexualidade porque ela foge da lógica monossexual a que nos acostumamos. Mesmo quem não tem problemas com o tema, normalmente cria uma concepção de divisão — 50% de atração por mulheres, 50% de atração por homens — que não condiz com a realidade. A ativista bi Robyn Ochs, dos EUA, dá o melhor conceito que você vai ver hoje sobre bissexualidade: “o potencial de sentir-se atraída — romântica ou sexualmente — por pessoas de mais de um sexo e/ou gênero, não necessariamente ao mesmo tempo, não necessariamente da mesma forma e não necessariamente nos mesmos níveis”.

As pessoas têm uma dificuldade imensa de vislumbrar o espectro sexual como algo fluido. Para a maioria, a crença e o apego ao binarismo sexual (ou se é hetero ou se é homo) ainda é muito forte. Existe muito aquele discurso do “tudo bem gostar de alguém do mesmo gênero, mas porque gostar dos dois? (Joana*, mulher bissexual, Paraíba).

Ainda em relação aos conceitos, o Todas as Letras, podcast da Folha sobre sexualidade, trouxe uma discussão importante sobre afetividade e sexualidade no contexto de bissexualidade:

  • Biafetiva e Bissexual: pessoa que se apaixona e tem relações sexuais com mais de um gênero.
  • Heteroafetiva e Bissexual: pessoa que só se apaixona por gênero diferente do seu, mas tem relações sexuais com mais de um gênero.

Por isso, chamar o coleguinha de “bi de festa” é também uma forma de preconceito. A bissexualidade não implica necessariamente em relacionamentos sexuais e amorosos com homens e mulheres, já que pessoas que se relacionam amorosamente com apenas um gênero, mas têm relações sexuais com mais de um, também fazem parte do guarda-chuva bissexual.

A bissexualidade cria, na tradicional família brasileira, uma eterna esperança de que nós somos, na verdade, heterossexuais (vivendo uma loucura amorosa/sexual ou algo do tipo). Não entendem como parte importante da nossa individualidade e subjetividade a vivência bissexual (Laura, mulher bissexual, Rio de Janeiro).

Sempre bom lembrar também que a bissexualidade é uma orientação sexual, por isso ela independe do sexo biológico ou identidade de gênero da pessoa.

Muitas pessoas bi e não-binárias são trans e aí os desafios, preconceitos e problemas se potencializam. (Thor, homem bissexual, São Paulo).

As pessoas com quem falei relataram o quão difícil é demonstrar a bissexualidade enquanto uma orientação sexual única, complexa e com vivências ora semelhantes, ora bem diferentes das outras. A descrença e ignorância sobre a possibilidade do relacionamento com pessoas de mais de um gênero é ainda grande e sabemos que o ser humano tem medo daquilo que não consegue entender.

A bifobia existe e ela tem um alto custo na vida da pessoa bisexual

A bifobia geralmente nasce da incompreensão, da negação da sexualidade como algo fluido e subjetivo (Joana*, mulher bissexual, Paraíba).

Um estudo da Universidade de Stanford, no Reino Unido, revelou que somente 19% de bissexuais contaram a pessoas importantes de suas vidas sobre sua sexualidade. O número é baixo, comparado a 75% entre gays e lésbicas. Ao mesmo tempo, 26% revelaram que ninguém em seu círculo mais próximo sabe de sua orientação, comparado a apenas 4% entre gays e lésbicas.

Existem muitos mitos e tabus sobre bissexuais que dificultam que uma pessoa bi se aceite e saia do armário. O sentimento de inadequação social pode levar a pessoa a achar que ela tem que escolher “uma coisa”, e a sociedade também cobra isso, como se sexualidade fosse uma questão de escolha. Isso representa um agravante para saúde mental das pessoas bi (Vivian*, mulher bissexual, Rio de janeiro).

Estes dados são apenas a ponta do iceberg em relação aos enormes prejuízos e impactos que a bifobia traz na vida de pessoas bissexuais. Diversos estudos têm demonstrado que bissexuais são mais propensos a desenvolverem problemas de saúde mental do que pessoas monossexuais. Um desses estudos concluiu que mulheres bissexuais têm 64% mais chances de terem distúrbio alimentar, 37% maior probabilidade de automutilação e 26% mais propensas a depressão do que lésbicas. Para quem se interessa pelo tema, o artigo abaixo faz uma discussão interessante:

Os dados disponíveis e relatos ouvidos aqui parecem indicar que, diferente de outras LGBTIfobias, a bifobia se manifesta menos em termos de violência física e mais no sentido de apagamento da vivência e própria existência bi. Ainda que os dados do Grupo Gay da Bahia revelem que 2% das 420 mortes de LGBTIs em 2018 foram de pessoas bissexuais (comparados com Gays — 45%, Trans — 39% e Lésbicas — 12%), a própria invisibilização da bissexualidade mascara dados específicos sobre este segmento da população LGBTI+.

Estigma e preconceitos atingem tanto mulheres quanto homens bi

Foi consenso entre as pessoas com quem conversei de que, embora enfrentem estigmas parecidos, mulheres e homens bissexuais lidam com diferentes tipos de julgamentos e preconceitos, muito associados ao machismo e heteronormatividade. As mulheres bi são vistas como promíscuas, imorais e infiéis. Se revelam sua sexualidade a parceires, têm sua fidelidade questionada e sexualidade posta à prova.

Enfrentamos sempre a insegurança da pessoa com quem nos relacionamos por achar que sempre vamos sentir “falta de algo” que sempre vamos querer “trocar” o que temos pelo outro (Lara*, mulher bissexual, São Paulo).

Já ouvi de algumas pessoas que tudo bem ser gay ou lésbica, mas esse negócio de ser bi é safadeza. Acho que isso tem um pouco a ver com a imagem que a pornografia passa sobre as pessoas bissexuais. (Vivian*, mulher bissexual, Rio de janeiro).

Ao mesmo tempo em que há um repúdio direcionado à mulher bi, há também uma fetichização, sempre focada no entretenimento do macho heterossexual que curte um ménage. (Joana*, mulher bissexual, Paraíba).

os homens bi são vistos como “menos homens”, gays que não têm coragem de se assumir. Essa visão resulta, inclusive, na dificuldade de encontrar homens assumidamente bi que queiram relatar suas experiências.

Eu namorei um homem bi e alguns conhecidos às vezes perguntavam para mim usando um tom de piada: “Como vai o seu namorado viado?” (Vivian*, mulher bissexual, Rio de janeiro).

Eu vejo uma enorme diferença entre homens e mulheres bis, não porque ela exista, mas porque a heteronormatividade, aliada à ausência de representação e certa dose de machismo, colocam um peso maior sobre os homens bi, porque eles estão rompendo com as expectativas sociais que se esperam deles (Pris, não-binária, bissexual, São Paulo).

Minha experiência como mulher bissexual é de ser sempre questionada com relação ao meu interesse por mulheres — é como se eu fosse hétero, uma menina que beija as amigas ou precisasse mostrar que gosto de mulheres também. Por outro lado, meus amigos homens bissexuais são enxergados, muitas vezes, como homens gays que ficam com mulheres por fachada (Laura, mulher bissexual, Rio de Janeiro).

Pessoas bissexuais seguem sendo invisibilizadas

“Eu sou quem eu sou. Se você não gostar, não dou a mínima” — Annalise Keating, personagem bissexual de How To Get Away With Murder

A invisibilização da vivência bissexual não acontece somente pelos comentários bifóbicos. A falta de representatividade e visibilidade contribuem para este apagamento. A boa notícia é que talvez as coisas estejam começando a mudar.

O último relatório da GLAAD, que analisa a representatividade LGBTI+ na TV, revelou que 117 das 433 personagens que estão atualmente em programas são descritos não-monossexuais. Dessas personagens, 84 eram mulheres, incluindo uma trans, e 22 eram homens, incluindo um trans. O número representa um aumento de 25% em relação aos dados de 2017–18, que divulgamos neste post.

Quando eu era moleque e estava me descobrindo, eu não fazia muita noção de que essa categoria existia. Isso me gerou certa confusão porque cheguei a achar que ia ter que decidir por um lado. Lembro de ter visto um programa de TV que tinha um personagem bi e isso me deu um certo alívio. (Thor, homem bissexual, São Paulo).

Infelizmente, visibilidade nem sempre = representatividade. O relatório aponta diversos comportamentos das personagens que em nada contribuem para visibilização da bissexualidade, apenas reforçam estereótipos, como o uso do sexo somente como forma de manipulação, e não como exercício individual da sexualidade, e a associação da sexualidade a personagens não confiáveis, imorais ou psicologicamente obsessivos.

A comunidade LGBTI+ também é fonte de preconceito

Infelizmente, até mesmo pessoas que enfrentam desafios semelhantes para exercer sua sexualidade ou identidade de gênero podem contribuir para o apagamento da vivência bissexual — como eu mesmo uma vez fiz. Além de reproduzir os estereótipos já listados, muitos LGBTIs tendem a deslegitimar a bifobia, afirmando que pessoas bi sofrerão a homo ou lesbofobia a depender do relacionamento em que estejam. Os relatos abaixo demonstram um quadro totalmente diferente:

Um caso de bifobia que me marcou muito foi de uma conhecida minha, que é lésbica. Ao ser questionada sobre minha sexualidade, afirmei ser bissexual. Ela disse que essa orientação não existia, que eu era uma lésbica indecisa (Elizabeth, mulher bissexual, Maranhão).

Já ouvi de lésbicas que não ficam com bi porque dizem que trazemos doenças para elas (Lara*, mulher bissexual, São Paulo).

Uma mulher por quem eu estava interessada me disse em uma festa que não me beijaria, pois ela não tinha interesse em mulheres que se relacionavam com homens porque não queria pegar saliva de macho (Pris, não-binária, bissexual, São Paulo).

Dentro de alguns espaços LGBT ou em alguns relacionamentos, a minha existência bi é desacreditada. Quando me colocam numa caixa específica — que não corresponde à minha sexualidade — , como de sapatão ou de hétero, eu me sinto totalmente invisibilizada (Laura, mulher bissexual, Rio de Janeiro).

A medida que a população LGBTI+ conquista mais direitos e, na contramão, cresce a onda de ameaças conservadoras, a discussão sobre a bifobia precisa fazer parte de nossa agenda enquanto comunidade. A ideia da bissexualidade transitória, como fase, indecisão e sexualidade incompleta precisa ser combatida — e nós, outros membros da comunidade LGBTI+, precisamos fazer parte desta luta.

E, para terminar, uma mensagem final que resume as contribuições das incríveis pessoas que toparam compartilhar as suas histórias com a gente. Nosso muito obrigado, e parabéns pela coragem!

Gostaria de dar um salve para toda a minha comunidade, essa comunidade de gente guerreira e forte, e dizer que sim, a sua orientação sexual existe, ela não é fruto da tua imaginação. Temos que andar de cabeça erguida, seguir orgulhoses de quem somos e do que conquistamos até aqui. A luta não para, a luta é constante e fomos feitos pra ela! (Elizabeth, mulher bisexual, Maranhão).

*Nome fictício

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Diêgo Lôbo
TODXS
Writer for

Ativista de direitos humanos, saúde e meio ambiente.